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Diana Assunção: "Este livro é um golpe de morte ao feminismo liberal"

Diana Assunção

Diana Assunção: "Este livro é um golpe de morte ao feminismo liberal"

Diana Assunção

Reproduzimos abaixo fala de Diana Assunção, co-autora do Prefácio do livro "Nós mulheres, o proletariado", em sua live de lançamento.

"Bom, gente, boa a noite a todas e todos, um prazer enorme estar lançando pelas Edições ISKRA o livro “Nós mulheres o proletariado” da querida Josefina Martinez, e muito bom tê-la aqui hoje nesse lançamento, aqui junto com Letícia Parks que tive o prazer também de elaborar junto o prefácio desse livro. As intervenções das duas já são uma expressão bem potente do que é esse livro. Queria fazer um agradecimento especial para equipe ISKRA: Natalia Angyalossy, nossa diretora editorial, Thaís Oyola, diagramadora, que também adaptou a capa da Emma Gascó para edição brasileira, Luciana Vizzotto, que fez a tradução, Iaci Maria, que cuidou da preparação do texto, e a Vanessa Dias, que cuidou da parte nossa campanha de pré-vendas.

Então, queria colocar também algumas considerações, partindo já de todo panorama que a Josefina colocou expressando inclusive a situação da guerra na Ucrânia e também o resgate que a Letícia fez em relação à luta negra no Brasil, que no livro conta com um capítulo vibrante. Bom, nesse livro a gente se pergunta: Quando pensamos na palavra “proletariado”, o que vem à nossa mente? Na maioria das vezes, uma imagem de operários brancos de macacão. Em alguns outros momentos, a famosa frase de Karl Marx que finaliza magistralmente o Manifesto Comunista com “proletários de todo o mundo, uni-vos”. Mas e se esse imaginário começar a ser invadido por operárias fabris da China ao México, por trabalhadoras da saúde da Alemanha à África do Sul, por empregadas domésticas negras do Brasil às Filipinas, por professoras dos Estados Unidos à França. Quem é esse rosto feminino que em pleno século XXI sacode o imaginário de todos? Somos nós, mulheres, o proletariado.

Partindo disso, o que queria ressaltar aqui é a definição de que a crise capitalista em curso deixa evidente que somos nós mulheres, o proletariado. Por quê? Isso vai ter três dimensões, uma dimensão da composição da nossa classe, que é algo que estamos destacando no livro, ou seja, o peso de um proletariado feminino, uma classe trabalhadora com rosto de mulher. Uma dimensão dos efeitos da crise nesse proletariado, ou seja, a combinação entre crise e classe trabalhadora feminina aponta o nosso peso objetivo. Mas aí se liga com a terceira dimensão, que é o mote do livro, que é o impacto subjetivo de uma classe mais “feminizada” em movimento. Queria então explorar um pouco mais a segunda dimensão ligada diretamente ao momento atual, em que se reatualiza a ideia de “crises, guerras e revoluções”.

Como uma crise econômica pode mostrar categoricamente o impacto na vida das mulheres trabalhadoras?

Em primeiro lugar, o aumento da precarização do trabalho e os efeitos da reforma trabalhista e de todas as reformas. Para ter algumas estatísticas, hoje cerca de 10,5% das mulheres brancas ocupadas trabalham sem carteira assinada, 11,8% das negras também. Já 92% da categoria de serviços domésticos, o que significa 5,7 milhões de pessoas, são mulheres, sendo que dentre estas 3,9 milhões são negras ou indígenas. Segundo pesquisa da Fapesp de 2020, apenas 13,9% das mulheres trans e travestis têm emprego formal. Entre os precários e informais, sem estatísticas claras, as mulheres são a esmagadora maioria formando um enorme exército de terceirizadas e precarizadas. Em um cenário de crise, esses dados se potencializam. Há várias pesquisas que mostram que os efeitos da própria pandemia, quem dirá da crise econômica, levaram a taxas mais altas de precarização, perda de emprego, abandono escolar e aumento da violência.

Em segundo lugar, vale destacar o aumento do desemprego: segundo as estatísticas, 8,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho no terceiro trimestre de 2020 pelas consequências da pandemia. Em 2021, as mulheres chegaram ao recorde de 17,9% de desempregadas, com maioria também de mulheres negras. Então, neste ano de 2022 com este aprofundamento da crise, as mulheres se encontram ainda com forte peso na classe trabalhadora mas sofrendo as consequências de serem sua camada mais explorada e oprimida compondo com força o “exército industrial de reserva”, ou seja, os desempregados.

