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TRIBUNA ABERTA | Conteúdos Escolares: moeda de troca em contexto de desorientação curricular?

Publicamos em nossa Tribuna Aberta o texto de Alessandra Nicodemos e Fabiana Rodrigues, ambas membros do Fórum EJA/RJ.

sábado 18 de abril de 2020 | Edição do dia

Foto: Sérgio Luiz A. da Rocha

Precisamos avançar na discussão sobre EaD em tempos de pandemia, já que os exaustivos argumentos, propagados por diferentes sujeitos políticos, intelectuais, professores/as e trabalhadores/as da educação parecem não surtir efeito sobre os gestores da educação pública. Já assistimos, nas últimas semanas, uma infinidade de lives, debates virtuais, textões no Facebook, artigos em jornais e blogs acadêmicos que repetem, quase como um mantra: não existem computadores e dados para todos os professores e alunos, estamos em uma sociabilidade em tempos de isolamentos que nos fragiliza emocionalmente e em nossa produção e a realidade econômica da grande maioria da população impõe a luta pela sobrevivência como imperativa.

Tentando contribuir com o avanço desse debate e procurando estabelecer uma interlocução possível com uma realidade bem próxima - no caso a política de educação virtual no estado do Rio de Janeiro -, esse texto pretende problematizar um dos argumentos centrais da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) na defesa da manutenção de sua proposta de educação digital: os alunos das escolas públicas da rede estadual têm o direito a ter acesso aos conteúdos escolares, onde a defesa de um conteudismo radical coloca-se como o próprio sentido de escolarizar pessoas. O que causa-nos inquietação é a forma como a proposta de educação digital está sendo organizada: sem fundamentos legais e curriculares estáveis e claros, ou seja, propaga-se o anúncio de acesso a conteúdo, num contexto que consideramos - na ausência de um termo mais apropriado - de desorientação curricular vivenciada na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro.

O esforço dessa análise crítica da realidade educacional terá, como contraponto e interlocução, o documento Circular Interna (CI) SEEDUC/SUGEN SEI nº22, Orientações pedagógicas em relação à Plataforma Google for Education e ao conjunto de ferramentas que a compõem, em especial o Google Classroom, publicado no dia 5 de abril de 2020, pela SEEDUC e direcionado a professores e gestores da rede.

O debate sobre o direito aos conteúdos escolares remete-nos, invariavelmente, às discussões e tradições curriculares e, nesse texto, não caberia um grande aprofundamento teórico. Valendo-nos da metodologia da Pesquisa Militante (JAUMONT, 2016), que indica que: “A produção de conhecimentos e o desenvolvimento científico não estão dissociados dos acontecimentos societários, mas, pelo contrário, são partes constituintes dos mesmos” (pg 416), vamos nos ater a um breve histórico, relativo à última década, abarcando alguns marcos da política de currículo no Estado do Rio de Janeiro na etapa do Ensino Médio e na modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Nossa intenção é problematizar, no tempo presente, os processos de seleção e didatização dos conteúdos propostos pela SEEDUC/RJ a serem introduzidos na Plataforma Google, como possiblidade de manutenção do calendário letivo em período de distanciamento social.

Nesse histórico, o ano de 2011 constitui um marco na elaboração e implementação de um novo documento curricular no Rio de Janeiro, o Currículo Mínimo. Tal documento foi sendo elaborado e atualizado até avançar, em 2012, para todas as etapas e modalidades atendidas pela SEEDUC/RJ: etapa final do Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio Normal - formação de professores. Em todas as disciplinas constituintes dessas ofertas foram elaborados, em parceria com universidades públicas e a participação de um número restrito de professores da rede, uma proposta curricular específica. O documento era disponibilizado publicamente nos portais www.conexaoprofessor.rj.gov.br e www.educacao.rj.gov.br e professores e escolas passaram a receber significativas pressões para a sua implementação e execução.

