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Digerir e pensar - a vida interditada no palco do Engenho Teatral

Fernando Pardal

Digerir e pensar - a vida interditada no palco do Engenho Teatral

Fernando Pardal

Foto: Portalafro

“Atenção! A vida está interditada; procurem outras vias!”
Assim nos diz uma insistente voz que ressoa em “Canção Indigesta”, peça do Engenho Teatral. Mas o Engenho é desses grupos de gente que insistem em furar a interdição, passar por suas frestas, puxar os outros pela mão para podermos dizer que essa interdição não vai ficar inquestionada. E sua canção indigesta é para dizer o que não é dito, o que não é visto, o que não querem que pensemos para não questionar o porquê da interdição.

Dois eixos de questionamento sobre a nossa atual miséria marcam a peça: a manipulação ideológica, que a cada dia nos convence não apenas a não lutar, mas a “amar muito tudo isso”, como dizia a propaganda; e a barbárie bruta, a aprimoração da extração da mais-valia, a divisão das fileiras dos trabalhadores, a precarização do trabalho. O diálogo entre esses questionamentos é permeado de tensão, pois, em que pese que essas duas formas de interditar a vida são complementares, elas muitas vezes aparecem em nossos questionamentos como versões antagônicas de ver a nossa impossibilidade nesse mundo.

Uma carta de um chuchu no supermercado abre os questionamentos endereçados ao público (que ali está para se divertir, mas não para se distrair, como historicamente nos diz o Engenho). O dilema do chuchu, no caso, é uma metáfora facilmente reconhecível, para quem olhe com atenção, do dilema do identitarismo, uma hábil armadilha ideológica colocada no nosso caminho para seguir nos interditando. O chuchu conta como os pepinos sempre foram esmagados no mercado, colocados nas últimas prateleiras, ignorados; mas com muita organização e luta conseguiram seu lugar merecido, e agora aparecem nas principais gôndolas e nas propagandas. Estão em destaque no mercado. Mas, e o mercado? Continua sendo o organizador da vida dos legumes, das verduras, decidindo os preços, as vendas, tudo. Dizem então aos pepinos: lutemos todos para controlar o mercado. E os pepinos dizem: lutamos tanto para sermos reconhecidos como pepinos, e agora vocês querem dizer para sermos todos legumes? E, assim, o mercado continua fora de nosso controle, com seu funcionamento habitual inquestionado. Como resolver essa questão? A pergunta é oferecida ao público, e a peça segue nos mostrando o mercado em que todos nós, “legumes”, estamos à venda. Em que nossa força de trabalho, a mercadoria que temos para dispor, está à venda.

Zé Ninguém nos fala da televisão, da ideologia, da manipulação para aceitarmos as coisas tal como elas são. Mas, escorregando no seu discurso, ele diz como a culpa é dos outros zé ninguéns, que aderem à ideologia dominante. Zé Ninguém, ele mesmo, reproduz o discurso da divisão, e da culpabilização dos demais explorados.

O dilema central colocado em cena é: como pensar, questionar, se organizar se toda nossa vida é dragada pela luta desesperada e incessante pela sobrevivência? O Engenho representa essa questão central de muitas formas. Em uma delas, uma intelectual entra em cena lendo um discurso que fala sobre questões estruturais da luta de classes no Brasil. Da conciliação, do golpe, do imperialismo. Um texto que, se ouvido, suscita debates fundamentais para pensar as vias de luta e organização, os problemas fundamentais que a classe trabalhadora tem que enfrentar. Mas o público não consegue ouvir o texto, porque, enquanto ele é lido, no centro da cena um trabalhador precarizado tenta, em vão, se virar para fazer um trabalho com uma escada. O trabalhador não ouve, mas se esfalfa na luta tentando fazer seu trabalho. Não há tempo, não há condições. Enquanto isso a leitura do texto prossegue, até o ponto em que a intelectual a interrompe, dizendo: “Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas parece que vocês não estão muito interessados nisso tudo”. Guarda o texto e se retira.

Essa impossibilidade se repete. A peça nos apresenta como o capitalismo foi refinando seus mecanismos de controle, de dominação ideológica: um trecho de um documentário mostra como no coração do imperialismo, os EUA, há quase cem anos se discutia como transformar a sociedade da “necessidade” em uma sociedade do “desejo”, instaurando os padrões de consumismo que pautam nossos comportamentos ainda hoje.

Por outro lado, surge em cena o “espírito de porco”, uma cabeça que perdeu seu corpo - contrariando o dito que fala sobre “perder a cabeça” - para questionar o que nos diz Zé Ninguém. Para o espírito de porco, é sim importante a ideologia, a mídia, a televisão, o consumismo de que Zé fala. Mas há outro elemento de dominação, esse sim o fundamental: a organização do trabalho. E aí o Engenho nos coloca diante de questões cruciais para cada trabalhador.