Mas também podemos apontar qual a relação entre aumento do preço dos combustíveis e trabalho doméstico, que faz parte do que é chamado de reprodução social. O efeito impactante que tem o aumento do preço dos combustíveis na vida concreta dos trabalhadores vai se desdobrar em consequências também em relação ao peso do trabalho doméstico. Se o trabalho doméstico hoje é baseado na utilização gratuita do serviço das mulheres em casa, geralmente impondo uma dupla jornada de trabalho, o que permite um rebaixamento dos salários (livrando os patrões de pagarem salários baixos que não precisem garantir limpeza, lavanderias, comida, etc), com o aumento dos preços e a corrosão dos salários, isso impacta diretamente no conjunto desses serviços feitos diretamente pelas mulheres porque os salários têm ainda menos condições de arcar com os serviços necessários para a manutenção do trabalho dos trabalhadores, então aumenta a carga de trabalho doméstico.

Portanto, as mulheres sentem mais fortemente nas costas a crise, e a crise mostra que a política reformista apenas de ampliação de direitos dentro do Estado capitalista é ineficaz, pois a crise depois vem e retira direitos conquistados. Essa é uma definição chave que perpassa todo o livro.

Então, retomando. Falamos "nós mulheres, o proletariado" porque viemos de anos em que vimos uma classe operária feminina em movimento, em luta, em mobilização, mas também na sua auto-organização, nas entranhas profundas do processo de resistência quando se é acometido pela dupla jornada, pela precarização, pelas consequências da reprodução social, pelo peso do patriarcado. Qual a relação entre a greve por Pão e Rosas no começo do século XX, a faísca feminina que inaugurou a grande Revolução Russa de 1917, e as recentes lutas de trabalhadoras da saúde contra a pandemia, ou as greves das operárias da Ford em Dagenham? Em todos esses processos de diferentes magnitudes, na prática, a luta de classes se alia à luta das mulheres em que muitas levantam a cabeça, mesmo ante uma opressão milenar, para dizer que não aceitam mais essas condições, não aceitam mais serem escravizadas pelos capitalistas que se aproveitam da nossa opressão para melhor explorar. Hoje, em pleno século XXI, as mulheres supostamente “dominaram o mundo”: são presidentes, dirigem multinacionais, estão em todos os lados. Essa é a versão dos exploradores e do feminismo liberal: a história real, da luta de classes, é que esses cargos de poder não mudam a condição de opressão e exploração da grande maioria de mulheres e, ainda que queiram cooptar nossa luta apresentando um “capitalismo feminista”, a verdade é que nunca sofremos tanto com essas condições de miséria e precarização.

Mas tudo isso se dá com um novo peso desse proletariado feminino. Que hipóteses isso pode trazer? O impacto dos novos movimentos de mulheres por igualdade e as tentativas de cooptação podem empoderar um setor da classe operária feminina fazendo-a mais perigosa do que cabe nas propagandas “feministas” na TV? Essas perguntas estão em plena atualidade. Por exemplo, quando vemos greves como a dos professores e professoras de Minneapolis, essa hipótese se coloca fortemente. Uma greve que ocorre pela primeira vez depois de mais de 50 anos com 4 mil professores e profissionais de apoio à educação, em sua maioria mulheres e negros, que lutam por condições de trabalho e aumento salário, além de aumento de apoio à saúde mental dos alunos e pela permanência dos educadores negros. Uma greve eletrizante que tomou as ruas do estado de Minessota, nos EUA, onde uma professora de artes declarou “Nunca me senti tão poderosa como me sinto nessa greve”. Este empoderamento de classe, digamos assim, é o que nos interessa.

