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SEMANÁRIO

Críticas feministas ao punitivismo no enfrentamento da violência de gênero nos movimentos sociais

Laura Macaya Andrés

Ilustração: Clara-Iris Ramos para Catarsi

Críticas feministas ao punitivismo no enfrentamento da violência de gênero nos movimentos sociais

Laura Macaya Andrés

Apresentamos três artigos de “Do pessoal ao político”, a monografia n. 5 da revista catalã Catarsi para o outono-inverno (norte) 2021. Este artigo foi publicado com o título original de "Invasão reacionária: críticas feministas ao punitivismo no enfrentamento da violência de gênero nos movimentos sociais". Os artigos selecionados, inéditos em espanhol e, agora, em português, abordam o debate sobre a perspectiva materialista de gênero (Laia Jubany), contra o punitivismo nos movimentos sociais transformadores (Laura Macaya Andrés) e sobre a relação entre a luta pela emancipação das mulheres e o socialismo (Andrea D’Atri).

O punitivismo é um ingrediente essencial da virada neoliberal. Pensar estratégias de superação desde os movimentos de base implica rejeitar as instituições reacionárias e as subjetividades que elas produzem.

A política e os métodos que escolhemos hoje para combater a violência patriarcal, a forma como nos propomos a castigar, controlar, punir ou resolver os atos de que as mulheres são vítimas nesta sociedade capitalista-patriarcal não podem ser contrários ao futuro da sociedade que ansiamos e pelo qual lutamos. (Andrea D’Atri)

Uma das melhores coisas que o feminismo fez foi destacar o caráter estrutural da violência de gênero sofrida não apenas pelas mulheres, mas também por pessoas que discordam das regulamentações de gênero. O feminismo desenvolveu a ideia de que a própria existência de dois gêneros normativos responde às necessidades de reprodução social que, no quadro da divisão sexual do trabalho, é essencial para a manutenção da economia política capitalista. Além disso, alguns feminismos apontaram que o descumprimento das normas de gênero atribuídas a homens e mulheres favorece a punição dos agressores na forma de discriminação, exploração, privação ou violência de gênero. Tudo isso contribuiu para apontar as estruturas patriarcais, capitalistas e racistas como cúmplices dessa violência. Portanto, se esses arcabouços teóricos e políticos nos deram tanta complexidade, me pergunto: por que nos contentarmos em reproduzir configurações políticas que não correspondem a esse poder feminista que serviu para desnaturalizar e iluminar as causas estruturais que nos geram precariedade e sofrimento?

Neste artigo pretendo contribuir com algumas reflexões sobre o que Wendy Brown chamou de “certos projetos políticos bem-intencionados e posições teóricas contemporâneas que redesenham indevidamente as próprias configurações e efeitos de poder que procuram derrotar”. Especificamente, como algumas propostas e análises feministas não são apenas ineficientes para acabar com o heterossexismo e a violência de gênero, mas também reproduzem lógicas e práticas punitivas e, assim, favorecem a sobrevivência de sistemas de controle neoliberais e subjetividades normativas sobre gênero.

O aumento do punitivismo tem sido um elemento indispensável no desenvolvimento de políticas neoliberais, a fim de compensar a insegurança produzida pela precariedade social e econômica e a destruição dos vínculos comunitários após o desmantelamento dos estados de bem-estar ocidentais.