Destarte o Currículo Mínimo não se constituía como uma política isolada, mas pode ser avaliado no contexto das políticas neotecnicistas (FREITAS, 2012) em curso em várias experiências nacionais e internacionais do período. Políticas de responsabilização, meritocracia e privatização acompanham esses processos de inovação curricular, associadas a políticas de avaliação em larga escala. No caso dessas últimas, o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) cumpria essa função, bem como as políticas de bônus salarial vinculados a desempenho, também implementadas nas escolas estaduais no período, fragilizando a isonomia salarial de seus docentes.

Tais políticas educacionais fluminenses sofrem desgastes significativos e constroem consensos importantes ao longo do tempo. Dentre os consensos, o Currículo Mínimo, com todas as críticas que podemos fazer com relação a sua elaboração e implementação, ganhou capilaridade nas escolas estaduais e, até hoje, constitui a referência curricular mais significativa dos professores.

Já o desgaste - fruto da organização de movimentos sociais de docentes e educandos e de suas ações - destacadamente as ocupações de escolas e as greves dos professores estaduais em 2016 -, conseguiram a extinção do SAERJ. No momento o portal Conexão Professor não é mais um espaço de hospedagem do Currículo Mínimo, ou ainda do controle de sua execução pelos docentes, como já foi no passado, mas permanece em uso, exclusivamente, como local de registro de frequência e notas dos estudantes, bem como alocação do quadro de horário dos professores.

E a busca, nas redes sociais oficiais da SEEDUC/RJ, pelo documento curricular que regulamenta as escolas revela um apagão virtual - todas as páginas referentes ao Currículo Mínimo foram retiradas dos portais da SEEDUC/RJ, o que consideramos uma irresponsabilidade histórica e uma falta de cuidado com a memória das políticas educacionais fluminenses.

E nesse apagão virtual cabe indagar: qual currículo deve ser cumprido nas escolas estaduais de Ensino Médio e de Educação de Jovens e Adultos em tempo de educação virtual? Toda essa preocupação com o direito a conteúdos escolares por parte dos alunos não seria uma falsa questão? Se não podemos ter acesso, com clareza, ao currículo que está prevalecendo nas escolas da rede estadual, como os professores irão transpor e didatizar os conteúdos para a referida plataforma? Que conteúdos serão esses? Como eles o acessarão? E, procurando mostrar as incongruências desse processo, vamos buscar no documento orientador de 5 de abril de 2020, as indicações de conteúdo a serem didatizados na plataforma virtual.

O documento CI SEEDUC/SUGEN SEI nº 22, emitido pela SEEDUC/RJ, objetiva apresentar as orientações pedagógicas em relação à Plataforma Google for Education e ao conjunto de ferramentas que a compõem, em especial o Google Classroom. Foi divulgado entre os profissionais da educação que atuam na rede estadual, como forma de atender, parece-nos, às exigências contidas no artigo 2 § 1° da Deliberação 376/2020 do Conselho Estadual de Educação (CEE), que exigiu um plano pedagógico de ação imediata.
O documento, produzido pela SEEDUC/RJ, que pretende orientar os diferentes profissionais da educação, suscita mais dúvidas do que respostas e, conforme, a CI o objetivo é delimitar caminhos curriculares, apresentar ferramentas digitais para as aulas à distância, encaminhar os procedimentos de acompanhamento de conteúdo e de frequência dos alunos, indicar a necessidade de reuniões para traçar estratégias entre a equipe de professores e gestores, regulamentar a alocação do quadro de horário previsto no início do ano de 2020 e apresentar estratégias pedagógicas aos professores.

Um ponto central na Circular Interna é a indicação do uso de dois documentos curriculares pelos professores: sobre o primeiro, o ‘Currículo Básico’, não sabemos a que estão se referindo - seria o Currículo Mínimo? Porque nomeá-lo de forma diferenciada? Onde os professores podem acessar esse documento? E o segundo, ‘Base Nacional Comum Curricular’. Conforme destacado na CI: “Para preparar as atividades que serão postadas na sala de aula de cada turma (Google Classroom), o professor deverá fazer o seu planejamento antecipadamente organizando e selecionando o material de acordo com o Currículo Básico e o Documento Orientador da BNCC” (RIO DE JANEIRO, 2020).

