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CENTENÁRIO REVOLUÇÃO RUSSA | Desmascarando 7 mentiras sobre a Revolução Russa que a grande imprensa propagou

Simone IshibashiRio de Janeiro

quarta-feira 8 de novembro de 2017 | Edição do dia

O centenário da Revolução Russa se deu em meio a um ano de crises políticas, econômicas e sociais no Brasil e internacionalmente. Se já não seriam de surpreender as distorções históricas deliberadamente construídas pelos jornais burgueses sobre a Revolução Russa, em meio ao atual contexto instável as vociferações são ainda mais ruidosas. Afirmações levianas, descontextualizadas, ou mesmo falsas foi o que não faltou na cobertura da grande imprensa. Trataremos aqui de desmistificar algumas delas, ordenadas pela cronologia dos fatos da Revolução Russa:

1ª mentira: a defesa do governo provisório de fevereiro de 1917

O governo provisório sucedeu a queda do czarismo com a revolução de fevereiro de 1917. Chefiado num primeiro momento pelo príncipe Lvov, era um governo liberal-burguês. Depois foi dirigido por Kerenski, membro dos mencheviques, partido que defendia que a Rússia deveria passar por um longo período de capitalismo para só depois pensar em uma mudança social. Na nota de “Comemorar? Não há nada para comemorar”, publicada em 05/11 com um tom “trago verdades” o autor defende o governo provisório, e diz que esse “apostava em trazer a Rússia para o concerto das grandes nações europeias”. A operação ideológica aqui é clara. O autor quer dar a entender que a revolução russa deveria ter parado em sua etapa de “modernização democrática”, consolidando o poder do governo provisório. Essa posição esteve no centro de vários editoriais da Folha, Globo e Estadão sobre a Revolução Russa.

O que os defensores do governo provisório não dizem é que Kerenski não queria tirar a Rússia da I Guerra Mundial, como os bolcheviques defendiam, mesmo tendo a guerra destroçado e acabado com a vida de milhões de pessoas. Estima-se em mais de 7 milhões de mortos e feridos entre camponeses e trabalhadores pobres russos. Nisso se resume a “aposta em trazer a Rússia para o concerto das grandes nações europeias”, que o autor do artigo para a Folha de S. Paulo comemora. Morte e destruição para que os capitalistas emergentes russos pudessem garantir mais lucros e sua inserção no sistema mundial. E claro, a defesa da pobreza para a maioria dos camponeses, mediante o controle das terras garantido aos latifundiários.

2ª mentira: Os bolcheviques eram autoritários por isso dissolveram a Assembleia Constituinte em outubro de 1917

Ainda na mesma nota citada, depois de comparar Lenin a Hitler o autor diz que o primeiro havia “dissolvido a Assembleia Constituinte”, para sustentar sua tese sobre o autoritarismo leninista. O que ele não diz é que as listas para a eleição da Assembleia Constituinte em 1917 haviam sido feitas antes de Outubro. O partido Socialista Revolucionário (SR), composto pelos camponeses ricos e pobres, apresentou-se numa única lista. Porém, com a revolução de Outubro os SRs sofreram uma ruptura. Os latifundiários ricos ficaram contra os camponeses pobres, mandando prendê-los. Esses por sua vez passaram a apoiar os bolcheviques e sua luta contra o governo provisório. Mas como as listas da Constituinte haviam sido feitas prévias a isso, os nomes da ala direita estavam na mesma lista que os da esquerda, o que obrigou os camponeses pobres que estavam a favor da revolução a votarem nessa lista. Disso derivou “esse paradoxo político inexplicável de um dos dois partidos que mandaram dissolver a Constituinte, a saber, o dos socialistas revolucionários de esquerda ter sido eleito”, nas palavras de Trotski. Não se trata de uma dissolução arbitrária movida pela sanha autoritária que estaria no DNA dos bolcheviques, como quer fazer crer o crítico da Revolução Russa da Folha de S Paulo, mas de que após Outubro manter a Constituinte tal como havia sido feita não correspondia sequer ao partido que a havia ganho. E menos ainda à vontade da imensa massa de camponeses pobres que se lançaram em defesa da tomada do poder junto aos bolcheviques.