Além disso, entendendo que o neoliberalismo não apenas estabelece um determinado regime econômico, mas também é uma forma de governo que produz novos tipos de sujeitos úteis para a manutenção da ordem socioeconômica, devemos também abordar essa dimensão produtiva do poder. Para compreender essa dimensão, talvez mais complexa, poderíamos pensar nas atribuições de “brutalidade” às mulheres colonizadas, de sensibilidade e fraqueza emocional às mulheres que cumpriam os papéis de esposas e filhas burguesas “brancas”, ou de disponibilidade e desejo sexual “desproporcional” das mulheres pobres. Todas foram características atribuídas aos corpos femininos que justificaram a exploração, a redução a seres destinados ao cuidado em casa ou o impedimento das mulheres no avanço da nova ordem neoliberal dos países do Norte. Pelo fato de o punitivismo ser um elemento-chave no desenvolvimento dos sistemas neoliberais, devemos também atentar para esse caráter produtivo que indicaria que o poder punitivo também produz conhecimento e sabedoria sobre os sujeitos que são forjados pelas mesmas leis que pretendem representá-los e protegê-los.

Seguindo esta dupla análise, elaboraremos algumas reflexões que podem mostrar como algumas estratégias políticas e abordagens teóricas do feminismo, mesmo no âmbito de movimentos de base, reproduzem o punitivismo, não apenas em termos de implementação de estratégias claramente punitivas como o escárnio, as expulsões, exílios e extorsões a membros considerados agressores, mas também em termos de como interpretar a violência de gênero e seus sujeitos paradigmáticos.

A seguir veremos quais são as características que algumas das propostas feministas compartilham com o punitivismo dos atuais sistemas de controle, a fim de podermos refletir e fornecer ferramentas para o aprimoramento de nossas estratégias coletivas de pensamento e ação política. Este é, aliás, o objetivo desta análise: propor algumas bases para pensar políticas mais eficientes e coerentes e não tanto críticas destrutivas, pelas quais o autor se exime de responsabilidade.

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“A declaração antipunitivista que nos esforçamos para fazer fica entre a urgência, o show tanatocrático, o pânico sexual e nossas próprias estratégias ‘caseiras’ de militância.” (Catherine Trebisace)

Diversas análises feministas apontam que, principalmente a partir da década de 1980, há uma tendência de concentrar grande parte das demandas das mulheres no combate à violência perpetrada contra elas. Em relação a isso, o feminismo tende, como explica a filósofa Paloma Uría, a uma identificação entre opressão, discriminação e violência, a ponto de qualquer manifestação de desigualdade em relação às mulheres entrar no campo da violência. Como também aponta a jurista Tamar Pitch, “violência” e “feminicídio” sobrepuseram qualquer outro termo na linguagem feminista, o que acarreta a conhecida tendência à intervenção penal e punitiva e o quase desaparecimento de outros termos, como “dominação” ou “exploração”, e as estratégias específicas para combatê-los.

Esse uso extensivo do conceito de violência não apenas deslocou outras expressões de desigualdade em relação às mulheres, como também fez com que atos de reprodução do sexismo, comportamentos irritantes com viés de gênero e até mesmo insinuações, olhares ou ofertas sexuais sejam chamados de violência.

Essa tendência pode ser observada no quadro dos movimentos feministas de base no grande protagonismo que tem a denúncia da violência contra a mulher e nos temas e consignas que apontam todos os homens como inimigos do feminismo, suspeitos de costume, quando não potenciais infratores. Em contrapartida, as mobilizações em defesa dos direitos trabalhistas das trabalhadoras do sexo ou domésticas, as lutas contra a exploração do trabalho, a disparidade salarial, a dificuldade de acesso à moradia para mulheres pobres, racializadas ou trans ou a repressão policial a ativistas ou grupos estigmatizados recebem muito menos atenção e esforços e a mídia os leva muito menos em conta.

Essa “ampliação” do conceito de violência de gênero tem servido para aumentar a sensação de risco e perigo nas mulheres tanto em seu cotidiano quanto, principalmente, na relação com os homens e no uso do espaço público. Produz-se uma espécie de pânico moral, o pânico sexual, que supõe uma dimensão excessiva dos riscos sexuais atribuídos às ações de determinados indivíduos ou grupos que conduz irremediavelmente ao irracionalismo e ao conservadorismo.

