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FUTEBOL | Democracia Corinthiana: quando o futebol desafiou a ditadura – Parte III

Chega a terceira e última parte da apaixonante história do processo vivido durante a ditadura no Corinthians de São Paulo.

segunda-feira 18 de julho de 2016 | Edição do dia

Assim como houve aqueles que consideraram algo novo e inovador o processo de democracia direta que surgia dentro do Corinthians, em contrapartida, os setores mais conservadores que viam como ilógico que os jogadores tomassem suas próprias decisões começaram a questionar esta forma de levar adiante um clube e colocaram a pecha de “anarquia corinthiana”. Como era de se esperar, a imprensa conservadora começou a questionar isto diante de cada partida perdida, ou desclassificação de algum torneio, sem colocar em questão a forma de jogar, mas atacando diretamente a autogestão do clube brasileiro. Diante desses ataques à democracia, dentro das fileiras corinthianas surge um novo slogan: “Ser campeão é detalhe, mas sempre com democracia”; a busca pelo êxito não é algo apenas dos argentinos, sabiam que para sobreviver era preciso ganhar as partidas, e por sorte os bons resultados, em geral, acompanhavam o clube.

Em uma nova reunião de contratações surge a oportunidade de contratar a quem foi parte da seleção brasileira em três oportunidades: Emerson Leão, um excelente arqueiro, mas que foi apresentado diante do plantel pelo diretor de futebol como “arrogante, orgulhoso, falso, prepotente, mal falado, egoísta, mas um grande goleiro e um excelente jogador de futebol”. Quando foi perguntado a Leão sobre a Democracia Corinthiana, disse: “Na democracia todos temos direitos e obrigações, e se não voltassem a se repetir as façanhas dos jogadores, de quem ia ser a culpa? De Leão! Minha hierarquia é o treinador de futebol, os dirigentes e ninguém mais, nenhum jogador me vai dar ordens”. Este goleiro não entendia que parte da democracia direta é justamente compartilhar aquelas culpas que foram decididas por maioria e que as decisões se tomam absolutamente entre todos. Nascem assim as primeiras fissuras entre os jogadores e surgem subgrupos.

Em um ensolarado domingo de 1983, no estádio do Pacaembu, milhares se juntavam no estádio, esta vez não para ver uma partida de futebol, mas para participar de uma manifestação anti-imperialista organizada pelo PT, de Lula da Silva; o pano de fundo era assim a primeira marcha para reivindicar eleições diretas para presidente do país.

No plano futebolístico, o Corinthians chega à semifinal do Campeonato Paulista, enfrentando o Palmeiras, uma partida difícil, na qual o rival teve a oportunidade de fazer vários gols, mas não conseguiu definir. Sócrates, ao contrário, numa única só jogada fez o gol com um chute de fora da área, dando ao clube a possibilidade de jogar a final contra o São Paulo, como em 1982.

Como a Democracia Corinthiana não era apenas dentro do estádio e os jogadores tinham um grande compromisso social, para tornar mais público o dia da final contra o SPFC, o time do Corinthians entra em campo com uma faixa que dizia: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, mostrando aos golpistas, nas suas próprias caras, que havia milhões por trás dos que pediam a democracia que lhes foi negada no país. Na partida, Sócrates marca um gol e o Corinthians novamente ganha o título de campeão paulista. Diante de tantos bons resultados, os jogadores se valorizaram e os clubes europeus brigavam para ver quem contrataria Sócrates.

No plano político se apresenta a Emenda Dante de Oliveira, conhecida assim por conta do deputado mato-grossense que a elaborou, que pedia eleições diretas para o ano seguinte. Começam a surgir massivas mobilizações em todos os cantos do país; com essa reivindicação nas costas da camisa do Corinthians, sai uma nova consigna, curta e concisa, “Diretas Já!”. As marchas eram cada vez mais massivas, com milhares de pessoas exigindo o direito ao voto.

