×

CULTURA EM DEBATE | Cultura hipster, individualismo e nova dominação cultural capitalista

Poderíamos dizer que em poucos anos uma “nova cultura” colonizou as cidades de todo o mundo, a publicidade, as redes musicais de rádio, as revistas culturais e as mostras de arte.

quinta-feira 2 de abril de 2015 | 00:00

Uma “nova cultura” que quase todos indentificamos mas que parece difícil de definir, saber de onde vem, em que se baseia e o que a caracteriza para além da estética que a define. Conhecida como hipster, se trata de uma tendência que ultrapassa a estética e a moda para invadir toda expressão cultura. O cinema, a música a programação de centros de arte parecem estar pensados de acordo com o hipster.

Mas esse conceito não é nada novo; o termo hipster vem de uma das contraculturas urbanas surgidas nos Estados Unidos na década de 1950 e, ainda que não tenha tido o mesmo desenvolvimento que a cultura rock, o beatnik ou o fenômeno hippie, se definia como uma subcultura branca, cujo ímpeto passava por se libertar dos estereótipos brancos, mas mantendo suas aspirações burguesas.

Esta (sub)cultura teve mais sorte nos últimos anos, que favoreceu seu desenvolvimento e expansão, em parte graças às novas tecnologias e meios de comunicação. Mas o que há por trás disso tudo? Sem dúvida se trata de um fenômeno social e cultural muito mais amplo que expressa características de uma sociedade capitalista avançada, como o individualismo, o consumismo e a despolitização.

Aspectos que foram tão hegemônicos nas últimas décadas. Características que, no entanto, nos últimos anos, em decorrência da crise capitalista e das mobilizações sociais, começaram a ser questionadas pela esquerda, com movimentos como Occupy Wall Street, os indignados espanhóis, a praça Syntagma e muitos outros. Bem como pela emergência incipiente de projetos culturais contestatórios, desde os mais abertamente militantes àqueles que, sem o ser, problematizam sobre a sociedade em que vivemos.

Cultura globalizadora baseada nos mercados, imperialismo cultural

Uma primeira definição deste fenômeno é precisamente que é “filho de seu tempo”, um fenômeno global, surgido em um mundo globalizado e em parte homogeneizado pelos mercados, um tempo marcado pela hegemonia do neoliberalismo. Esta talvez seja uma das primeiras questões que o diferencia de fenômenos culturais anteriores, como o punk ou o indie, que, ainda que tenham gozado de grande expansão – pelo menos nos principais centros urbanos – não chegaram a ter o mesmo nível de difusão massiva que as tendências hipster, as quais, hoje, graças às novas tecnologias e meios de comunicação de massas, as grandes máquinas de marketing maciço, se converteram em um fenômeno globalizado.

Na década de 1960 surge como novidade nos estados de capitalismo mais avançado que alguns tenham identificado uma nova cultura juvenil com identidade própria, algo que se desenvolverá nas décadas seguintes. A particularidade desta “cultura juvenil” foi que “se converteu em dominante nas economias desenvolvidas de mercado”. Poderíamos dizer que em poucos anos uma “nova cultura” colonizou as cidades de todo o mundo, a publicidade, as estações de música nos rádios, as revistas culturais e as mostras de arte.

Como define Hobsbawn em sua “História do século XX”, se tratou de uma massa juvenil que assumia e consumia os produtos do mercado de uma maneira muito mais rápida que as gerações anteriores.

Precisamente essa disposição para o consumo, favorecida pelas condições sociais e econômicas dos anos de desenvolvimento econômico do boom do pós-guerra, foi vista como uma “mina de ouro” pelas ainda incipientes indústrias do ócio e culturais, como a musical, a de moda, e posteriormente a tecnológica. Neste sentido foram elementos da cultura dominante norteamericana e seus valores os que foram generalizados entre os jovens dos Estados com as economias de mercado capitalista mais desenvolvidas. A dominação cultural, nesse caso estadounidense, não foi uma novidade, ainda que tenha sido o seu modo de se implantar. Deixando para trás o cinema como meio de difusão, agora era o rock, com suas letras sem tradução, e o uso de calças jeans o que começou a se generalizar entre jovens de todo o mundo.

Esta nova cultura juvenil se converteu na matriz da chamada “revolução cultural”, entendendo revolução em um sentido muito estreito, como grandes transformações no comportamento e nos costumes, no modo de dispor do tempo livre e no modo de consumir, que passaram a configurar cada vez mais os ambientes urbanos. Em referência a este fenômeno, Hobsbawn define: “Duas de suas características são importantes: era populista e iconoclasta, sobretudo no terreno do comportamento individual no qual todo o mundo deveria ser único, ainda que na prática, a pressão dos congêneres e a moda impuseram a mesma uniformidade que antes.”

