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MULHERES NEGRAS | E se Giselle fosse negra?

segunda-feira 25 de julho de 2016 | Edição do dia

Mercedes Ignácia da Silva Krieger viveu de 1921 à 2014. Várias coisas em comum com esta mulher. Nunca ouvi falar seu nome. Mas por que falar dela é importante? Por que não falar faz dela alguém que não existiu. Não porque não tenha deixado registros de sua passagem, um legado, uma marca na memória e nos corpos de quem ensinou. Mas porque pouca gente sabe quem era e o que deixa pra posteridade. É inspirador pra nós negras saber que, embora em situações adversas, fomos sujeitos de nossos tempos e contribuímos enormemente para uma das produções mais elevadas de nossa humanidade, a arte, especificamente, a dança.

Bailarina, coreógrafa, mulher, latina, negra. Uma das precursoras do Balé e da Dança Afro-brasileira. Nasceu no ano de 1921 em Campos dos Goytacazes, RJ, filha de uma família humilde que vivia do trabalho de sua mãe costureira.

Ainda jovem mudou-se com a sua mãe para o Rio de Janeiro. Após ter sido doméstica e operária, trabalhou na bilheteria de um cinema e, assistindo aos filmes, alimentava o desejo de tornar-se artista. Dai veio a dança.

A partir de 1945, começou a frequentar a Escola de Dança da bailarina Eros Volússia, conhecida por seu método de investigação das danças populares para a criação de um balé brasileiro erudito, uma das primeiras a aceitar bailarinos negros. De uma família de poetas, Eros Volusia foi uma referência na dança. Tornou-se grande estrela de cinema. Logo após, Mercedes ingressou na Escola de Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. No corpo do Municipal teve aulas de balé clássico com Yuco Lindberg e Vaslav Veltchek, nomes de peso na época.

Naquela época, a dança se dividia entre européias, "sérias", e as danças "picantes" ou "exóticas”, aquelas identificadas por traços “selvagens”, “primitivos”. Representações árabes, ciganas, espanholas, caribenhas - as chamadas “habaneiras”, de certa forma “afro” também. O elemento “afro” era apreciado por ser uma “coisa esquisita”. Foi nesta época que se espalhou que “todo pai de santo era bicha”, quando era apenas um corpo liberado. Que as mulheres na dança eram prostitutas... Para o artista negro brasileiro era apenas trabalho.

Após um período de formação clássica, concorreu ao corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas foi reprovada na audição para mulheres. O racismo diz que “não tinha o perfil adequado”. O concurso do balé do Municipal foi realizado em cinco etapas. Passou nas quatro primeiras etapas e na última, no entanto, não foi avisada. Ao chegar cedo na instituição para fazer a aula, encontrou as demais meninas (brancas) maquiadas e preparadas para a última etapa do concurso. Reclamou que não foi avisada para a última etapa da seleção. Disputou o posto também no grupo masculino, tornou-se a primeira bailarina negra do Theatro Municipal, em 1948.

No entanto, compor o referido grupo não significou papéis de destaque nos balés que dançou. Havia (e há!) um forte preconceito em relação a bailarinos negros no nosso país. Mercedes era discriminada nos espetáculos: quando convocada para fazer solos, pintavam-na de dourado ou prateado. No entanto, os solos sempre faziam sucesso nos espetáculos. “Eu me vi de repente excluída de tudo, e nem que pusesse um capacho cobrindo meu rosto me deixavam pisar em cena. Só uma vez eu atravessei o palco usando sapatilhas de pontas e, ainda assim, lá no fundo”. Foram poucos os diretores do grupo que selecionaram Mercedes para compor o elenco dos espetáculos. Mesmo assim, suas aparições em peças nacionalistas de compositores brasileiros, além de figurações, fizeram-na conhecida no Rio de Janeiro.

Na mesma época, após assistir a uma apresentação do Teatro Experimental do Negro, não teve dúvidas, entrou para o grupo. O TEN se propunha a resgatar os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados pela sociedade que, desde os tempos da colônia, portava a ideologia dominante europeia, imbuída de conceitos pseudo científicos sobre a inferioridade da raça negra. Importava a valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da arte.