Essa movimentação culminou, em abril, na grande concentração, no Vale do Anhangabaú, onde participaram mais de um milhão de pessoas, No palco dessa concentração se encontraram Casagrande, Wladimir e Sócrates para dizer que os jogadores de futebol eram também parte da sociedade e das reivindicações. Sócrates faz um anuncia que marcará a fogo sua carreira: “Se a emenda Dante de Oliveira for aprovada pelo Senado, eu não vou embora do país!”, As manifestações se tornam cada vez mais massivas, tomando as ruas do Brasil.

Chega o dia em que o Senado vai votar a emenda das eleições diretas; milhares viajam ao Brasil dispostas a defender seu direito ao voto; mas como mostrou o impeachment à Dilma Roussef este ano, nesta instituição, uns poucos decidem e não lhes importa o futuro do povo brasileiro. Nesse 25 de abril, às 2h da manhã, se define a votação da Emenda: não é aprovada por apenas 22 votos; não haveria eleições diretas pelos próximos anos. Dizem que nessa noite não houve nenhum tipo de repressão, não porque a polícia não queria, mas porque havia tanta gente na rua que não havia suficiente efetivo para reprimir.

O fim da Democracia Corinthiana

Como Sócrates havia prometido, se não fosse aprovada a Emenda, ele partiria do país, e assim foi: a Fiorentina, da Itália, o contratou e ali ele jogou pelas temporadas de 1983 até 1985. Em 1984 começa a se formar no Brasil a união dos treze clubes mais importantes do país, conhecido como “Clube dos 13”, em que para participar a figura do presidente era chave. Os resultados não acompanharam o Corinthians: nos anos de 1984 e 1985 teve más campanhas e os clubes brasileiros começaram a formar gestões ao estilo Europeu, com capital privado; e também se propagou um novo conceito de gerenciamento esportivo.

Os resultados da Democracia Corinthiana, que somente durou alguns anos, foram altamente positivos: a equipe chegou à semifinal do campeonato local de 1982 e conquistou o Campeonato Paulista em 1982 e 1983. Além disso, durante o período de autogestão o Corinthians conseguiu sanar toda sua dívida, deixando inclusive uma reserva em caixa de 3 mi de dólares para a próxima temporada.

Fora do clube, os jogadores, por um sentido democrático, pediam eleições democráticas representativas: ir votar a cada dois anos, e não se colocar nas decisões políticas cotidianas até as próximas eleições. Mas sem saber eles, dentro do clube, estavam exercendo a mais preciosa das democracias, a democracia direta, na qual cada indivíduo é dono de seu destino; com métodos de assembleia e discussão fraternal mostraram ao mundo que existe outro modo de exercer a democracia, tomando as decisões em suas próprias mãos, demonstrando que a autogestão é muito mais eficaz que qualquer tipo de limitada democracia burguesa. Muito tempo depois, quando perguntaram a Sócrates sobre o processo levado adiante no clube, ele respondeu: “Abolimos o processo que existia no futebol, no qual os dirigentes impediam que os jogadores amadurecessem”. Agregou também que “os jogadores não estavam acostumados a se expressar, a decidir. Mas foram aprendendo e se prepararam para enfrentar sua profissão e sua vida”.

Sócrates morreu no dia 4 de dezembro de 2011, um domingo; nesse mesmo dia, o Corinthians, time que aprendeu a amar, se consagrava campeão brasileiro, uma despedida que poucos têm.

Aqui na Argentina há dois lugares que são grandes exemplos de autogestão e democracia direta, duas fábricas recuperadas e postas a produzir sob controle operário: a antiga Zanon e a MadyGraf, que lutaram contra as patronais covardes e foram reprimidos e perseguidos em incontáveis ocasiões. Quando posso jogar o esporte que tanto amo, uma partida de futebol em uma dessas duas fábricas – que abrem as portas a todos que queiram ir – e tenho a possibilidade de fazer um gol, eu vou festejar com os pés juntos e com o punho esquerdo ao alto recordando aos meus camaradas, a Sócrates e à sua democracia Corinthiana.

Leia a primeira e a segunda parte da nota.

Dedico esta nota a meu camarada brasileiro Biru, corinthiano de lei, ainda que ele saiba que eu sou do Grêmio de Porto Alegre.

Tradução Raphael Mouro.




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