Mas esses anos não foram unicamente de “revolução cultural” no sentido estreito que aponta Hobsbawn. No fim dos anos 1960 e 1970, a onde de manifestações, greves e radicalização juvenil que marcavam, sem dúvida, o clima político, social e cultural. Um clima de radicalização social que desafiou a moral conservadora no plano sexual, cultural e político. A esta situação de insubordinação geral contra a ordem estabelecida seguiram-se grandes debates sobre as mudanças culturais ou o que alguns definiram como “revolução cultural”, ajudando a desvirtuar extremamente este termo.

O certo é que se usar jeans e deixar o cabelo crescer nos anos 1960 pudesse parecer como contracultural, e de certa forma o foi e correspondia a uma reação à geração anterior, ao mesmo tempo se tratou de uma contracultura que com os anos foi cada vez mais dominada pelos mercados, principalmente o mercado norteamericano.

Ainda que tenha sido nos anos sessenta que começou a surgir este fenômeno (momento de radicalização e questionamento), será durante a década de noventa, um década marcada pelo triunfalismo neoliberal, que se desenvolve plenamente essa “cultura juvenil” como mercado. O surgimento do jovem como “agente social” consciente recebeu um reconhecimento cada vez maior por parte das indústrias culturais e dedicadas ao ócio. Os benefícios de focar o mercado nas gerações mais jovens foi algo que as companhias dedicas a este tipo de produto aprenderam.
A indústria musical, televisiva, tecnológica, cosmética e a moda viveram um enérgico desenvolvimento nos anos noventa. Para se dirigir a esse público, potencializaram um marketing indie, diferenciador, que prontamente passou a dominar e privatizar todo os aspectos e espaços de nossa vida. Nesse cenário, com todos os espaços de ócio, criação e difusão dominados pelo mercado, parecia que nenhuma manifestação cultural de nenhum tipo poderia ser independente, porque tudo era assumido pelo mercado.

Ofensiva individual

A expansão do consumismo como questão central na cultural atual não teria sido possível unicamente pelo avanço do capitalismo e suas indústrias culturais. Existe um componente social que ajudou a que essa cultura do consumo com verniz independente se generalizasse entre setores populares, apesar das contradições que isto pressupõe.

Atualmente é justamente esse setor jovem que são enfocados pelos mercados culturais e do entretenimento, o que sofre a maior precariedade trabalhista em sua história. Mas em grande parte destes setores juvenis se implantou uma cultura centrada no consumo e no individual, questões apoiadas na “ideia de independência”, confundindo a independência com o individual, o “ser você mesmo” e aspirar a crescer mediante o enriquecimento pessoal. Precisamente esse individualismo é a chave que sustenta essa falsa contracultura indie.

O brutal individualismo que colonizou aspectos da cultura (entendida em um sentido amplo como comportamentos sociais e costumes) dos últimos tempos tem uma origem muito clara: a ofensiva ideológica, política e material que nas últimas décadas se lançou a partir dos setores dominantes com o objetivo de destruir toda consciência e expressões culturais operárias e coletivas.

Sobre a crise de subjetividade que hoje atravessa a classe operária mundial, daria para abrir outro debate. Mas o certo é que existe um elemento ideológico que é fundamental e está relacionado a que a classe operária perdeu sua confiança em seu poder coletivo, seu sentimento de pertencimento a um grupo social com identidade própria e com expressões políticas e culturais próprias.

E é precisamente a classe dominante que se encarregou durante as últimas décadas de destruir todas as expressões que podiam aludir ao proletário, ao coletivo ou ao radical, apoiando-se no desenvolvimento do “individual”, que anula todo sentimento de pertencimento de classe, ou a qualquer grupo ou coletivo.

Não causa espanto que a expansão dessa cultura tenha ocorrido tão rapidamente. O campo. Isso teve a ver com a ofensiva neoliberal por parte dos governos que ocorreu nos anos 1980 e 1990 do século passado. Exemplo disto e uma das ofensivas mais brutais foi aquela levada a cabo na Grã Bretanha pelos conservadores encabeçados por Margaret Thatcher. Como define Owen Jones em sua análise da cultura operária britânica Chavs, a demonização da classe operária, “os conservadores fizeram o experimento mais audaz de engenharia social.” Nas palavras da própria Thatcher ao ganhar as eleições em 1979: “Temos que criar uma mentalidade completamente nova.”

Difundir a ideia de que as pessoas pudessem melhorar de vida mediante o enriquecimento pessoal e não por meio da ação coletiva era o que pretendia Thatcher, uma reafirmação dos “princípios” do capitalismo mais voraz. Uma brutal ofensiva contra os interesses da classe trabalhadora e contra todas suas expressões coeltivas, que não apenas se deu na Grã Bretanha que assentou as bases do individualismo atual.

