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LITERATURA | Debate estético (parte 1): "A literatura revolucionária" de Jorge Amado

terça-feira 30 de agosto de 2016 | Edição do dia

Se todos nós concordamos que a classe trabalhadora é a única que pode conduzir o processo político de libertação, subvertendo assim as condições materiais de produção no capitalismo, nem sempre fica claro para muitos militantes (da esquerda em geral) a maneira como a arte participa desta luta revolucionária. Obviamente ninguém possui o monopólio deste entendimento revolucionário da arte, de modo que os interessados no assunto estão juntos (e nas suas necessárias divergências) construindo respostas. A literatura de Jorge Amado estaria entre os exemplos históricos que precisam ser necessariamente discutidos para problematizarmos a questão. Fiquei muito interessado pelo artigo Os Capitães de Areia Meninos/homens de Jorge Amado, do camarada Nivalter Aires, publicado recentemente neste jornal. Não que eu concorde com todos os pontos do artigo, mas achei interessantíssimo os paralelos históricos entre os anos 30 e os dias atuais no que refere-se ao drama de crianças e adolescentes mergulhados na miséria. Achei bacana inclusive todo o cuidado que o camarada teve em transcrever trechos do romance Capitães de Areia, de Jorge Amado, expondo a atualidade de uma obra literária movida pela denúncia social.

Entretanto, gostaria de esmiuçar algumas observações estéticas quanto aos componentes de um modelo de romance que atrela-se aos propósitos burocráticos do Realismo Socialista; aspecto este que embora também tenha sido destacado pelo camarada Nivalter, merece uma meditação maior. Aliás, é em nome desta oportunidade que temos de exprimir nossas reflexões estéticas, que faço questão de encher a bola deste jornal: dentre os motivos que fazem do Esquerda Diário o veículo mais importante dos militantes revolucionários no Brasil de hoje, está o espaço garantido para o debate cultural, para a livre exposição de ideias interessadas em debater(e defender) a necessidade da arte revolucionária. Creio que este esforço militante do jornal na esfera da cultura, se faz sentir em várias iniciativas. Neste sentido vale destacar o mini curso sobre o livro Literatura e Revolução, de Leon Trotski, organizado pelos camaradas na Universidade Federal de Campina Grande : aqui da galáxia de Campinas, fiquei muito curioso (e um tanto entusiasmado) com esta iniciativa.

Bem, voltando para as discussões em torno da literatura de Jorge Amado, nos deparamos com uma aparente contradição: um jornal que é expressão política do trotskismo publicando artigos que dedicam atenção à obra do maior escritor stalinista do Brasil? Penso que a questão é bem mais complexa: uma crítica literária ancorada no marxismo, pressupõe uma apreciação do movimento dialético que se faz no plano do romance. Este pressuposto dialético capta as contradições da narrativa, dos recursos estilísticos de um autor, acabando por revelar eventuais contribuições assim como limitações e equívocos que podem comprometer a obra. No caso de Jorge Amado existe, no meu entender, uma relativa contribuição para que possamos pensar a literatura revolucionária no Brasil: Jorge integrou um time de importantes escritores que a exemplo de Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos (ou seja, a turma que encabeçou a Literatura de 30) fez do romance um meio eficaz para decifrar os dramas humanos, a vida dos trabalhadores da cidade e do campo, nas mais variadas regiões do país. Porém, os caminhos estéticos e políticos de Jorge Amado o colocaram na rota do Realismo Socialista; e isto não é apenas uma escolha literária que condiz com a apologia do stalinismo: a propaganda stalinista não está apenas no conteúdo político, mas na forma do romance, conduzindo assim o gosto e as referências estéticas da esquerda pelo campo aguado do melodrama, pela arapuca burguesa do folhetim.

