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Diálogos possíveis entre Barbie (Gerwig, 2023) e They Live (Carpenter, 1988): Spoiler, a nave-mãe é a Mattel

Luno P.

Diálogos possíveis entre Barbie (Gerwig, 2023) e They Live (Carpenter, 1988): Spoiler, a nave-mãe é a Mattel

Luno P.

No meio de uma histórica greve em Hollywood, onde roteiristas e atores denunciam absurdos níveis de exploração e cruzam seus braços contra a indústria cultural estadunidense das grandes distopias e heróis com cuecas por cima das calças, Greta Gerwig desponta com talvez um dos filmes mais aclamados do ano: Barbie

Quando penso em marcos históricos do cinema, sempre fujo para Kubrick e C. Clarke que trouxeram o existencialismo para as telas com o seu mais que famoso 2001 - Uma Odisseia no Espaço. A cena da aurora dos homens, onde os primeiros hominídeos descobrem o advento das ferramentas (o osso) após a chegada de um monólito prometéico, até hoje expressa em estética a ideia dos "fatos que mudam tudo" na evolução do homem. Agora, imaginemos o advento do osso transmutado em pequenas bonecas bebês de porcelana, com os hominídeos sendo meninas cansadas de brincar de casinha e afazeres domésticos e o grande monólito do esclarecimento como uma gigante Barbie interpretada por Margot Robbie. Essa é a cena de abertura do novo filme de Greta Gerwig, Barbie (2023), e nela já vemos o tom geral do filme: as bonecas Barbie mudaram tudo.

Essas bonecas ofereceram novos modelos de imagem para jovens meninas, que não precisavam mais recorrer ao fardo de sempre brincarem como mães, mas agora poderem ter a possibilidade de brincar como astronautas, presidentes, trabalhadoras da construção, médicas e tudo mais, ou ao menos é o que o filme tenta nos vender.

Outro filme que também marca a história do cinema, pelo menos a minha história com esta arte, é o filme They Live (1988), de John Carpenter. Nele, o personagem Nada, um sem-teto que chega a Los Angeles em busca de um emprego. Enquanto está na rua, ele vê um pregador de rua alertando que "eles" recrutaram ricos e poderosos para controlar a humanidade. Naquela noite, um hacker assume as transmissões de televisão, alegando que os cientistas descobriram sinais de que estão escravizando a população e mantendo-a em um estado de sonho, e que a única maneira de detê-lo é desligar o sinal em sua fonte. Nada descobre que um tipo específico de óculos escuro revela mensagens subliminares na mídia que nos dizem para consumir, reproduzir e se conformar. Os óculos também revelam que muitas pessoas são, na verdade, alienígenas com rostos semelhantes a crânios. Esses são os capitalistas parasitas que mandam em tudo.

Não, a relação com Barbie não se dá em nenhum sentido de referência estética. Apenas acho que o filme Barbie seria melhor apreciado com os óculos de Nada, enxergando as mensagens que existem por trás daquilo que nos vendem. Dito isso, viajemos para Barbieland.

Dentro da Barbieland, os personagens vivem num matriarcado, onde todos os poderes são exercidos por mulheres. Tudo é belo, rosa e coeso. Nossa protagonista, Barbie Estereotipada (Margot Robbie), assim como todas as outras barbies, têm as suas necessidades mais básicas facilmente resolvidas, da maneira mais artificial possível. Gerwig transcreve isso nas telas com invejáveis níveis de maestria, se auxiliando de inúmeras formas estéticas que rompem com a excessividade do "real" da onda dos live-actions e de fato construindo um belo mundo Barbie da forma como qualquer criança imaginaria.

Com o auxílio de uma narração metalinguística que brinca com o espectador a todo o momento, o filme te leva para caminhos que ninguém espera de um filme sobre a famosa boneca Barbie. Talvez, essa seja a parte que torna o filme um alvo dos conservadores, que agora escolhem a obra como sua nova mamadeira de piroca. Mas os elementos progressistas que dão medo nos conservadores não necessariamente se constituem como uma crítica pela esquerda, mais parecem uma caricatura daquilo que se costumou chamar de fenômeno feminista, satirizando a própria forma de apropriação da crítica pelo lucro de maneira que chega a ser quase sincericídio. Nas próximas linhas, viajaremos por spoilers, portanto, cuidado!

Barbie Estereotipada pensa na morte em meio a uma festa em sua Casa dos Sonhos, durante uma coreografia entre Barbies e Kens, o quê é recebido com estranhamento por todos os outros personagens, até que Barbie Estereotipada consegue mascarar o assunto e voltar a dançar. Aí está o começo do primeiro conflito. Logo após, temos uma sucessão de acontecimentos que colocam em crise o mundo perfeito da Barbie Estereotipada, sendo o seu ápice os pés de Barbie Estereotipada se tornarem chatos, planos, diferentes de todas as outras barbies com pés perfeitos para caber em qualquer salto alto, assim como o aparecimento de celulites. Isto leva Barbie Estereotipada a recorrer a Barbie Estranha, com estilo meio punk, cabelos desarrumados e roupas e maquiagens hiper coloridas, aquela Barbie que sofreu com os experimentos estéticos de uma criança sob posse de uma tesoura e tinta.