E assim como nos Estados Unidos aqui no Brasil em Minas Gerais os professores e os trabalhadores da educação, apesar de suas direções, também estão em greve por melhores salários e em defesa de condições para garantir uma educação de qualidade para a população, claramente com uma composição feminina na linha de frente, e aqui, como nos Estados Unidos, a unificação de todas as lutas em curso, a aliança com os estudantes e a população, além da auto-organização com comandos de greve é a chave para que a classe trabalhadora possa garantir seus direitos frente à crise econômica internacional. Isso vai significar, também, se falamos de um proletariado com rosto feminino e negro que os debates sobre feminismo e luta anti-racista não se coloquem alheios à luta contra as burocracias sindicais que atuam como freios de contenção da nossa luta inclusive pra separar as demandas da classe trabalhadora da demanda das mulheres e negros. Assim também vimos na brava luta das trabalhadoras e trabalhadores do bandejão da USP, que fizeram uma combativa greve para evitar que a universidade de excelência descarregasse a crise pandêmica nas costas dos trabalhadores que garantem todo o serviço de alimentação dos estudantes, e foi um grande destaque dessa greve a atuação das mulheres como linha de frente, representantes dos trabalhadores nessa luta.

Esses processos de luta somente reforçam a necessidade de um programa claro frente à crise e contra o governo Bolsonaro e Mourão. E ainda que nossa luta seja para colocar fim à toda forma de exploração e não apenas combater os seus “excessos”, é preciso que nos coloquemos na linha de frente da batalha pelo fim da precarização do trabalho e pela igualdade salarial. O trabalho precário no Brasil, inclusive, atinge em cheio categorias com ampla maioria de mulheres, como a limpeza. As mulheres negras, além de serem maioria entre as terceirizadas, também são maioria entre as empregadas domésticas, uma herança direta da escravidão em nosso país. Nas moradias das classes média e alta, a realização do trabalho doméstico é quase exclusivamente feminina. No campo, as trabalhadoras pobres sofrem com as condições arrebatadoras de trabalho que destroem seus corpos. É um retrato do Brasil profundo e da milenar opressão de gênero que arranca a vida das mulheres.

No chão das fábricas, onde está a ditadura patronal, as operárias são submetidas ao repetitivo e intensivo trabalho fabril, enclausuradas na linha de produção, alienadas do produto que criam, subordinadas ao assédio moral constante e também convivendo com o machismo e o atraso na própria classe operária, entre seus colegas que ainda não entenderam que a opressão é utilizada pela classe dominante para dividir e enfraquecer a nossa classe. A divisão de postos de trabalho nas fábricas entre homens e mulheres é expressiva, muitas vezes relegando grande parte do trabalho manual às mulheres. Essa divisão reforça o que chamamos de divisão sexual do trabalho, muitas vezes usada como justificativa para exigir maior qualificação dos homens para funções menos alienadas.

Essa precarização se expressa de forma grotesca na diferença salarial entre homens e mulheres e entre negros e brancos. Em 2019, as trabalhadoras brasileiras ganhavam 28,7% a menos que os trabalhadores homens, considerando os ganhos de todos os trabalhos. Já as mulheres negras brasileiras ainda não conseguiram alcançar nem 43% do rendimento total dos homens brancos.

Mulheres terceirizadas, temporárias, estagiárias, informais, domésticas, donas de casa, desempregadas. O batalhão de professoras e suas jornadas “extraoficiais”, suas vozes roucas e o salário de miséria compõem o cenário feminino da mão de obra assalariada no Brasil. Esse retrato da precarização é extenso e sem limites e se expressa também com o que é chamado de “uberização” do trabalho através de empresas de aplicativo que destroem qualquer direito dos trabalhadores e trabalhadoras. As reformas em curso no Brasil de Bolsonaro buscam potencializar esse cenário, dando mais mecanismos à classe dominante para que aumente seus lucros com a exploração do trabalho feminino e das mulheres negras em especial.

É neste Brasil profundo onde foram escritos os capítulos mais intensos da história da luta de classes no país. Das mulheres cabanas na Cabanagem que atravessou os estados do Pará, Amazonas, Amapá, Rondônia e Roraima. Da Sabinada na Bahia, da Farroupilha no Rio Grande do Sul. Das insurretas escravizadas e livres que se organizaram junto a seus amigos, familiares e companheiros na Revolta dos Malês; das que colaboraram com a Greve Negra de ganhadoras e ganhadores na cidade de Salvador de 1857, experimentando pela primeira vez no Brasil o método que se tornaria típico da luta de classes entre operários e burgueses; das guerreiras quilombolas das centenas de quilombos que se construíram para fugir da escravidão, dentre eles o mais conhecido de todos, o Quilombo de Palmares.