A ascensão de uma nova cultura de controle do crime no neoliberalismo tem se caracterizado pela lógica preventiva, encarceramento em massa e pela estigmatização de determinados grupos sociais considerados potencialmente produtores de risco em contraposição ao paradigmático sujeito neoliberal, o “empreendedor de si mesmo”. Esses indivíduos ou grupos supostamente produtores de risco são definidos com base em critérios racistas e classistas e, como são apontados como causa da crescente insegurança da população, é aplicada a eles uma política de tolerância zero em relação à sua conduta, que serão mais perseguidos e mais punidos. Por outro lado, as inteligentes proclamações de tolerância zero ao crime agem menos contra indivíduos bem-sucedidos ou contra empresas poluidoras ou exploradoras. Isso coloca para frente a conhecida tendência altamente seletiva do sistema punitivo estatal, que atua principalmente perseguindo e punindo com mais severidade os crimes mais cometidos por pessoas pobres ou de classes estigmatizadas. Tudo isso esconde o fato de que as verdadeiras causas da crescente insegurança individual e social derivam mais da privação, da pobreza, da falta de acesso à moradia, da redução do trabalho, dos direitos sociais e civis, etc., fruto de um capitalismo, especulativo, consolidado e extrativista, não das ações de indivíduos ou grupos particulares.

Quando certas estratégias feministas esquecem a natureza estrutural da violência de gênero e focam suas intervenções em indivíduos específicos que muitas vezes fazem parte das comunidades políticas e afetivas da própria vítima, ou quando definem todo o grupo de homens como potencialmente produtores de risco, elas reproduzem as formas de controle punitivo que se desenvolvem nos marcos estatais do neoliberalismo. Essa particularização do risco, típica do sistema penal, retira o conflito da conjuntura, contrapõe os interesses da vítima aos da pessoa que agride e até os exalta acima dos interesses da comunidade da qual faz parte. Então se desdobra a natureza atomizadora dos sistemas neoliberais, que nada mais fazem do que aumentar a sensação de solidão, desenraizamento e, portanto, de risco.

As causas do risco variam para os que não questionam o funcionamento de uma determinada economia política, isto é, para com os homens privados à frente das precárias condições de vida em que o regime neoliberal nos faz viver, que alimenta a cultura da urgência e emergência. Assim como o populismo punitivo deriva do irracionalismo que provoca o medo do crime e justifica políticas punitivas como o aumento excessivo de penas, medidas de segurança ou controle preventivo, as proclamações de “emergência feminista” justificam qualquer medida individual ou coletiva sem avaliar seu custo, eficiência ou conveniência. Diante de análises pouco rigorosas que apelam à emoção por meio de slogans como “eles nos matam”, ativa-se a cultura da emergência e da excepcionalidade, que sustenta a aceitação e reiteração de normativas em busca de uma suposta segurança perdida e, portanto, a aceitação de punitivismo como o mal menor conhecido e de aplicação mais rápida. Embora tanto a sociedade civil quanto os líderes políticos estejam cientes da ineficiência das instituições punitivas estatais no controle do crime, como explicou David Garland, nos atuais sistemas de controle neoliberal há uma tendência a negar a evidência ou aceitá-la por meio de uma virada simbólica em que a possibilidade de ir às causas do crime é abandonada e as ações se concentram em expressar a raiva, a angústia e o ódio que o crime provoca. Da mesma forma, a abordagem da violência de gênero por alguns feminismos gira entre esses dois extremos: ou o punitivismo é aceito como “algo que tem que ser feito”, com o consequente reforço da cultura punitiva, ou é abandonada a investigação e a análise racional e calma das causas da violência para uma política expressiva em que manifestações de raiva e vingança tornam-se o eixo central da proposta. Isso tem efeitos devastadores não apenas na saúde emocional de ativistas e vítimas, mas também na continuidade de uma proposta emancipatória e libertadora como o feminismo, que acaba se firmando na impotência diante da transformação e mudança social.

