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ENTREVISTA | Elviras: Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema

Entrevista com Yale Gontijo, crítica de cinema, jornalista cultural, pesquisadora e produtora no portal Metropoles.

Fábio NunesVale do Paraíba

segunda-feira 20 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Fábio Nunes - Elviras?

Yale Gontijo - O Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema nasceu de uma inquietação partilhada pelas mulheres da crítica, o mesmo sentimento que experimentam milhões de mulheres de outros campos profissionais: o silenciamento.

A primeira reunião presencial para discutir a situação das críticas mulheres foi organizada no 49° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, realizado em setembro de 2016. Na ocasião, foi possível reunir profissionais de vários estados brasileiros, que estavam na cidade para cobrir o festival.

A necessidade de promover outras reuniões pelo Brasil foi tratada pelo grupo como uma questão urgente. Novas reuniões foram realizadas no Festival do Rio, Mostra de São Paulo e Panorama Coisa de Cinema em Salvador.

Não demorou muito para que mais mulheres fossem convidadas a formar uma rede de profissionais que atuam pelo país e que não se conheciam. Em breve, esperamos formar um calendário de encontros permanentes em território nacional.

Outro passo importante foi conhecer melhor o passado de mulheres da crítica. Fizemos um trabalho de garimpagem até encontrar Elvira Gama, titular da seção Kinetoscópio do Jornal do Brasil entre 1894 e 1895. O nome foi encontrado pela pesquisadora Danielle Crepaldi Carvalho.

Elvira era cronista e poetisa, mais do que crítica de cinema. Escrevia sobre literatura, teatro, cinema, contribuia em crônicas sobre esportes e foi trabalhar em jornalismo para sustentar a família depois de enviuvar precocemente.
Decidimos batizar o coletivo como forma de homenagear essa brava mulher, que foi esquecida pelo tempo.

Ao contrário de outras Associações de Cinema existentes no país, o coletivo decidiu incluir profissionais que se dediquem a analisar o cinema também no âmbito acadêmico.

Reunimos um total de 80 mulheres críticas de cinema (de atuação acadêmica ou midiática) no país e promovemos um debate riquíssimo na última Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais, quando a organização nos cedeu o espaço para realização de uma mesa sobre mulheres da crítica.

Além disso, as Elviras estudam formas de promover ou "ajudar a inserção" de mulheres trans, negras e indígenas nesta área de atuação. Há também a ideia de criar um sistema de formação educativo que reforce o pensamento crítico em torno do cinema (mas feito pelo ponto de vista das mulheres).

Fábio Nunes - Vivemos em uma sociedade machista e na arte não é diferente, apesar de toda "sensibilidade", o meio artístico é majoritariamente comandado por homens.

Yale Gontijo - É bom compreendermos que o meio artístico funciona como funciona todas as outras estruturas sociais. Por séculos testemunhamos sistemas inteiros montados de modo a manter mulheres em posições subalternas ou inferiores aos homens.

No meio cinematográfico é igual. Com o agravante de que o cinema e a televisão são importantes ferramentas de formação do imaginário contemporâneo. Logo, se esse sistema cria a ideia de violação sexual de mulheres (atrás e na frente das câmeras) como algo banal, ele ajuda a banalizar a questão da violência contra a mulher.

Mas, não é apenas a estrutura de produção que mantêm mulheres em condições subalternas ou com salários abaixo dos colegas homens que desempenham a mesma função.

O "modo de narrar histórias" (que também engloba nossa educação audiovisual) foi forjado por homens. Nesse sentido, a teórica norte-americana Laura Mulvey escreveu um excelente artigo intitulado Prazer visual e cinema narrativo na experiência do cinema (facilmente encontrado na internet), onde ela examina as construção do olhar cinematográfico construído por homens.

Até o que é tido nos filmes como "sensual" ou "prazeroso" pode ser contestado. Já reparou que quase todas as cenas de sexo heterossexual da história do cinema têm seu clímax constituído por um orgasmo masculino?

É bom frisar que mulheres não são as únicas vítimas de silenciamentos ao longo da História da sétima arte. As estruturas de produção cinematográfica foram pródigas em afastar membros de outras minorias como os negros (as mulheres negras, então, nem se fale), indígenas (há um excelente documentário sobre os estereótipos de representação dos povos nativos da América do Norte chamado Reel injun, disponível na Netflix), homossexuais e transexuais.

É essa relação de poder e domínio que deve ser repensada. Com mais diversidade, todos temos a ganhar com boas histórias protagonizadas por personagens que possam representar a vasta gama de tipos humanos que existem por aí.

Fabio Nunes - Fala-se mais da misoginia de certos cineastas do que sobre o trabalho das diretoras de cinema. Aponte algumas cineastas significativas para você.

Yale Gontijo - Exatamente. Parece que os homens recebem mais destaque até quando se trata de uma questão negativa.

O coletivo Elviras é um grupo diverso. Portanto, muitas podem apontar realizadoras significativas.

Pessoalmente, eu destaco o trabalho da norte-americana Maya Deren (At land, Meditation about violence e The very eye of the night), que realizou vários filmes experimentais durante quatro décadas desde os anos 1940.
A cineasta francesa Agnès Varda começou a produzir filmes no mesmo período em que François Truffaut e Jean-Luc Godard. Foi extremamente importante para talhar o estilo chamado de cámera-stylo (a câmera caneta), mas nunca foi tratada com a mesma significância que seus colegas homens da nouvelle vague.

A belga Chantal Akerman, que se foi desse mundo tirando a própria vida, é uma cineasta que prima pela observação do mundo que nos cerca. É interessante notar como ela tratava as questões da "passagem do tempo" em suas películas. Akerman assinou cerca de 47 produções entre documentários e ficções, longas e curtas.

Kathryn Bigelow que nos legou o hoje clássico Caçadores de emoção (1991) e recentemente dirigiu Guerra ao terror e A hora mais escura. É provavelmente a melhor diretora de filmes de guerra e ação em Hollywood no momento, mas até hoje é tratada como a esposa do diretor James Cameron, mesmo que o casamento dos dois tenha terminado há muito tempo.

Na América Latina, a argentina Lucrecia Martel (A mulher sem cabeça, O pântano e A menina santa) e a peruana Claudia Llosa (A teta asustada e Madeinusa).

A cineasta mulher e negra Ava DuVernay que fez um verdadeiro tratado sobre as questões raciais nos EUA com o documentário 13a. Emenda, produção da Netflix.

No Brasil, o trabalho de Anna Muylaert tem sido consistente ao tratar de questões femininas. Mais do que isso, Anna tem sido importante para levantar o debate em torno do papel da mulher mesmo quando não está filmando. Digamos que a postura pública de Anna tem inspirado muitas outras profissionais do audiovisual. Antes dela, Lúcia Murat, sempre se assumiu feminista e tratou de questões de direitos humanos (para todos) em seus filmes.

Em breve, serão muito mais profissionais de cinema com consciência crítica suficiente para argumentar sobre o debate de gênero e as relações desiguais no cinema. E (oxalá) essas pessoas estarão preparadas para atuar fora das salas escuras também.




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