Assim se deu o encontro dessa talentosa bailarina com o movimento negro politicamente organizado. Atuou ao lado de artistas como Ruth de Souza, Haroldo Costa e Santa Rosa pelo reconhecimento e pela integração de atores e dançarinos negros no teatro brasileiro.

No livro “Mercedes Baptista, A Criação da Identidade Negra na Dança”, de Paulo Melgaço Jr., há um interessante texto de Abdias Nascimento dizendo que “a firmeza de suas ideias, sua postura profissional, foi o alicerce para a grande Mercedes, como bailarina e coreógrafa pioneira na construção da nova “dança afro brasileira”. A consciência de sua história de lutas, sua linha de pesquisa e uma dimensão criativa própria, possibilitou a ela escapar da simples reprodução, repetição de folclore”. Ou seja, aportou pra dança moderna, um movimento de profunda contestação estética e política, a partir dos elementos da cultura afro brasileira.

No inicio dos anos 50, Katherine Dunham, matriarca da dança negra norte-americana, esteve no Brasil para se apresentar com seu grupo e através do Teatro Experimental do Negro conheceu Mercedes. Depois de concorrida audição, Mercedes Baptista foi escolhida para estudar junto com a companhia da bailarina norte-americana durante um ano nos Estados Unidos.
A companhia de dança de Katherine Dunham desenvolvia uma abordagem da dança moderna inspirada em matrizes culturais não europeias. Pesquisou, especialmente, a cultura religiosa dos negros da América, fora dos EUA, especialmente o vudu do Haiti. Essa abordagem de Katherine Dunham estava em total sincronia com as propostas do Teatro Experimental do Negro, dando início a uma troca muito fértil. Se o contato com Volusia foi a inspiração inicial, o aprendizado de Mercedes junto a Katherine Duncan deu fundamento ao trabalho que a consagraria no Brasil, no qual destacou as religiões afro brasileiras.

Ao retornar ao Brasil, criou um grupo de negros, filhos de santo, empregadas domésticas, balconistas, cozinheiros, desempregados, ritmistas, enfim, pessoas que tinham em comum a cor da pele, a posição social e o sonho de ser artista. Com eles, começou a por em prática suas
experiências. Em 1953, nasce o Balé Folclórico Mercedes Baptista, com o objetivo de criar diferentes rumos para a dança no Brasil. Passou a investigar a dança dos candomblés brasileiros, frequentando a casa do amigo e pai de santo Joãozinho da Goméia, contava também com a ajuda do grande pesquisador e folclorista Edson Carneiro.

Com sua companhia, fundada em 1953 e chamada de “Ballet Folclórico Mercedes Batista”, a dançarina montou inúmeros espetáculos e realizou participações em diversas apresentações de Teatro de Revistas, com destaque para “Agora a Coisa Vai” e “Rumo a Brasília”. E ao longo de sua vitoriosa trajetória, o grupo excursionou com sucesso pelo Brasil e países sul-americanos, além de participar de espetáculos do Corpo de Baile do Teatro Municipal. Nestes espetáculos, ela foi a produtora, diretora, coreógrafa e primeira bailarina de um grupo formado por bailarinos negros, reconhecido nacionalmente, dançando no palco da casa que a ignorou como bailarina.

A década de 1950 foi o auge da dança afro brasileira, com sucesso total. O erudito das teorias acadêmicas mesclou-se à cultura popular. Construiu interessante trabalho ao lado do poeta, sindicalista e militante do movimento negro, Solano Trindade. Tanto a obra coreográfica de Mercedes Baptista, dentro do TEN, como o grupo de Solano Trindade, com o Teatro Folclórico Brasileiro – TFB, são marcos na invenção da dança afro brasileira.

Durante a década de 1960, Baptista compôs uma pioneira parceria com os carnavalescos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. A crítica foi extremamente positiva e a Escola sagrou-se campeã. Em 1963, se destacou por montar e coreografar a Comissão de Frente da Escola para o premiado enredo “Chica da Silva”: o grupo de bailarinos dançou o minueto, compondo uma linda coreografia com a Igreja da Candelária ao fundo. A parceria gerou polêmica e revolucionou o modo como as alas se apresentavam no carnaval carioca.