3ª mentira: o objetivo de Lenin era instituir a ditadura de partido único

Essa bobagem é repetida à exaustão. No já citado artigo da Folha de S Paulo, em editorial do Globo, que mereceu uma resposta aqui, para citar só alguns. O objetivo de Lenin não era instaurar um regime de partido único, mas a conquista da mais ampla democracia de massas organizadas nos sovietes, ou conselhos, que surgiram na revolução de 1905 e reuniam os representantes eleitos e revogáveis por todos os locais de trabalho na Rússia. Os sovietes foram o mais amplo organismo de democracia direta. Lenin via a relação entre soviete e partido como a chave para a constituição de um Estado de novo tipo.

Os que insistem em negar isso falseiam não apenas a prática política de Lenin, e do partido bolchevique que ele construiu antes da sua burocratização sob Stalin, mas várias de suas obras mais importantes, dentre as quais “O Estado e a Revolução” de 1918. Nesse texto Lenin defende sua estratégia para a transição entre o Estado capitalista que funciona como um instrumento de salvaguarda dos interesses dos capitalistas, para se transformar um Estado que realmente seja dirigido pelos trabalhadores. Tomando as lições da Comuna de Paris, Lenin aponta medidas como a revogabilidade de todos os políticos pelo povo, que não deveriam ganhar mais que o salário de um trabalhador qualificado, bem como o fim da divisão entre o trabalho legislativo e o executivo. Toda sua estratégia estava voltada a que as amplas massas de trabalhadores se transformassem em sujeitos políticos, e que o próprio Estado operário fosse criando as condições para desaparecer.

4ª mentira: Stalin era herdeiro político da estratégia de Lenin

Apesar de defenderem um Estado que transitasse ao comunismo, Lenin e Trotski tiveram que se enfrentar com as duras condições da guerra civil que se abateram sobre o recém-nascido Estado operário russo. Tropas inglesas, americanas, japonesas, holandesas, dentre outras, uniram-se ao Exército Branco que reunia os partidários do czar e os liberais na tentativa de derrotarem a Rússia revolucionária. Em meio ao rastro de destruição que os exércitos estrangeiros e brancos promoveram, o partido bolchevique foi obrigado a adotar duras medidas de exceção no campo econômico, político e militar.

Essas medidas excepcionais correspondentes à necessidade do centralismo exigido contra a intervenção da burguesia local e estrangeira foram transformadas em norma por Stalin, que tratou de justificar seu aprofundamento após o fim da guerra civil, com o regime de partido único e a perseguição à oposição no interior do próprio partido bolchevique, intensificada após 1924. Antes de falecer, Lenin realiza em seus discursos várias indicações do problema da burocratização, e da relação entre partido e Estado. No XI Congresso afirma que “Se estabeleceram relações errôneas entre o partido e as organizações soviéticas (...) Formalmente resulta muito difícil remediar esses problemas, pois nos governa um partido único ”.

Stalin passou a propagar que a URSS sob seu domínio não seria um Estado de transição em uma etapa ainda inicial. Alegava que o socialismo já estaria vigente na URSS em suas “nonas de décimas partes”, e que portanto, as classes já teriam desaparecido, o que por sua vez eliminava automaticamente a existência de partidos. Também rompeu completamente com Lenin ao adotar a estratégia de “socialismo num só país”. Isso porque o internacionalismo sempre foi um princípio para Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo e todos os comunistas até então, que entendiam tal como Marx demonstrara que a expansão internacional do capitalismo exigia que a luta pela revolução socialista também se internacionalizasse. Se havia alguém que representava o legado de Lenin sendo sua legítima continuidade, esse era Trotski que analisou detidamente as razões da ascensão de Stalin, formulou uma estratégia para combate-lo, fundou a Oposição de Esquerda e a IV Internacional e terminou assassinado no México em 1940.