No ano de 2019, o Conselho Estadual de Educação regulamentou o Documento de Orientação Curricular do Rio de Janeiro, somente para as etapas do Ensino Fundamental e Educação Infantil. Portanto, para a grande maioria das escolas estaduais, as que atendem o Ensino Médio e a EJA, não existe regulamentação curricular oficial elaborada pelo CEE. Assim, indagamos novamente: como os professores e gestores selecionarão os conteúdos a partir da BNCC?

No caso específico da EJA a situação é mais alarmante, pois é público e notório que a atual BNCC não faz nenhuma referência à modalidade, ou melhor, a EJA foi invisibilizada nas três versões do documento, como mais uma faceta do processo de desescolarização de sua oferta e estrutura no tempo presente (NICODEMOS, 2019).

No caso do Ensino Médio, a situação é tão delicada quanto, pois a BNCC, nessa etapa, está vinculada à implementação da Reforma do Ensino Médio e a construção dos itinerários formativos, o que ainda não foi elaborado no Rio de Janeiro. Portanto, o que temos, hoje, com a BNCC para o Ensino Médio, - se estamos considerando a formalidade de currículo como expressão de seleção de conteúdos somente -, é um documento bastante aligeirado e segmentado em áreas de conhecimentos e não em disciplinas.

A organização da BNCC para o Ensino Médio contempla as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, com apresentação das competências especificas dessas duas disciplinas. Em seguida, são expostas duas grandes áreas interdisciplinares - Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas - onde também são apresentadas as competências especificas de diversas áreas disciplinares ‘tudo junto e misturado’, como gostam de falar nossos educandos, mas é tudo junto e misturado mesmo!!!

O professor de humanas terá que didatizar o conteúdo, agora de forma virtual, levando em consideração essa competência, por exemplo: “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir da pluralidade de procedimentos epistemológicos, científicos e tecnológicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a eles, considerando diferentes pontos de vista e tomando decisões baseadas em argumentos e fontes de natureza científica”.

Se a BNCC alimentará a plataforma do Google/SEEDUC/RJ, esse modelo de competências curriculares é que orientará o processo? Ademais, não podemos esquecer que professores de História, de Geografia, de Sociologia ou de Filosofia poderão mobilizar tal competência, já que a mesma, tangencia todas essas disciplinas. De verdade não é exagero, cunhar esse momento como de Desorientação Curricular, não acham?

O debate sobre a BNCC na Etapa do Ensino Médio e na EJA ainda se circunscreve ao processo de regulamentação em nosso estado, e cabe ao Conselho Estadual de Educação - órgão normativo, regulador, deliberativo, consultivo e de assessoramento -, a discussão, a deliberação e a normatização da BNCC para as escolas estaduais. Vale ressaltar que estamos destacando que a proposta da Secretaria, nessa CI é usar, como referência curricular, a BNCC, o que não está em consonância com a legislação e com o ordenamento das questões educacionais e curriculares do Estado, conforme a Lei nº 6864, de 15 de agosto de 2014, em seu art. 10, que acrescenta o artigo 14-A à Lei nº 4528, de 28 de março de 2005, a seguinte redação: “a competência para inclusão de novas disciplinas e conteúdos curriculares obrigatórios na rede pública ou privada de educação é do Conselho Estadual de Educação" (RIO DE JANEIRO, 2014). Ou seja, ao propor o documento referência da BNCC como orientador do planejamento pedagógico, a SEEDUC/RJ desconsidera todo o encaminhamento e o debate legal que deve ser fomentado no Conselho Estadual de Educação (CEE).