Ainda na década de 60, Mercedes viajou várias vezes à Europa, apresentando-se em 1965 com seu grupo na França, a convite do governo brasileiro. Apresentou-se no Festival de Arte Folclórica na França e o grupo permaneceu seis meses na Europa percorrendo 150 cidades. Foi o primeiro grupo brasileiro convidado a participar de um intercâmbio e a receber esse tipo de patrocínio. Em 1969 ela concebeu e dirigiu o espetáculo “Tropicalíssima”, apresentado em Lisboa, Portugal.

Nos anos 70, dedicou-se especialmente ao ensino na Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ministrando a disciplina “Dança Afro-Brasileira”. Nos EUA, ministrou cursos no Connecticut College, no Harlem Dance Theather e no Clark Center de Nova York. Em 1976 foi homenageada pelo Bloco Carnavalesco Alegria de Copacabana.

Seu sucesso como coreógrafa a tornava cada vez mais requisitada para o cinema e a televisão. Na TV brasileira entre os anos 60 e 70, criou diversas coreografias para novelas (Passo dos Ventos, Verão Vermelho, A Cabana do Pai Tomás, A Escrava Isaura, Pacto de Sangue e Xica da Silva) e para musicais e espetáculos teatrais. Sempre que a proposta envolvia rituais negros ou uma dança brasileira, as emissoras convidavam a coreógrafa. Foram diversos trabalhos coreográficos e de preparação corporal de atores.

Em 1980, retomado sua companhia Ballet Folclórico Mercedes Baptista, grandes sucessos foram apresentados: “Orungá e Iemanjá”, “Visita de Oxalá ao Rei Xangô” e “Mondongô”. Em 1982 se aposenta pelo Teatro Municipal.

A partir dos anos noventa, a artista passou a ser homenageada em cerimônias públicas e por diversas Escolas de Samba, que reconheceram sua inestimável contribuição para a dança e o carnaval carioca. Em 2000, recebeu uma homenagem na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em reconhecimento a sua inestimável contribuição à dança brasileira, além de ter sido homenageada em uma grande exposição sobre a sua carreira e em um documentário, chamado “Balé Pé no Chão – A Dança Afro de Mercedes Baptista” dirigido por Lílian Solá e Marianna Monteiro, 2006. O nome da artista também batizou uma sala de dança do Centro Cultural José Bonifácio, em homenagem da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Mercedes foi reconhecida por seus alunos como uma professora bastante rígida e exigente. Uma das maiores qualidades do trabalho da Mercedes foi o projeto social que realizou. Além de ensinar setores pauperizados sem cobrar mensalidade, batalhou pelo respeito e valorização da mulher negra, para o reconhecimento e afirmação do artista negro na dança, o que lhe permitiu revelar ao público alguns dos maiores bailarinos e bailarinas da dança brasileira e galgar vitórias na luta pela igualdade racial.

No final da década de noventa, Batista sofreu a primeira de três isquemias que debilitaram a sua saúde. Faleceu na casa de repouso onde morava em Copacabana, Rio de Janeiro, em 18 de agosto de 2014, aos 93 anos de idade.

Quando Arthur Mitchell (bailarino e coreógrafo norte americano, primeiro negro a estudar na New York City Ballet chegando a ser primeiro bailarino da cia) remontou o famoso balé “Giselle” não o fez estritamente como é desde o século XIX. Investigou o processo de escravidão negra dos Estados Unidos e transpôs a realidade para Louisiana, Nova Orleans, região dos EUA majoritariamente negra. Recriou para um corpo com quadril largo e curvatura lombar acentuada de uma Giselle negra os passos e gestos necessários para exprimir uma velha história num novo contexto. Mercedes nunca pode ser Giselle, uma possível realização pessoal pelo patamar de perfeição técnica alcançado. Não pode porque era negra e, muitas vezes, pintar o rosto de branco não é o suficiente para atenuar traços que denunciam alguém que não merece estar onde está. Ao não ser Giselle, foi Mercedes, precursora da dança afro brasileira: invés das sapatilhas, o pé no chão; negando o céu, aceitou a gravidade que nos atira ao solo, à terra, aos terreiros... Seu legado de retomada gestual à memória de nossos ancestrais insistentemente apagados pela cultura europeia nos deixa algo que Giselles, Auroras, Odettes nenhuma podem deixar: orgulho de nosso passado e força pra construção de um futuro sem racismo.




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