5ª mentira: “Os bolcheviques deixaram um rastro totalitário de 20 milhões de mortos”

Esse é um argumento que muitos setores democrático-liberais, ou mesmo de direita, colocam para tentar apagar a importância da Revolução Russa, mas apareceu formulado dessa maneira no especial elaborado pelo jornal Estadão. Não dizem que um amplo número de mortos se deu durante os anos da guerra civil, ou seja, pela invasão das tropas imperialistas estrangeiras aliadas à reação interna. Só aí estima-se que foram entre 5 e 9 milhões de mortos. Isso não se deu pela simples ação “totalitária dos bolcheviques”, mas pela recusa dos capitalistas russos e estrangeiros em aceitar que a maioria dos trabalhadores e da população do país havia marchado sobre o Palácio de Inverno para tomar o poder, sem praticamente nenhum derramamento de sangue.

A segunda cortina de fumaça que tentam jogar é confundir os mortos sob a ditadura stalinista com os mortos dos “bolcheviques”. Conforme se estabelece, Stalin impõe uma intensa repressão que é sentida inclusive pelos próprios bolcheviques, julgados, condenados, expurgados e assassinados, como Trotski, antes, durante e após os Processos de Moscou. Entre os anos de 1936 e 1938 Stalin legaliza a tortura nas prisões e manda para os campos de concentração milhões de pessoas, além de executar mais cerca de 1 milhão. Ou seja, o “rastro totalitário” de mortos se dá contra os bolcheviques e não em seu favor.

6ª mentira: a burocratização da URSS era inevitável

Mesmo quando analistas da grande imprensa um pouco mais honestos sugerem que Stalin representa uma quebra em relação a tradição comunista de até então, e nomeiam a implicação da guerra civil para isso, é muito raro que cheguem até a raiz da questão. E essa é a de que a conclusão de qualquer exame historicamente detido abre o caminho para chegar: a de que a URSS não estava destinada a se burocratizar. Isso se deu mediante uma série de condições materiais. Guerra civil, atraso das condições russas pré-revolução, e acima de tudo de seu isolamento e da derrota da possibilidade da revolução socialista nos países da Europa. A potencialidade revolucionária se expressou com força na Europa nos anos subsequentes. Houve processos revolucionários na Alemanha em 1923, na Espanha durante os anos 1930, e na China em 1926, quando essa ainda fazia parte da III Internacional. A derrota desses processos, para as quais a estratégia de Stalin contribuiu, reforçou o caminho para a consolidação da burocratização na URSS ao bloquear a dinâmica internacional da revolução socialista. Mas não era uma fatalidade.

7ª mentira: a Revolução Russa não tem nenhuma vigência

Como ápice de tudo isso, os artigos dos jornais em questão dizem “Não há o que comemorar da Revolução Russa!”. Ou então que seria uma experiência do passado, trágica, que não guarda mais nenhuma vigência. Nada mais mentiroso. A Revolução Russa deixou o maior legado revolucionário, com um código civil extremamente avançado que concedia direitos às mulheres como não havia em 1918, elevou as condições de vida de milhões de trabalhadores da cidade e do campo, e demonstrou que o capitalismo pode ser derrotado.

O capitalismo mostra todos os dias que está em decadência, com a retirada dos parcos direitos dos trabalhadores, maior concentração de renda, milhões na pobreza, dramas como os dos imigrantes, guerras e tensões mundiais. O capitalismo hoje mais destrói do que faz avançar a humanidade. Enquanto houver capitalismo as lições da Revolução Russa seguem sendo vigentes. Se almejamos de fato uma superação que não seja essa atual condição de miséria crescente, e crise civilizatória, teremos que levar adiante uma série de processos revolucionários. E para isso as lições da Revolução Russa seguem sendo insuperáveis.

(1) LENIN, VI. Obras Escolhidas, Tomo III, pág. 917. Buenos Aires, Editorial Progreso, 1980




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