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DEBATES CONTEMPORÂNEOS | De Mészáros à Zizek: a crise e as novas questões ao marxismo

segunda-feira 3 de agosto de 2015 | 16:43

No prefácio ao terceiro livro do Capital, Friedrich Engels queixava-se de que seus interesses pelos trabalhos teóricos eram muito maiores do que poderia realizar, já que com a morte de Marx os trabalhos de articulação do movimento operário internacional recaiam duplamente sobre ele. Sobre a intensidade desse trabalho político, Engels escrevia: “Para quem milita como eu há mais de cinquenta anos neste movimento, os trabalhos que ele propõe constituem dever indeclinável, a cumprir sem dileção”. É que as tarefas e a concentração dos marxistas se relacionam indissoluvelmente com os problemas objetivos e subjetivos que a realidade coloca.

Sem termos nenhuma expressão teórica com capacidade sequer comparável a de Engels nas últimas décadas, podemos dizer que os impactos que a realidade exerceu no desenvolvimento do marxismo se expressam, como traço geral, nos diversos “marxismos” dos últimos anos. Para se notar as transformações é necessário localizar uma imensa e poderosa clivagem na realidade objetiva e seu significado para as expressões ideológicas, acadêmicas e políticas: trata-se da crise de 2008, a mais importante crise do capitalismo desde a crise de 1929.

Sem adotar uma dinâmica catastrófica na economia, mas adensando as contradições, desenvolvendo grandes recessões, aumentando a pressão da austeridade nos trabalhadores, a crise se expressa numa dicotomia entre seu desenvolvimento e seu significado: ainda que seu desenvolvimento se dê de modo mais lento e “rastejante”, a crise significou um desconcerto não só econômico, mas também ideológico da apologia ao sistema capitalista; cada vez mais se expressa o fim da “belle époque” do capitalismo triunfante.

A crise, portanto, reconvidou o marxismo a passar da “defensiva” a uma postura mais “ofensiva”, correspondente aos novos tempos. Mas qual foi a transição? O que era o marxismo na defensiva, um marxismo de resistência?

Marxismo de resistência na etapa neoliberal

Entre os intelectuais marxistas, esse período significou a formação de “trincheiras” ideológicas para lutar contra a avalanche pós-moderna e neoliberal que buscava estilhaçar o materialismo e a dialética e questionar categorias elementares como trabalho, classe, Estado. As distintas tradições marxistas na academia buscaram desenvolver longos e profundos estudos filosóficos resgatando autores como György Lukács, Louis Althusser, Antonio Gramsci e outros “clássicos” com o intuito de defender conceitos importantes do marxismo (se recorria à filosofia, antes de tudo).

Essa resistência, na luta contra as distintas tendências do pensamento conservador resultou em importantes trabalhos e estudos acadêmicos e forjou uma geração de intelectuais que faziam grande esforço de voltar aos escritos de Marx e Engels e debater com nível teórico-filosófico suas ideias. No entanto, como em todo movimento concentrado, gerou uma importante deformação na forma de pensar a teoria e sua relação com a prática.

Esse marxismo se fortaleceu em seu aspecto intelectual, filosófico, como concepção de mundo, mas abandonou completamente o terreno da luta de classe e, particularmente, o debate de estratégia. Mesmo quando se falava em "ofensiva socialista", como o fez István Mészáros, isso se dava com uma estratégia abstrata (que terminou no apoio a governos como o de Chavez e Evo Morales - em alguns momentos até mesmo Lula, que, ao nosso ver, estão muito longe de uma resposta "para além do capital").

O mesmo Mészáros também teorizou em termos gerias a crise estrutural do capital, mas distante dos desenvolvimentos particulares da crise, de seus impactos nas relações interestatais e, menos ainda, de um pensamento que ligasse a crise a uma reflexão de estratégia. Parte da mudança significativa nos interesses do marxismo foi o desenvolvimento de uma explosão de reflexões sobre a crise econômica internacional e a crítica da economia política, nomes como David Harvey, François Chesnais, Gerard Dumenil, Dominique Levy, Robert Brenner, Andrew Kliman entre outros também ganharam novo destaque e ocuparam boa parte da reflexão sobre o significado e alcance da crise atual.

A crise significou, portanto, a crise desse marxismo “filosófico”, a evidência de seus limites. O espectro de esquerda, em distintos países, sedento pelo debate filosófico de outrora, agora buscava no marxismo respostas políticas, e não apenas concepções de mundo.

Novas questões para o marxismo

Os filósofos marxistas, no entanto, buscaram se adaptar a essa nova realidade e os que mais “se jogaram” em pensar novos problemas tiveram destaque mais rápido. Um exemplo notável disso é o seminário (nos do começo da crise) promovido por Alain Badiou que resultou em seu livro “A hipótese comunista”, que teve o intuito de debater a atualidade do comunismo. Evidentemente o sucesso rápido do livro só foi possível no contexto em que se desenvolveu, podendo retomar altivamente termos que foram aviltados pelo neoliberalismo, como a palavra “comunismo”.