Sem mais delongas, Barbie Estranha lança a letra: o véu que separa a Barbieland e o mundo real se rompeu, o que foi causado pela relação entre a Barbie Estereotipada e a mãe de sua dona, uma secretária da Mattel, Gloria (America Ferrera), com uma péssima relação com sua filha adolescente, Sasha (Ariana Greenblatt). Aqui, temos uma primeira virada da história, o que vemos ao longo das próximas cenas é uma verdadeira odisseia de Barbie para resolver o seu problema de celulites e pé chatos, desencadeando numa sensacional sequência de cenas onde nos encaramos com debates do âmbito da questão de gênero e feminismo, e de certos poucos comentários sobre como a Barbie é simplesmente um produto feito para oferecer uma imagem irreal para as mulheres do mundo real, uma imagem fascista, todos feitos por Sasha, que nada mais é do que a representação caricatural de uma nova juventude cada vez mais feminista e questionadora, aqui parecendo apenas uma bully, mas também por Gloria, representação das mulheres afundadas no trabalho que muitas vezes tem até seu direito a maternidade plena arrancado.

Barbie Estereotipada se dá conta que no mundo real não há matriarcado, mas sim a opressão machista que a transforma em apenas um objeto na mão dos homens, no intermédio disso, Ken se enfrenta com sua falta de personalidade, que se resume a ser apenas o Ken, um apêndice de Barbie. Nesta outra Odisseia secundária, Ken descobre o patriarcado e, posteriormente, aplica-o em Barbiland, transformando esse belo mundo coeso em um xexelento lugar chamado Kendom, a personificação de qualquer tio machista de meia idade agora em forma de cidade, onde tudo se resume a cavalos, cervejas e mulheres sendo apenas as empregadas. Além disso, somos introduzidos aos chefes da Mattel, homens brancos que pensam apenas no futuro das crianças, e no seu lucro.

A relação da idealização do que é ser mulher na figura da Barbie em contraposição com Gloria, uma mulher real, invasão do patriarcado em Barbieland por parte de Ken e os donos da Mattel como homens brancos um pouco excêntricos demais formam a tríade dos elementos mais interessantes do filme, e do seu argumento político. A relação que produzem na obra se mostra uma resposta a uma juventude cada vez mais crítica ao capitalismo e com referência no movimento feminista internacional, com as meninas cada vez mais questionando as normas de gênero. Vemos a reação conservadora do patriarcado contra a Barbieland, vemos as contradições entre o real e o ideal se chocando e os donos da Mattel simplesmente não sabendo o que fazer para evitar uma verdadeira crise. Barbie Estereotipada precisa salvar o dia e, por isso, junto de Gloria, Sasha e Barbie Estranha cria planos para salvar a Barbieland do julgo do patriarcado, e o faz com a ajuda de Ruth Handler, criadora da Barbie, apresentada no filme como um fantasma muito simpático de uma empresária com problemas de evasão fiscal.

Absolutamente tudo é questionado. Uma verdadeira revolução se produz. Absolutamente tudo muda. Até que percebemos que nada realmente mudou, talvez apenas a vontade de ser humana da Barbie Estereotipada se concretiza. Não há contradição nos donos da Mattel serem apenas expressão machista da produção de lucro por meio dos anseios mais sinceros das mulheres. Nem mesmo o machismo da vida real, ponto de inflexão na mente da Barbie Estereotipada, volta a ser um problema. Os modelos daquilo que deveria ser uma mulher, criticados por Gloria e Sasha, continuam a ser os mesmos. O belo mundo rosa e coeso também continua a ser o mesmo, agora com os Kens buscando outros sentidos de personalidade para além da existência das Barbies.

O fato é: o filme é uma tentativa de redenção das Barbies frente a nova juventude que nasce no seio da crise capitalista. Mulheres jovens que tiveram seu futuro de mil e uma possibilidades cortado pela metade e que se levantam contra o machismo. Para isso, é preciso de novas bonecas, ou, ao menos, Barbies que se adaptem a esses tempos. Talvez não necessariamente Barbies depressivas e com celulite, mas Barbies feministas, questionadoras, até mesmo capitalistas com problemas de evasão fiscal, ainda que sempre se guiando pelo padrão de feminilidade adequado aos limites da opressão de gênero e da exploração.

Por trás do seu conteúdo aparentemente progressista, se esconde em letras garrafais a mensagem subliminar de "comprem nossa nova Barbie versão Margot Robbie". Talvez, Barbie Estereotipada levasse mais até o fim seu descontentamento se trouxesse Barbies e Kens para o mundo real e expropriassem a Mattel, assim como Nada explode a nave-mãe para libertar os humanos do transe parasitário do consumismo. Ao menos, talvez, o filme ganharia uma conclusão um pouco menos pessimista, já que nele tudo se transforma até que vira aquilo que sempre foi, e que sempre deverá ser, como uma verdadeira farsa.


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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