É a partir desse lugar de impotência que o feminismo acaba muitas vezes por focalizar suas estratégias políticas: seja a exigência de proteção estatal e o reforço do sistema penal, seja a reprodução da cultura da punição. O reforço do punitivismo de alguns feminismos não se limita apenas às propostas de um feminismo carcerário que pede proteção no sistema estatal coercitivo. A cultura da punição impregna muitas das propostas políticas feministas porque reproduz sua lógica de individualização de um problema social, de simplificação do objetivo, de radicalização e “enriquecimento” do conflito ou da lógica amigo-inimigo (Nuñez, Lucía).

Desta forma, encontramos propostas políticas que apelam ao endurecimento nas ações para crimes de ódio, demandas por mais penas em face de ofensas cometidas contra mulheres ou dissidentes, reforçando o sistema penal, executor das principais violências contra as partes mais vulneráveis e agressor dos grupos que pretendem proteger. Mas também encontramos propostas políticas que, apelando à autogestão dos conflitos, desenvolvem estratégias de combate à violência de gênero como exílios, expulsões, extorsões para os que se reconhecerem como agressores, denúncias públicas sem garantias ou “terapias corretivas” supervisionadas. Isso sem entrar nos slogans ou campanhas que promovem a eliminação física ou amputação de agressores. Acredito que é importante avaliar crítica e rigorosamente essas estratégias que não apenas reproduzem as técnicas de repressão dos sistemas penais, mas também não conseguem acabar com a violência, pioram a qualidade ética de nossas propostas, renunciam à transformação, destroem comunidades e acabam afetando mais negativamente as partes mais marginalizadas e com poucos recursos dessas comunidades. Com isso não quero dizer que algumas dessas propostas podem não ser necessárias em determinadas circunstâncias, como quando o agressor repete o comportamento, ocorreu uma agressão grave e não há intenção de reparar, ou quando, com tudo isso, a vítima ou a comunidade é colocada em sério risco. No entanto, nem tudo vale e nos casos em que uma ação punitiva é considerada coletivamente necessária, ela deve ser ajustada aos valores do mínimo necessário, não abrir mão de acompanhar a pessoa agressora e partir da ideia de que a ação está sendo tomadas contra os efeitos da violência, mas não contra suas causas.

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Experimentamos as devastações subjetivas causadas por uma pedagogia do medo, da vergonha e do exílio, por isso devemos estar muito cautelosos quando se trata de reforçar esse tipo de política de transformação dos sujeitos. (Virgínia Cano)

Uma das críticas menos visíveis ao punitivismo é a que se refere à forma como constrói os sujeitos que diz representar e proteger. As leis penais não falam apenas de sujeitos que preexistem em sua própria enunciação, mas funcionam principalmente como tecnologias de gênero, ou seja, constroem a feminilidade e a masculinidade normativas. Um dos exemplos mais claros desse caráter produtivo é a construção de uma identidade de vítima em que se exige o cumprimento da norma hegemônica da feminilidade por ser reconhecida como tal, com a consequente identificação da categoria de vítima nos corpos das mulheres. A racionalidade neoliberal está cada vez mais combinada com o que Brown chama de racionalidade neoconservadora, que “prega as virtudes da família e do sexo tradicional e promove uma heteronormatividade com características não tão diferentes daquelas de um certo feminismo: não-violência, bondade, etc”. Uma das características dos sistemas de controle neoliberais é o ressurgimento da vítima como ator individual, frequentemente invocado para justificar medidas punitivas em defesa de seus supostos interesses. As vítimas reivindicadas são aquelas que endossam a reprodução dos valores da feminilidade hegemônica, com a notória rejeição de vítimas com histórias ou experiências diversas ou com feminilidades transgressoras, e a limitação de direitos às que são merecedoras, junto de sua qualidade moral ou sua afinidade com a norma.