Todas essas experiências de luta feminina inseridas na luta de classes são potentes porque trazem lições e também se conectam. Há elementos comuns nos distintos processos para além de suas especificidades e temporalidade? Acredito que sim e nos ajudam a pensar a luta hoje. Em um momento delicado que vivemos no país, com um odioso governo de extrema-direita comandado por Jair Bolsonaro e o General Mourão, contando com as instituições do regime golpista como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir todas as reformas antioperárias, se apresenta um cenário no qual não podemos depositar nossas ilusões nas instituições e eleições, inclusive quando vemos a conciliação com setores como Alckmin, como vemos o PT fazer reproduzindo uma política de conciliação de classes e dando as mãos aos golpistas de ontem que nos atacam permanentemente se preparando para administrar toda a obra econômica do golpe institucional. A isso se somam as políticas que o PT teve por exemplo em relação à ocupação das tropas brasileiras no Haiti ou a legalização do aborto, nos negando esse direito durante todos os seus 13 anos de governo em acordo com a bancada evangélica. Enfrentar a extrema-direita que nos ataca todos os dias não se dará reproduzindo os velhos reformismos. Por isso, neste momento também vemos uma crise histórica do PSOL que com a maioria de sua direção se ajoelha diante do PT ou vê uma enorme fuga de deputados para partidos burgueses e de direita, com figuras que defendiam o feminismo e o anti-racismo por fora de qualquer política de classe, inclusive agora o PSOL faz uma federação com a Rede, partido burguês e golpista que é contra o direito ao aborto aborto. Por isso, também nós estamos neste momento construindo o Polo Socialista e Revolucionário, batalhando pra que seja uma alternativa de independência de classes na luta de classes e nas eleições. Neste sentido, a perspectiva marxista revolucionária permite a leitura da luta de classes como motor da história, separando-se das experiências de burocratização stalinista que, diga-se de passagem, atacaram frontalmente as mulheres, e nos dá as ferramentas para preparar uma luta pela emancipação feminina e de toda a humanidade, o que só será possível destruindo o capitalismo e abrindo espaço a uma sociedade sem exploração e opressão.

É nesse sentido que estes movimentos que vimos nos últimos anos, com as mulheres se levantando em distintos países, podem também dar algumas pistas de hipóteses sobre a recomposição da classe trabalhadora como sujeito revolucionário, tendo nas mulheres trabalhadoras a sua vanguarda. Serão essas mulheres, “empoderadas” por todo o discurso feminista, que poderão, também, sacudir os sindicatos burocratizados e majoritariamente masculinos e brancos? A ideia da igualdade de gênero e de direitos para as mulheres e, especialmente, para as mulheres negras, pode ser uma faísca que coloque as trabalhadoras na linha de frente da luta não somente contra os ataques, mas contra o capitalismo? Essas são algumas interrogantes que constatam que a revolução no Brasil terá rosto de mulher e, particularmente, de mulher negra, como os extratos mais explorados e oprimidos da nossa classe, sendo parte de uma luta necessariamente internacionalista. Processos como estes podem, como subproduto de episódios intensos da luta de classes, criar camadas de dirigentes mulheres em quantidade e qualidade superior ao que vimos em outros momentos históricos, onde a classe trabalhadora era majoritariamente masculina.

Essas ideias são um golpe de morte ao feminismo liberal que nos apresenta o estreito horizonte de uma realização individual. Mas, ainda que nossa concepção não se reduza a um obreirismo economicista, uma vez que como marxistas enxergamos que a opressão de gênero atravessa todas as classes sociais, também identificamos claramente que a combinação entre opressão e exploração tem efeitos infinitamente mais devastadores para a vida das mulheres trabalhadoras e negras. Por isso, quando querem nos diluir em uma identidade de gênero que não nos fornece nenhum tipo de pertencimento real, é a hora que precisamos olhar de olhos abertos para a classe operária deste século XXI e, quando perguntarem quem somos, podemos responder: somos nós mulheres, o proletariado. Somos parte de uma poderosa classe em movimento apesar das direções burocráticas, que precisa buscar a unidade programática entre homens e mulheres, negros e brancos, de uma mesma classe, atuando ao lado da juventude e dos movimentos sociais, mas com a certeza de que essa potência feminina nas entranhas da classe operária brasileira e mundial é, certamente, a camada da classe operária que mais sofre com o velho e, por isso, acreditamos fortemente que serão a linha de frente pela luta por um novo futuro para a humanidade, que só pode ser uma sociedade livre de toda opressão e exploração: estamos falando do comunismo."

Veja também: Prefácio do livro "Nós mulheres, o proletariado"


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED
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