Se observarmos atentamente, por exemplo no marxismo brasileiro, parece notável o imenso interesse que atinge os livros de Zizek em detrimento dos livros de pensadores mais clássicos como Lukács, mas poderia mesmo dizer até mesmo em comparação com Mészáros nos últimos anos, que sempre foi autor muito lido no país. Isso porque Zizek aparece como um intelectual que comenta os temas da atualidade, compara suas análises com livros, filmes, seriados atuais e, além disso, toca temas como problema do Estado, da violência revolucionária, da ditadura do proletariado etc. Ainda que não retome o tema da estratégia em sentido estrito, no plano teórico-filosófico flerta com alguns dos temas fundamentais desse debate.

O destempo entre os intelectuais marxistas e os problemas da estratégia já se colocou de modo agudo no desenvolvimento dos processos do mundo árabe e nos levantes internacionais da juventude, com expressões com os indignados espanhóis ou o Occupy Wall Street, mas ganhou contornos trágicos nesse ano em que subiu ao poder o governo do Syriza, que fez a esquerda inteira internacional virar seus olhos para esse fenômeno e recolocou com força o debate de estratégias.

O marxismo “filosófico” em sua maior parte apoiou a experiência do Syriza por sua total falta de capacidade crítica política e em poucos meses se sentiu “sem chão” [1].

O momento gramsciano? Estado, sujeito político e forma-partido

Como algo sintomático do que podemos esperar no debate que vem se desenvolvendo poderíamos citar o nome de Peter Thomas, um dos mais conceituados interpretes de Gramsci hoje, tendo um das expressões mais conhecidas sua obra “The Gramscian Moment”. Evidentemente o debate sobre a obra de Gramsci já dura algumas décadas e não é exatamente uma novidade: o ponto fundamental, bastante expresso numa exposição que Peter Thomas fez no Colóquio Marx-Engels do Brasil, é sua problemática: “A hipótese comunista e a questão da organização”.

Nessa exposição, Peter Thomas buscou analisar, a partir da ótica de um gramsciano, as possibilidades da emergência de uma forma-partido que pudesse, como forma política, fazer avançar os novos movimentos e desenvolvimentos espontâneos, conforme aponta:. “A verdadeira Organisationsfrage hoje não é a afirmação ou negação do partido, concebido de forma abstrata, mas sim, a pergunta sobre o tipo particular da forma-partido que poderia ajudar esses movimentos a continuarem a crescer” [2].

Em suma, utiliza a terminologia de partido laboratório de Gramsci para atrelar o marxismo com as expressões autônomas das massas; é sempre interessante notar, no entanto, que esse problema não é exatamente novo (na forma sim, mas não no conteúdo) já que, se retomarmos a teoria leninista de organização (não apenas no Que Fazer? mas em todo o seu desenvolvimento até a década de 1920 e a morte de Lenin), vemos que um dos problemas centrais para a Revolução Russa foi a relação entre a autoatividade das massas – na forma dos sovietes - e o partido.

Mas retomar esse debate agora torna-se fundamental e perceber como se desenvolve esse debate no marxismo atual é uma das chaves da reflexão. Nesse sentido, podemos dizer que Peter Thomas é sintomático porque aponta as questões certas na sua reflexão, mas esbarra em limites concretos: em entrevista ao Esquerda Diário o autor apresentava muitas dificuldades de desenvolver de modo afirmativo os exemplos dessa nova forma que ele propõe embasada em Antonio Gramsci (reivindicou o velho Partido de Trabalhadores do Brasil ou o Syriza atual como exemplos em alguns aspectos, mas apontando limites).

Em vista disso, talvez esse debate seja a antessala de uma importante nova clivagem no marxismo acadêmico: se a crise de 2008 significou a primeira grande clivagem teórica do marxismo em seu conjunto, seria a ascensão e a tragédia do Syriza (e logo o Podemos espanhol) uma segunda clivagem, agora recolocando mais no centro o debate da política marxista em geral e das estratégias em particular?


Notas

1- Os destaques deste marxismo, ainda que buscando refletir e dar respostas aos novos movimentos de massa pós-crise, apresentam respostas políticas ainda pouco audazes. A oposição entre duas apostas políticas nas concepções de Badiou e Zizek é um sintoma disso. O primeiro, ainda bastante próximo às concepções autonomistas dos anos 90, defende que o movimento de massas deva buscar uma subtração de qualquer poder de Estado e em grande medida rejeita a forma-partido. O segundo, pelo lado oposto, aposta na retomada da proposta de partido, “um corpo forte, competente para tomar decisões rápidas e implementá-las com todo o rigor necessário”[1], e não nega a luta estatal. Mas é muito descrente da ideia de auto-organização das massas, rejeita a ideia de um controle operário da produção como algo que possa ir além de experiências particulares e eventuais. Por isso, os dois ainda estão presos, no final das contas, à defender governos que se limitam ao anti-neoliberalismo e anti-austeridade.

2- THOMAS, Peter. No Paper, “The Communist Hypothesis and the Question of Organization”, disponível em https://www.academia.edu


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