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RESENHA LITERÁRIA | Dreamland: A crise capitalista e a epidemia da heroína

Milhões de pessoas nos EUA são viciadas em opiáceos. Em uma pesquisa feita durante três meses em 2012, um total de 11% da população de Ohio tinha receitas para esse tipo de remédio. Como as coisas chegaram nesse ponto? Um livro jornalístico busca a origem dessa epidemia, mas deixa de lado o grande problema: o capitalismo. Esta é uma resenha desse livro, "Dreamland", de Sam Quinones (Bloomsbury, 2015. Ainda sem tradução para o português)

quinta-feira 30 de março de 2017 | Edição do dia

Eu não moro nos EUA desde que George W Bush assumiu em 2001, então eu não vivi a epidemia de opiáceos de perto. Mas eu acompanhei as histórias com uma mistura de fascinação e horror, mesmo antes de perdermos o ator Phillip Seymour Hoffman para uma overdose de heroína. Tendo crescido com problemas emocionais em uma região atrasada e desinteressante dos EUA, facilmente posso imaginar que eu poderia também ter sido sugado pelos opiáceos. Eu não me vejo me furando com uma agulha, mas se tivessem me oferecido um comprimido, com receita médica, produzido e distribuído pela indústria farmacêutica, com a promessa de acabar com a dor, será que eu teria recusado?

"Dreamland", um ensaio jornalístico realizado por Sam Quinones, olha para a epidemia de heroína nos EUA de diferentes perspectivas. Eu li as 384 páginas num fôlego só. Tendências políticas, econômicas e intelectuais se juntam para criar as condições perfeitas para o vício. Quinones não usa nenhuma vez a palavra capitalismo, mas deixa claro que os opiáceos – assim como todos os produtos em nossa sociedade – são produzidos e distribuídos para gerar lucro. E ele descreve como os grandes e pequenos capitalistas usam o vício para ganharem dinheiro.

1. Uma rede de traficantes da pequena cidade de Xalisco, no México se espalhou pelos Estados Unidos para levar heroína barata para as cidades pequenas. Ainda que Xalisco tenha apenas 90 mil habitantes, jovens vindos dessa cidade vendiam heroína de leste a oeste nos EUA, o que os tornou alvos de algumas das maiores operações da DEA (a agência antidrogas dos EUA). Em vez de formar um grande cartel com uma rígida hierarquia, se dividiram em pequenos grupos autônomos – uma estrutura modular que evitou a competição com grupos concorrentes e garantiu que membros que iam presos pudessem ser substituídos, permitindo manter a distribuição constante. Foi a saída encontrada para contornar a pobreza que assola a região rural da costa oeste do México.

2. A empresa farmacêutica Purdue lançou em 1995 o OxyContin – praticamente uma forma em comprimidos da heroína. A empresa falsificou estudos para afirmar que o uso contínuo e prolongado desse medicamento para tratar a dor não causava vício. Então, gastaram uma fortuna de bilhões de dólares para convencer os médicos e o público a adotar essa droga, que na verdade era altamente viciante. No fim, acabaram tendo que pagar multas por propaganda enganosa, mas foram minúsculas perto dos lucros que tiveram.

O comediante e apresentador John Oliver explica o processo particularmente bem (em inglês):

3. Médicos tiveram um papel central em espalhar a epidemia. Alguns eram diretamente corruptos e vendiam as drogas ou receitas pelo dinheiro, mas outros não viam outra opção. Muita gente sente dor, e as seguradoras não autorizam tratamentos longos e trabalhosos, mas pagam pelos comprimidos que são fáceis de se receitar e têm uma alta margem de lucro.

4. A polícia e os tribunais também atuam como parte dessa indústria. Já não é segredo para ninguém que a política de "Guerra às Drogas" surgiu para criminalizar os grupos de minorias sociais e de oposição política. Porém, quando os opiáceos saem das grandes cidades e começam a se espalhar pelo "coração" dos EUA, essas duras leis começam a afetar garotos de classe média branca, para quem não haviam sido pensadas. Como resultado, políticos "duros contra o crime" descobriram que é necessário tratamento para quem sofre com o vício, e não cadeia.

Quinones olha para essa história de vários ângulos diferentes, mas com algumas frustrantes omissões. A atual crise capitalista, que começou em 2007 e deixou uma grande parte dos EUA desempregada, e alguns até mesmo desabrigados, é citada apenas tangencialmente. E ele também não cita a ocupação do Afeganistão, que juntamente com outras aventuras imperialistas levou a um aumento massivo na produção de heroína.

Mas tem algo além da molécula da morfina que levou a uma epidemia tão devastadora? Algum momento cultural? Quinones aponta o dedo para os jovens dos EUA, que seriam protegidos e mimados. Opiáceos deveriam tratar a dor. "Que dor?", ele cita a pergunta de um policial.

Mas Quinones ignora completamente a enorme, e ainda crescente, alienação no capitalismo atual. A produtividade é cada vez maior com a tecnologia, o que significa uma quantidade menor de trabalho para atingir as nossas necessidades, Uma sociedade organizada racionalmente nos ofereceria, então, um tempo maior para o lazer. No entanto, o capitalismo nos condena a horas-extra, insegurança e desemprego. Como seres humanos, precisamos para nossa realização pessoal de mais do que bens de consumo, precisamos de alguma atividade produtiva. Mas esse trabalho com algum significado vem sendo negado a setores cada vez maiores da população dos EUA. (Para não falar dos setores que não tem nem o acesso ao mínimo.)

A epidemia de heroína é uma epidemia capitalista. Promete felicidade e entrega miséria. Gera lucros infinitos para os ricos, enquanto torna a classe trabalhadora dependente. É aqui que o livro de Quinones se torna risível. Nicolas N. Eberstadt, que provavelmente é ainda mais de direita que Quinones, conseguiu fazer a ligação entre a epidemia de opiáceos e o grande "mal-estar" do capitalismo atual em "Nosso miserável Século 21".

Mas Quinones pensa pequeno. Sobre encontrar trabalho, ele deposita sua esperança em alguns capitalistas "patriotas" que investiriam nas áreas rurais dos EUA. O exemplo que ele dá é o de uma fábrica de cadarços em Ohio, que um dia chegou a ter 1200 funcionários. Depois de reaberta, agora emprega incríveis 40 pessoas. E esse é o exemplo mais inspirador que ele conseguiu encontrar em todo o país.

Para acabar com essa epidemia é preciso acabar com a insanidade do capitalismo, e a criação de uma economia gerida democraticamente para suprir as necessidades da classe trabalhadora.

Tradução de Heitor Carneiro


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Drogas    Cultura



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