A trajetória literária de Jorge Amado baseou-se nas simplificações da realidade brasileira segundo a cartilha jdanovista. Definitivamente o ponto alto disto encontra-se nos seus romances dos anos 40, como Seara Vermelha (1946), atingindo seu auge na década seguinte com a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade (1954). Nos três volumes que integram a obra (Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Fim do Túnel) a luta dos comunistas durante os anos do Estado Novo (1937-1945) é narrada como um novelão, inclusive levantando verdadeiras calúnias contra os trotskistas. Trata-se da “ pureza dos stalinistas “ contra uma série de vilões. Mas acontece que não se faz literatura revolucionária a partir de uma mera inversão de papeis entre mocinhos e bandidos (e Jorge procurou fazer isso em vários dos seus romances). Não adianta nada colocar uma capa de super herói em operários, camponeses, prostitutas e garotos de rua para em seguida atacar industriais, coronéis, policiais e beatas num enredo fechado/manjado. Ainda que a exposição de obscenidades, da fala popular e dos retratos dolorosos da pobreza se façam enquanto antítese, prevalece uma proposta historicamente burguesa. A técnica literária de Jorge leva ao maniqueísmo e não à exposição das contradições da realidade, ao necessário movimento dialético da história. Quando pensamos os primeiros romances de Jorge Amado, escritos nos anos 30, certamente existem contribuições para a literatura de combate: o flagrante da tirania do coronelismo nas fazendas do sul da Bahia (Cacau, de 1933), as condições de vida dos trabalhadores em Salvador (Suor, de 1934), a rebeldia negra enquanto aspecto cultural imprescindível para a identidade da classe trabalhadora brasileira (Jubiabá, de 1935), a abordagem poética do candomblé e da figura do mar na vida dos trabalhadores do litoral baiano (Mar Morto, 1936), e claro, a vida das crianças e adolescentes marginalizados em Salvador (Capitães de Areia, de 1937).

Ao lermos os principais romances que Jorge Amado redigiu na década de 30, nos deparamos com uma prosa que é direta, sem rebuscamento, capaz de se comunicar com o público popular (que é o objetivo máximo de um escritor revolucionário). Sem dúvida, seus primeiros romances são pioneiros, corajosos, vibrantes (sobretudo na revelação da cultura popular baiana) e politicamente subversivos. A prova do caráter subversivo destes romances encontra-se no fato deles estarem juntos aos outros romances de autores como Rachel de Queiroz e Zé Lins, que foram queimados numa verdadeira fogueira de livros realizada pelas autoridades em Salvador no dia 19 de novembro de 1937 (era o Estado Novo partindo pra cima da Literatura de esquerda dos anos 30). Porém, nestes primeiros romances de Jorge Amado, encontramos ao mesmo tempo uma narrativa convencional, com algumas passagens exaustivamente redundantes (além do dado caricatural na composição dos personagens), que não apenas condiz com as ordens do PCB (Partido Comunista Brasileiro), organização que o escritor baiano militava, mas virava as costas para as experiências estéticas revolucionárias de vanguarda. Este tipo de literatura caiu, com paixão nacionalista, no colo do stalinismo cultural.

Jorge Amado foi um escritor que obedeceu cegamente a barbárie cultural que o stalinismo realizava sobre a literatura. A partir de suas influências literárias, que iam de Charles Dickens, passando por Nicolai Ostrovski e chegando a Michael Gold, Jorge foi costurando um modelo de romance que exprime no contexto da esquerda brasileira, a vitória do melodrama sobre as estéticas de vanguarda. Tratava-se na verdade de um processo internacional em que o stalinismo enterrava as conquistas expressivas da arte moderna para ceder lugar a uma forma engessada, expressão das intervenções burocráticas sobre as atividades dos escritores e artistas ligados aos partidos comunistas. Gostaria de relatar aqui a fala de Thyago Villela num debate sobre cinema soviético, realizado no Museu da Imagem e do Som da Cidade de Campinas, no último sábado, dia 27 de agosto: “Com o stalinismo, o que prevaleceu na obra de muitos artistas de esquerda foi o melodrama e não as conquistas da arte de vanguarda”. Para os militantes trotskistas esta é uma questão gravíssima! Uma questão que ainda é em boa parte desconhecida, ou pelo menos pouco debatida. Seria um absurdo se trocássemos num romance a imagem do papai Stálin por Trotski correndo heroicamente num cavalo branco, acompanhado por operários festivos e crianças de rua, proclamando a Revolução permanente. Isto seria trocar 6 por meia dúzia, seria insistir numa estrutura literária reacionária.

Será que basta denunciar as miseráveis condições de vida da população para realizar uma literatura revolucionária? Não camaradas: a modernidade artística nos ensina a irmos muito mais longe! Será que os procedimentos estéticos de vanguarda são incompatíveis com a realidade cultural do proletariado? É isto que tentarei abordar na segunda parte deste artigo.


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