O objetivo era acabar com a classe trabalhadora como força política, social e econômica, substituindo-a por um conjunto de indivíduos e empreendedores. O certo é que o desenvolvimento dessa ideia ainda se expressa hoje. A nova cultura individualista, da classe média, o individualismo, o “apoliticismo” e a anglofilia sem questionamento. Uma estética dominante no capitalismo. Mas que, ao calor dos novos fenômenos sociais e políticos, da frustração e da indignação que gerou a crise capitalista, pode começar a ser questionada.

Como e onde se apoiou esta ofensiva, para que fosse possível mudar o modo de pensar de grande parte da sociedade e dos trabalhadores britânicos? Sem dúvida o duplo ataque aos sindicatos e à indústria manufatureira não teria sido possível, o qual entre outras coisas permitiu impor condições sociais e econômicas de retrocesso social, que favoreceram uma visão extremamente negativa da classe operária e de todo aquele que a representasse, fosse politicamente, como nos sindicatos ou socialmente como os aspectos culturais que a caracterizaram.

O modo de se vestir dos trabalhadores, sua casas, os modos de se relacionar, a música que escutavam, se converteram em deprezíveis. A ideia de uma subclasse se gerou nesse momento, algo do qual se queria fugir desesperadamente e do qual se diferenciar através do enriquecimento pessoal. Owen Jones explica como se desenvolve essa ideia de subclasse em Chavs, um conceito caricaturizado que ajuda a desenvolver os preconceitos contra tudo o que expressa uma origem proletária e popular. Conceito relacionado com aquelas comunidades ou coletivos mais afetados pela crise, que sofrem graves problemas sociais, os quais são descritos como representativos de setores mais amplos. Um perigo no qual pode cair “se não trabalhar duro”.

Esta ideia de subclasse aparece quando, após o ataque thatcherista, muitas cidades e inclusive regiões ou estados inteiros se converteram em rustbels (cinturões de ferrugem), museus fantasmas da manufatura. Comunidades que centravam sua vida no sentimento de pertencimento a uma comunidade como mineiros, estaleiros, trabalhadores têxteis, viram como em pouco tempo se convertiam em “indivíduos” isolados, cujas condições de vida pauperizadas se deviam, como lhes convenceram, a seu “escasso esforço” pessoal para chegar a ser “alguém de proveito”.

Todas aquelas comunidades afundadas pelo interrompimento crônico foram utilizadas como modelo do que não se deve ser nesta sociedade. Toda uma campanha de marketing por parte do liberalismo. Uma visão potenciada em favor do desenvolvimento individualista, lançando a mensagem de que há dois tipos de pessoas nessa sociedade: os que querem viver ao custo do que o estado proporciona, e a “gente de proveito”, que com seu esforço pessoal consegue “ser algo”.

Esta ideia cruel foi acompanhada pela introdução de certos valores culturais que reforçaram e abriram as portas para o maior desenvolvimento dos aspectos individualistas na cultura atual. Conceitos como a liberdade individual, criatividade, empreendimento, diferença etc. Todos estes são valores que remetem ao individual, aos méritos próprios, e não fazem referência ao coletivo. São os valores da nova cultura esnobe, hoje hipster, e os que precisamente a colocam em uma posição de harmonia com o capitalismo.

Nenhum desses valores questionam nada do estabelecido, simplesmente asseguram a posição individual frente ao restante. O avanço pessoal rege nossos comportamentos sociais e determina nossas relações, o que converte o individualismo e uma de suas expressões estéticas e culturais mais avançadas, o hipster, como conservadores.

Agora, querer disfarçar uma tendência reacionária como algo progressivo, resistente, underground, é algo em que se empenha muito a indústria.

A cultura como desmobilizador político

A esta altura cremos ter a capacidade de afirmar que é chave a definição de hipster como uma falsa subcultura. Precisamente o que diferencia o mundo hipster de outros movimentos underground ou de contracultura, como foram o beat, o punk ou o indie, é a ruptura social, ou melhor dizendo, a ausência de ruptura social hipster.

Todo movimento cultural progressivo pretende romper, ao menos com alguns aspectos, do marco social em que surge e expressa isso mediante sua estética. A estética agressiva do punk, ou a provocadora do indie, não era mais que a expressão de uma mudança mais profunda. Ainda que estes movimentos não pretenderam uma ruptura total com o sistema capitalista, ao menos havia certos aspectos sociais que pretendiam superar, e neste sentido puderam se definir em seu contexto como progressivos e gozaram de grande protagonismo entre alguns setores populares. Contudo, a nova cultura hipster não pretende romper com o marco social do capitalismo, nem com muitos de seus valores; sua aspiração se baseia em aumentar sua capacidade de consumo.