Infelizmente, alguns feminismos reproduzem essa exaltação das vítimas e dos valores normativos que lhes são atribuídos. A conquista de mais hegemonia de alguns feminismos contribui para que eles se tornem uma máquina de produção de conhecimento normativo sobre o que é ser uma boa pessoa, ter bom sexo, ter um relacionamento saudável, etc. Devido ao uso expansivo do conceito de violência, sobre o qual falamos anteriormente, o não cumprimento das normas sexuais desses feminismos rapidamente o transforma em ofensor ou vítima, e criminalização e vitimização é um binômio que funciona não apenas entre homens e mulheres, mas também entre as próprias mulheres. De fato, classificar qualquer ato sexual não consensual como agressão, independentemente de sua intensidade, como um olhar, uma insinuação ou repetição sexual, estabelece as mulheres como seres vulneráveis, hipersensíveis e sexualmente inapetências e temerosas. Essas características constituem a condição necessária para o surgimento de um novo sujeito vítima, essencial para o uso expansivo do sistema penal e das lógicas punitivas em nossos contextos de militância, mas, ao mesmo tempo, a mulher é condenada em lugares de impotência, desde onde é difícil serem protagonistas das tão necessárias mudanças pessoais, sociais e econômicas. Acaba, portanto, produzindo o efeito contrário do que se pretendia, pois ao normalizar a sexualidade segundo supostos valores feministas, modelam-se as experiências sexuais, mas também a experiência do próprio corpo e a interferência ilegítima nele. As novas imposições normativas do feminismo em relação à sexualidade e à violência favorecem a exclusão da proteção e a suspeita de vítimas erradas e reforçam os valores normativos da sexualidade feminina que estão na base da opressão.

Por outro lado, e do ponto de vista do acompanhamento da recuperação das vítimas, este fato é também dramático e terrivelmente contraproducente. A experiência da violência e a forma como as próprias vítimas a interpretam e a vivem tem muito a ver com os discursos disponíveis sobre a sexualidade e a concepção do corpo da mulher. Portanto, os discursos que promovem uma visão sagrada da sexualidade feminina e estabelecem que a menor intromissão ou oferta sexual é uma agressão favorecem o desenvolvimento de uma identidade vulnerável, infantilizada e hipersensível, disponível apenas para aquelas mulheres que podem se dar ao luxo de se estabelecer em posições de impotência ter a vida resolvida. A modelagem das experiências de violência que o feminismo está fazendo causa efeitos perversos nas mulheres menos privilegiadas, pois ao assumirem os significados de passividade, irresponsabilidade, irracionalismo e infantilidade, elas são disciplinadas de acordo com os interesses das mulheres das classes dominantes, passando longe das mulheres pobres, racializadas, trans ou em situação de maior vulnerabilidade, que não terão as mesmas prerrogativas ou reconhecimento que mulheres brancas, heterossexuais, nativas ou burguesas de classe média. De fato, mesmo no âmbito dos feminismos de base, muitas vezes as mesmas vítimas que foram encorajadas a tornar seu caso visível e que foram pressionadas a fazer interpretações dolorosas e até exageradas de sua experiência são abandonadas no final do processo, precisamente porque tem contribuído para alimentar a demanda e a imobilidade no local da vítima. O que a princípio tem um uso que dá sentido à própria existência política e nas práticas mais extremas e punitivas acaba sendo aborrecido para as pessoas que se aproveitaram politicamente da vítima, que se tornou uma companhia incômoda pela dor e irracionalismo que assumimos a responsabilidade de fortalecê-lo e eternizá-lo, tornando-o um fato identitário que lhe confere legitimidade e existência.

Além disso, os significados atribuídos à categoria de vítima, segundo a qual são seres bondosos, sinceros e irresponsáveis, moralizam a questão da obtenção de direitos que devem se basear em causas objetivas e não no virtuosismo das mulheres agredidas. Além disso, essa defesa da virtude e da superioridade moral das vítimas nega outras complexidades, como a realidade das falsas acusações que, apesar de poucas, existem. A negação dessa realidade pelo feminismo deixa a interpretação do fenômeno para a extrema direita, especialista em destacar e aproveitar a falta de rigor de alguns desses movimentos.

