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CIDADE CINZA | Doria quer repressão dura a pichadores de SP. O que a juventude precisa é de cultura e liberdade

sexta-feira 27 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Frente ao imenso rechaço popular contra a atitude de João Doria de apagar os murais de grafite na cidade cobrindo-os de cinza, o prefeito adotou uma resposta que parece ambígua, mas que deixa clara sua visão sobre o que quer oferecer à juventude. Em declaração na Globo, Doria deu seu recado: pichadores, saiam da cidade, “mudem de profissão” ou “virem artistas”, porque o prefeito “não vai fraquejar”. Por outro lado, disse que vai garantir 8 murais para “artistas selecionados” onde esses artistas podem se expressar em parceria com a prefeitura (e com as empresas privadas, claro). Doria quer reprimir e regular o grafite, e extinguir a pichação.

E João Doria pensa que vai calar essa juventude com mais repressão. As primeiras reações à sua tinta cinza já demonstram que não: os dizeres “Doria” e “respeito” ou “Chora Doria” gravados quase imediatamente sobre a tinta cinza mostram que quanto mais repressão houver, mais os pichadores irão fazer sua voz valer. As pichações são uma expressão da mesma juventude que, frente à falta de espaços de lazer e cultura tomou os shoppings da elite às centenas com seus “rolezinhos”, e apavorou uma classe dominante racista que viu seus espaços privados de lazer invadidos pelos que têm seus direitos elementares negados. Uma juventude que, negada de lazer, tomou os espaços que lhes eram restritos “à força”.

Em primeiro lugar cabe esclarecer ao prefeito que ser pichador não é uma “profissão”: ninguém é contratado ou recebe dinheiro para pichar. O picho surge como uma forma de expressão da juventude, que, longe de querer ser arte, é um grito de rebeldia. Ele se coloca como a voz de quem tem sua voz negada todos os dias. Ele se inscreve no patrimônio privado que não tem direito a ter, ou no público do qual não pode usufruir. Ele mostra que aquela juventude existe, e, por seus próprios meios, resiste e se expressa. A história da pichação é tão antiga quanto à própria história das cidades.

A estratégia de Doria de querer separar os pichadores dos grafiteiros vem no sentido de tentar colocar a “arte” separada do “vandalismo”. Mas não se trata disso. Seus aliados, como o Kim Kataguiri, do MBL, que fez um vídeo defendendo Doria, acham que a questão é reprimir o “vandalismo” que, como crime, se equipara aos demais crimes, sendo apenas menos grave. No entanto, a repressão é o caminho de um “gestor” que escolhe governar para os ricos e para as empresas privadas, não oferecendo nada para a juventude. A restrição aos shows no aniversário de São Paulo, as indicações de que a Virada Cultural será em espaços fechados e cada vez mais elitizados, as propostas de privatização e cobrança de entrada em parques, centros culturais e outros patrimônios públicos e culturais é a irmã gêmea da repressão de Doria ao grafite e à pichação. Quanto mais direitos negados, maior a expressão da juventude vai procurar seus próprios caminhos como a pichação; quanto maior a pichação, maior a repressão e a criminalização da juventude cujos direitos são negados.

O grafite é uma arte de rua, livre, que nasceu ali por ser o local onde essa juventude encontrou a possibilidade de se expressar. Os governos dos patrões sempre quiseram reprimir qualquer livre expressão artística que fugisse ao seu controle e tomasse os espaços públicos para si. A gestão de Haddad, antes de Doria, tomou medidas de cercear o grafite, apagando diversos murais e organizando sob sua tutela a pintura de novos. Os grafites tiveram espaço garantido, mas apenas com a devida autorização da prefeitura e sob sua aprovação. Doria aumentou exponencialmente o controle e a repressão, dizendo que, com grafiteiros devidamente tutelados pelo estado, como Eduardo Kobra, irá “autorizar” oito pontos onde serão feitas as obras aprovadas. Apenas os grafiteiros “selecionados” terão possibilidade de se exprimir, o que sem dúvida não chega a 1% dos que hoje usam os muros da cidade para se expressar livremente.

A questão aqui está longe de ser um debate meramente “estético” sobre o que é bonito ou não, sobre se o picho não é arte e o grafite é. A questão é que o prefeito gestor quer cercear qualquer possibilidade de livre expressão e manter a juventude em rédeas curtas, concedendo o direito de fazer “arte” apenas àquilo que diretamente aprove. Esse movimento de Doria não é novo, e se repete com qualquer movimento de contracultura no capitalismo. Na reportagem da Globo, que procura a todo custo diferenciar os “vândalos” pichadores dos “artistas” grafiteiros – tal como Doria – se mostra esse movimento. Artistas como Banksy, grafiteiro anônimo cujas obras são uma afiada arma de crítica ao nosso sistema social, passou a ser mais uma mercadoria em galerias de arte. Em breve, o MASP abrigará obras de Jean-Michel Basquiat, artista de rua, grafiteiro que foi transformado em mercadoria para consumo.

O que gente como Kim Kataguiri e Doria não entendem, é que as pessoas cuidam do patrimônio público quando ele é seu, quando verdadeiramente lhe pertence e não faz parte das empresas privadas ou de políticas estatais decididas à sua revelia. Um exemplo muito nítido disso é a relação entre o picho e o grafite: havia uma regra implícita de que os pichadores e grafiteiros respeitavam-se mutuamente e aos espaços que ocupam. Há alguns anos, era praticamente inexistente a prática de pichações por cima de grafites. Contudo, depois que os grafites começaram a ser fiscalizados, controlados, autorizados pela prefeitura nos murais devidamente reservados, ou seja, regulados por uma política que partia de fora, da prefeitura e não decidida livremente por eles, começaram a aparecer muitos pichos por cima de grafites. Isso porque muitos pichadores deixaram de respeitar os grafiteiros como irmãos e passaram a ver eles como representantes dessa ordem externa, a mesma que lhes nega tudo e lhes reprima a única possibilidade de expressão autêntica, que encontraram no picho.

O que queremos é o fim da repressão à juventude, seja ela na forma de policiais matando jovens nas periferias, seja por meio de jatos de tinta cinza que encobrem a possibilidade de livre expressão na cidade. A possibilidade de que todos tenham acesso à educação, lazer, esporte, transporte, moradia, saúde e emprego. E, assim, que a cidade seja tomada de arte e expressão cultural feita não a partir de um prefeito “gestor” e seus acordos com empresas privadas e muita tinta cinza com alguns “nichos” de grafite selecionados a dedo por seus curadores, mas sim como um patrimônio da própria juventude em uma cidade que lhe pertença e na qual possa se expressar.




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