Em um movimento açodado e aligeirado, construiu-se mecanismos de ensino à distância sem considerar as especificidades das diferentes etapas e modalidades da educação básica. Além disso, desconsiderou-se as dificuldades de acesso aos meios digitais, em um estado marcado por uma profunda desigualdade social que apresenta, agora, um caminho curricular não normatizado, ignorando a formação de seus docentes e o diálogo com a comunidade escolar.

A questão curricular e dos conteúdos ainda é atravessada pelas diversas demandas que a implementação da plataforma exige dos professores, como a autoaprendizagem para a utilização das diferentes ferramentas sugeridas para a construção das aulas – drive, e-mail, agenda Google, Google apresentação e Google slides, dentre outros. Ademais, salientamos a sugestão de planejamento de aulas que se fundamentem em um documento não discutido e, portanto, não aprovado, a proposta de acompanhamento pedagógico sem maiores orientações, as reuniões à distância com os gestores das unidades escolares e a presença virtual na plataforma nos horários correspondentes ao quadro de horário elaborado em janeiro de 2020. É mais que provável que todas essas atividades excedam em muito a carga horária dos professores, fragiliza a sua prática pedagógica e assoberba a sua vida cotidiana, em uma das crises humanitárias mais significativas da nossa era.

Outro problema que se apresenta no documento, e que afeta a questão curricular e de conteúdo, é a organização das turmas na plataforma: diferentes disciplinas alimentarão uma única turma com mídias e recursos diversos sem que haja uma interação ou conexão entre elas, podendo resultar em sobrecarga de trabalho escolar para alunos da classe trabalhadora que estão, no momento, buscando, prioritariamente, meios para o seu auto sustento e de suas famílias, em muitos casos.

Buscou-se unir documento curricular, ora chamados de currículo básico, BNCC e Base Nacional Comum, a legislações e orientações sem ao menos encontrar pontos e metas convergentes, apresentando um quebra cabeça em que as peças não se encaixam, e essas peças são os conteúdos que os professores deverão ministrar na plataforma. Nesse sentido, entendemos que o documento em análise apresenta questões desarticuladas e desrespeita os trâmites legais das políticas educacionais e curriculares do Estado. Além disso, não atende e não problematiza as questões importantes e pertinentes ao processo de ensino/aprendizagem nesse momento de distanciamento social.

No mais, reafirmamos que a denúncia dessas incongruências aponta que o momento que atravessamos não seja de experimentos inócuos de práticas educacionais e, principalmente, de estruturas e mecanismos de privatização que corrompem e fragilizam o sentido público da Educação ofertada na rede estadual do Rio de Janeiro. E, como acreditamos, como nos diz Paulo Freire, que educação é um ato político, que a resistência se fortaleça e nos fortaleça!

Referências Bibliográficas

FREITAS, L. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n.119, p. 379-404, abr.-jun. 2012

NICODEMOS, A. A Educação de Jovens e Adultos em contexto conservador e ultraneoliberal: caminhos do desmonte, caminho da resistência. In: Elionaldo Fernandes Julião; Fabiana Rodrigues. (Org.). Reflexões Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos nas prisões. 1ed.São Paulo: Paco Editorial, 2019, v. 1, p. 9-241.

JAUMONT, J; VERSIANI, R. A Pesquisa Militante na América Latina: trajetória, caminhos e possiblidades. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, vol. 07, n. 13, 2016.

RIO DE JANEIRO. Lei 6.864 de 15 de agosto de 2014. Altera dispositivo da Lei 4.528 de 28 de março de 2005 e dá outras providências. Rio de Janeiro: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro: seção 1, RJ, 18 de agosto de 2014, p. 21.

Esse texto foi publicado na Tribuna Aberta, portanto, não necessariamente expressa a opinião deste diário

Alessandra Nicodemos é professora da Faculdade de Educação da UFRJ e membro do Fórum EJA/RJ e Fabiana Rodrigues é professora da Rede Estadual e membro do Fórum EJA/RJ


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