Em contrapartida, alguns movimentos feministas tratam as pessoas que agridem da mesma forma que o sistema coercitivo estatal, principalmente entendendo que proteger e defender os interesses da vítima deve andar de mãos dadas com punir, odiar ou ignorar os direitos ou garantias do ofensor. As pessoas que agridem são vistas como inimigas e é difícil entender que seus atos podem ser de natureza diversa, ou seja, podem ser pontuais e não se repetirem, podem ser repetidos, podem ser resultado de vários fatores de a configuração da subjetividade e não apenas causada pelo desejo de dominação masculina, que pode ocorrer pelo desconforto advindo de fazer parte de grupos estigmatizados ou punidos, ou como resposta à impotência ou outras violências vivenciadas. Compreender essa complexidade não implica desresponsabilização de quem agride, como às vezes se quer entender, mas implica o rigor da análise para atingir as estratégias políticas que devem ser desenhadas para prevenir e reparar a violência no quadro de nossas comunidades políticas e afetivas.

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Um feminismo que trabalha para ampliar nossa capacidade de agir, nosso poder de decisão, que se compromete a ampliar as margens estruturais e individuais de liberdade e segurança para as mulheres, mas sabendo que a vida é insegura e que a segurança total é impossível e pode ser contrária à liberdade. (Cristina Garaizabal)

Como dissemos no início, tudo isso contribui para a falta de análise estrutural da violência sobre a qual baseia-se o desenho de nossas estratégias políticas. A tendência punitiva ao particularismo, à atomização e à destruição da comunidade é fruto de um feminismo essencialista e identitário que exige unidade e fidelidade aos axiomas internos que mais beneficiam as parcelas mais privilegiadas do grupo de mulheres e pessoas diversas em relação aos gêneros. Localizado na imobilidade e na impossibilidade da crítica interna, esse feminismo estabelece a censura e as acusações de cumplicidade com o “inimigo” como estratégias para neutralizar pessoas que discordam das posições mais hegemônicas. Tudo isso não só acaba justificando os expurgos internos e excluindo as partes mais vulneráveis do grupo de mulheres, como profissionais do sexo ou mulheres trans, como acaba sustentando mensagens, slogans e análises não apenas pouco rigorosas mas quase ridículas. Isso, somado aos julgamentos sumários sobre a vida das companheiras e companheiros pelo abandono das lutas estruturais e transversais em favor do feminismo como “modo de vida”, tendo como risco a perca do poder transformador de algumas das estratégias do feminismo.

Como diz a filósofa argentina Moyra Pérez: “Pessoalmente, estou mais interessado em pensar como seria um sistema de justiça organizado em torno da equidade e da justiça social para todas as pessoas, independentemente de seu gênero, mas levando em consideração o gênero como fator, entre outros, de injustiça e opressão”. É a partir daí que se pensa um movimento emancipatório, que faça parte das estratégias feministas junto com as de outros movimentos específicos. Uma força coletiva que, como diz Núria Alabao, pode juntar-se às lutas em curso, não só as que defendem a liberdade sexual e de gênero, mas também as que se articulam pela redistribuição da riqueza e contra as forças neoliberais.

Não podemos nos permitir contribuir minimamente para reforçar instituições reacionárias que causam violência e privação a pessoas menos privilegiadas. Essa necessidade torna-se mais evidente pelo quanto mais diversificadas são nossas comunidades e quanto mais conscientes nos tornamos de quem deixamos para trás quando defendemos determinadas configurações políticas. É por isso que muitos de nós defendemos abertamente a organização a partir de objetivos políticos compartilhados, mas revalorizando o compromisso ético e político e a solidariedade sobre a identidade politizada.


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