A reforma trabalhista, a tercerização, a “pejotização” tomam o palco. Primeiro, uma condenação: um trabalhador temporário, contratado apenas para ler um papel, vem apresentar a sentença, na qual se resume toda uma história secular da luta de classes dos trabalhadores contra a burguesia. A sentença diz que, por terem se organizado em sindicatos, em partidos, lutado e até mesmo sonhado - criando espaços culturais como aquele em que o público se encontra nesse exato momento - a classe trabalhadora está condenada a ser dividida. Aqui o Engenho mostra em sua alegoria como a classe dominante tira suas lições do passado e da luta de classes, e como a divisão das fileiras operárias é parte desse aprendizado estratégico para melhor dominar.

Em seguida, em curtos diálogos, de uma impressionante riqueza, o Engenho apresenta trabalhadores em situações cotidianas de trabalho, que nos mostram como, no cotidiano, se expressa a força dessa dominação. Trabalhadores que exercem a mesma função com diferentes salários; que trabalham no mesmo lugar sob diferentes condições; que dividem o mesmo ambiente mas são de empresas diferentes e não são representados pelos mesmos sindicatos; burocracias sindicais que negociam pelas costas dos trabalhadores; trabalhadores que nem sabem que existe um sindicato. Uma divisão que a cada dia “interdita” a vida, impedindo a organização e a luta da classe que possui o potencial para destruir todas essas barreiras.

E desse potencial também nos fala a peça. Falando da inteligência artificial, um desenvolvimento tecnológico que é o resultado de milênios de esforços coletivos da humanidade, como nos diz o texto da peça - um avanço das forças produtivas, para usar o bom e velho jargão marxista - o grupo nos mostra que a liberdade está a um passo. O que é o trabalho? Damos um passeio etimológico para ver que vem de “tripalium”, instrumento de tortura da Roma Antiga, ou “labor”, de sofrimento, tortura. A Inteligência Artificial possui a possibilidade de acabar com grande parte do trabalho que fazemos, de colocar robôs, processos automatizados, reduzindo imensamente o trabalho humano. O que pode ser muito bom, diz o Engenho. E aí a disjuntiva histórica, já colocada por Marx e aqui apresentada de maneira simples e brilhante pelo Engenho: nas mãos de uma classe que se apropria de toda o fruto do trabalho social, a burguesia, um avanço tecnológico como a Inteligência Artifical significa apenas mais desemprego e miséria para a imensa maioria, e maiores lucros para um punhado de parasitas; mas, se tomarmos essa inovação para a humanidade e a utilizarmos para o bem de todos, significará maior tempo para o ócio - que, como também conta a peça, significava momento de liberdade, de trabalho intelectual, em sua origem grega.

Mas como lutar se estamos todos trabalhando para que esse mundo permaneça tal como é? Se queremos isso, queremos ser o explorador, ou o bem sucedido “empresário de si”, como coloca Zé ninguém. A resposta do espírito de porco é contundente e implacável: a miséria produzida pelo capitalismo é crescente. Ela leva a situações absurdas, de fome, de guerras, desemprego massivo, pessoas sem casa. Há um momento em que a panela de pressão não aguenta: não há ideologia, não há engodo que possa impedir a fúria de quem está esmagado pela miséria bruta.

Nem por isso o Engenho deixa de colocar em cena os que insistem em atacar a interdição da vida de frente: na escuridão, na clandestinidade, os atores se dividem por todo o público, e, iluminados por uma lanterna, leem aos espectadores um texto que ataca no cerne um dos mais populares “produtos” da ideologia burguesa para nos enganar hoje: o suposto “combate à corrupção” da Lava Jato. E o fazem mostrando o que não se vê: o roubo secular da dívida pública, que, como apontado pelo texto, é o equivalente a uma Lava Jato a cada quinze dias, tirando dinheiro dos trabalhadores, da saúde, educação, moradia, previdência e indo direto ao bolso de milionários banqueiros e especuladores. Ao fim da peça, o Engenho, sem alarde, disponibiliza para os interessados a íntegra de dois textos lidos na peça: esse e o da cena da intelectual. Para quem quiser fazer bom uso das armas contra as interdições que nos assolam.

Hoje, como disse um poeta em um momento de “meia-noite da história”, é um tempo de fezes, maus poemas, alucinações e espera. Mas também há “bons poemas”, como os do Engenho, que, ao nos dizer que “a vida está interditada”, está também cavando por entre as brechas. Em seu teatro no Carrão, leva seu público a ver o que procuram esconder de nós, a pensar, questionar, e nos organizar para lutar.


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