Não surpreende em nada que as grandes multinacionais exprimam essa ideia de (falsa) resistência. Um marco publicitário foi a campanha que a Apple lançou em 1984, na qual apresentava quem se encantava por esse tipo de tecnologia com um “contestador” diante da uniformidade que representava a Microsoft. Hoje é comum que grandes marcas continuem recorrendo a esta ideia e utilizando figuras que algum dia foram contraculturais. Recentemente, Iggy Pop, figura do punk rock, deu seu rosto à Schweppes; também o líder dos Sex Pistols, Johnny Rotten, ajudou com sua imagem o aumento de vendas de uma das marcas de manteiga inglesa DairyCrest, e alguns dos representantes do “Movimento” deram um toque underground a produtos como a cerveja Mahou. Também pudemos escutar esses dias um dos sucessos de Janis Joplin, Cry Baby, anunciando uma companhia telefônica.

O sucesso dessa cultura individualista, baseada em sua estética underground, se apoia na visão de contracultura e diferença. E neste afã de diferenciação, a cultura hipster é brutalmente reacionária em seu enorme desprezo a outros jovens que se identificam com setores sociais mais populares por sua maneira de se vestir, os lugares em que passam seu tempo livre, a literatura que consomem e os programas televisivos que assistem. Um chándal pode ser que não seja tão “cool” como Levis, e escutar música saída diretamente de seu carro em um estacionamento também não é o mesmo que gastar uma fortuna em uma entrada para o Sonar. A maneira depreciativa como se dirigem a quem expressa gosto “pouco refinado”, mais populares, como chonis, canis no Estado Espanhol ou os chavs britânicos, fomenta um ódio contra as classes mais populares. O rechaço a quem expressa características culturais e hábitos mais próprios de setores castigados pelo desemprego e a precariedade responde à estratégia lançada pelo neoliberalismo para responsabilizar as classes trabalhadoras pelas suas desgraças, justificando assim a existência de elites que acumulam a maior parte da riqueza “graças a seu esforço e inteligência”. O desemprego, a pobreza, os baixos níveis educativos antes podiam ser vistos como falhas do sistema capitalista, ou, em sua versão mais moderada, como uma má gestão dos governos de plantão, mas nas décadas passadas os problemas como o desemprego ou a pobreza passaram a ser vistas como “questões pessoais”.

Uma das advertências que faz Victor Lenore em sua “Crônica de uma dominação cultural”, é justamente o giro direitista e reacionário que deu este fenômeno “e esta falta de consciência se transformou diretamente em desprezo de classe”. Quem não lê o filósofo esloveno Slavoj Zizek não tem a capacidade intelectual para ser um hipster, mas esta (sub)cultura não para e pensa que a capacidade para ler textos filosóficos passa por seu nível educacional.

“A cultura moderna é um excelente lubrificante para o consumo que não cria nenhum problema político para ninguém com poder no mercado” afirma Victor Lenore, algo que junto ao desenvolvimento de um ódio contra os grupos sociais mais empobrecidos converte essa (falsa) subcultura em bastante reacionária.

A ideia que assumiu o indie de que esse sistema é o único possível, ao ser absorvido pelo mercado e pelo capital, nos situa em um cenário de “salve-se quem puder” sempre e quando o faça de maneira mais estilizada, visitando exposições de arte contemporânea, vendo filmes de Wes Anderson e fazendo a rota de verão pelos festivais mais indies e, diga-se de passagem, que têm os ingressos mais caros.
A cultura hoje denominada hipster, vertente do individualismo mais atual, não se baseia unicamente no ascenso econômico, mas se centra na imagem. Em aspirações individualistas que nos fazem perder o sentimento coletivo, de classe. Aspirações cruéis que contradizem profundamente nossas condições atuais e representam o triunfo da cultura capitalista.

Esta situação, contudo, hoje parece estar mudando. No marco da crise capitalista, os movimentos sociais, políticos, as greves operárias e os levantes estão começando a ser cada vez mais protagonistas. O desenvolvimento destes movimentos mais à esquerda supõem o começo de um questionamento ao capitalismo e suas expressões culturais. Com o surgimento de certos fenômenos como o 15M no Estado Espanhol, Occupy Wall Street ou a praça Syntagma, as mobilizações operárias e populares, os aspectos políticos, econômicos e sociais do capital começam a ser questionados e entre tudo isso o individual começa a perder hegemonia frente ao coletivo. Começar a questionar todos os aspectos próprios do capital, todos aqueles valores culturais que sustentam um sistem baseado em uma profunda desigualdade, pressupõe um passo adiante na luta de classes.

*Este artigo foi publicado originalmente na Revista Contracorriente


Temas

Cultura



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias