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Comunismo: transformar o mundo, mudar a vida

Juan Dal Maso

Comunismo: transformar o mundo, mudar a vida

Juan Dal Maso

O comunismo continua sendo assunto de muita discussão para muitas pessoas: enquanto a extrema direita denuncia seus planos malévolos e os progressistas perguntam em que lugar do mundo ele é aplicado, nos últimos anos colóquios e livros de intelectuais de esquerda (marxistas e não marxistas) voltaram a se questionar sobre sua potência, a partir de abordagens diversas. Nesta oportunidade, tentaremos apresentar alguns argumentos sobre sua atualidade.

Projeto e movimento real

Chamamos de comunismo uma sociedade sem classes, sem Estado e sem opressão, na qual as pessoas se associam livremente. A ideia, fortemente vinculada a Marx, não nasceu com ele. As rebeliões de Tomás Münzer e Graco Babeuf, por exemplo, foram guiadas por ideais comunistas, além das formas como foram teoricamente elaboradas de acordo com os parâmetros de épocas históricas muito diferentes. Entre os chamados "socialistas utópicos", Cabet, Owen ou Fourier também eram partidários de uma sociedade sem classes sociais. Do nosso lado do mundo, as comunidades agrárias dos povos originários praticavam desde antes dos incas costumes fortemente coletivistas e comunitários. Ou seja, as ideias de Marx fazem parte de um anseio de libertação mais amplo e criticamente recolhem ideais comunistas anteriores, em um contexto de surgimento da luta da classe trabalhadora moderna.

Como Emmanuel Barot apontou em seu livro “Marx en el país de los soviets. O los dos rostros del comunismo" [1] para Marx o comunismo é um projeto ou um fim a ser realizado: a associação livre das pessoas em uma sociedade sem classes. Mas também é o movimento real que busca abolir o estado atual de coisas. Em sua primeira acepção, é um objetivo pensado fora da sociedade atual, mas na segunda é um movimento que ocorre dentro da própria sociedade capitalista. O "comunismo-movimento" é o que nos permite pensar no "comunismo-fim" ou no comunismo como projeto em termos de algo realizável. E ambos têm razões biológicas, sociais, políticas e filosóficas.

A base corporal

O argumento neoliberal ou libertário do indivíduo completamente isolado tem um problema ligado à imbricação entre biologia e a sociedade que nos caracteriza. Você não nasce e corta sozinho o cordão umbilical. A socialidade está desde o nascimento marcando a vida das pessoas, ao mesmo tempo em que a biologia as iguala em termos materiais: temos um corpo que desfruta, sofre, adoece e morre. Marx, seguindo Feuerbach, chamou essa unidade biológica das pessoas de "ser genérico" em seus Manuscritos econômico e filosóficos de 1844, embora o conceito fosse mediado pela concepção hegeliana de autoprodução do sujeito humano pelo trabalho. O "ser genérico" foi posteriormente deixado de lado por Marx em função de uma concepção mais complexa que apelou para as relações sociais para dar conta da famosa "essência humana". Sem dúvida, esta concepção feuerbachiana foi um episódio superado na trajetória de um jovem Marx abrindo caminho para uma nova concepção de filosofia, história e política. No entanto, isso não o torna menos fundamental ao procurar qual pode ser a base material para uma ética de solidariedade. A coexistência dos corpos precede a comunidade social e política, não a garante (existem divisões de classe), mas é uma condição necessária para pensar em um projeto de sociedade baseado em outros valores que não a competição entre indivíduos presumivelmente isolados.

Cooperação e solidariedade

Outra questão a considerar contra a imagem de uma sociedade composta por indivíduos isolados competindo entre si é que precisamente o capitalismo é um grande experimento de cooperação em grande escala. Mas essa cooperação permanece invisibilizada como tal. A ideologia burguesa a dá por certa enquanto se beneficia dela, destacando o comando capitalista do processo moderno de produção de mercadorias e reprodução da vida social, e não a coordenação de milhões de pessoas que colaboram objetivamente na realização de tarefas simultâneas (nem sempre convergentes, devido à "anarquia da produção" capitalista). Essa cooperação social, libertada do comando capitalista, que surge da estrutura de classes da sociedade, seria um ponto de apoio monumental para construir uma sociedade comunista. Assim o demonstram em pequena escala e superando inúmeras dificuldades as fábricas recuperadas sob gestão operária.

Adiciono outro aspecto da cooperação não menos importante: as tendências à solidariedade (cuja base última é a comunidade corporal à qual me referi anteriormente) que existem entre as pessoas espontaneamente, como quando alguém sobe no ônibus e não tem crédito no cartão de transporte e outra pessoa empresta o seu, em vez de deixá-lo embaixo invocando as leis da oferta e da demanda. Claro que se podem mencionar muitos exemplos de comportamentos pouco solidários. De fato, esses têm um lugar importante em uma sociedade em grande parte voltada para a vida privada. No entanto, os laços de solidariedade estão mais em sintonia com o caráter de artefatos biológico-sociais das pessoas e com a cooperação social objetivamente existente – hoje mal utilizada em prol do lucro privado – do que com a pretensão de se colocar fora das implicações coletivas. Bem compreendida, a solidariedade coletiva não se opõe à liberdade individual. Os liberais (aparentemente) afirmam que ninguém tem o direito de prejudicar o outro. Mas se pode prejudicar ativamente ou por omissão. Daí que, em vez de assumir uma posição indiferente em relação aos outros e focada em si mesma, a solidariedade une a felicidade própria à dos outros. Desfrutar da vida e ajudar a viver, como sugeriu Mario Bunge em algum momento.

A base tecnológica

Indo para um argumento mais clássico, mas relacionado ao anterior, o que permitiria chegar a uma sociedade sem exploração é a própria potência tecnológica que o capitalismo conseguiu desenvolver, embora sua utilização deixe muito a desejar, tanto do ponto de vista humano quanto ambiental. Claro que essa tecnologia, nas mãos do capitalismo, é usada de várias maneiras contra a classe trabalhadora. Como demonstraram pesquisas como o clássico livro de Pietro Basso "Modern Times, Ancient Hours", os avanços na informatização e robótica aplicados à produção não resultaram em uma redução da jornada de trabalho e em um maior bem-estar para a classe trabalhadora, mas sim em um aumento das horas trabalhadas, piora nas condições de trabalho e crescimento do desemprego. A isso se soma a promoção de consumos alienantes, alimentados exponencialmente pela obsolescência programada. Em outras mãos, a tecnologia poderia oferecer oportunidades completamente diferentes: reduzir a jornada de trabalho, buscar a eliminação das tarefas insalubres, otimizar os processos de trabalho para torná-los mais agradáveis e menos alienantes. Claro que isso deveria ser pensado buscando reverter a tendência do capitalismo de transformar as forças produtivas em destrutivas. A crise ambiental está à nossa porta e não parece possível revertê-la dentro da dinâmica capitalista de busca constante pelo lucro.

Durante muitos anos debatemos contra uma espécie de "progressivismo" de Antonio Negri (que é uma clara herança do operaísmo), especialmente em relação à sua ideia de um "comunismo sem transição" baseado em um novo sujeito caracterizado pelo trabalho imaterial, tudo isso como uma resposta do capital à "rebelião contra o trabalho" dos anos 60 e 70. Além disso, as teorias de Negri são tributárias de posições como aquelas que falam de um "capitalismo cognitivo" e também do pós-estruturalismo de Deleuze e Guattari, algo que pode ser aprendido do autonomismo é precisamente a importância daquelas práticas que – sob a sociedade atual – mostram que o processo de socialização não é uma arbitrariedade, mas tem a ver com as próprias tendências contraditórias do capitalismo. A cooperação e o desenvolvimento tecnológico são exemplos disso.

A "hipótese Mariátegui"

Mas no comunismo nem tudo é modernidade. Também temos um lado "arcaico", que são as tradições comunitárias, que têm uma longa história e que, na América Latina, Mariátegui identificou como o "socialismo prático" das comunidades indígenas. Aqueles que foram formados nos parâmetros do marxismo clássico (mais precisamente russo) costumam ter certas reservas em relação a essa ideia mariateguiana, que constitui uma de suas muitas contribuições originais para a teoria marxista. Nessa visão, o comunismo é associado a um nível de desenvolvimento econômico superior ao do capitalismo. O problema dessa perspectiva (além de desconhecer a visão de Marx sobre a comuna rural russa, assim como a desconheceu o marxismo russo em grande medida) é que ela coloca todo o foco no desenvolvimento, mas não presta atenção à prática das pessoas.

A experiência soviética demonstrou, como dizia Trotsky, que o socialismo – considerado na tradição como antessala do comunismo – não se constrói por automatismo econômico. Não é por acaso que Lenin mesmo lutou pelo desenvolvimento em larga escala da cooperação na URSS. Portanto, a tecnologia é uma condição necessária, mas não suficiente. Pessoalmente, tenho sérias dúvidas de que alguém se torne comunista porque as máquinas o emocionem. E a tradição comunitária dos povos originários, cuja força vimos recentemente na luta de Jujuy na Argentina, é um ponto de apoio para a luta pelo comunismo. Sua defesa da prática cooperativa em detrimento da competitiva e sua busca por uma relação equilibrada com a natureza são essenciais para recriar uma perspectiva comunista. Pensemos também que essas tradições comunitárias anteriores ao capitalismo convergem com as que a própria classe trabalhadora desenvolveu em busca de uma sociabilidade diferente do capitalismo, criando todo tipo de instituições colaborativas, desde partidos e sindicatos até clubes e teatros.
A questão da transição

Marx e Engels lançaram as bases da concepção comunista moderna e contemporânea ao afirmar que a história da humanidade é a história da luta de classes e que a classe trabalhadora explorada pelo capitalismo deveria realizar sua própria revolução social para pôr fim a isso.
No Manifesto Comunista, eles afirmavam que a classe trabalhadora ("o proletariado") deveria se tornar a classe dominante e empreender uma série de medidas para superar o capitalismo (esclarecendo que essas medidas poderiam variar de acordo com o lugar e a situação e que nem todas eram necessariamente revolucionárias):

1.Expropriação da propriedade imobiliária e aplicação da renda do solo para as despesas públicas. 2.Imposto progressivo significativo. 3. Abolição do direito de herança. 4. Confisco da fortuna dos emigrantes e rebeldes.5.Centralização do crédito no Estado por meio de um Banco nacional com capital do Estado e regime de monopólio. 6.Nacionalização dos transportes. 7.Multiplicação das fábricas nacionais e dos meios de produção, aração e melhoria de terras de acordo com um plano coletivo. 8. Proclamação do dever geral de trabalhar; criação de exércitos industriais, principalmente no campo. 9. Articulação das explorações agrícolas e industriais; tendência a apagar gradualmente as diferenças entre campo e cidade. 10. Educação pública e gratuita para todas as crianças. Proibição do trabalho infantil nas fábricas em sua forma atual. Regime combinado de educação com produção material, etc.

Posteriormente, após o aprimoramento repressivo do Estado burguês com o golpe de Napoleão III, como pode ser visto em "A Luta de Classes na França" (1850) e na carta a Weydemeyer (1852), Marx assume a formulação da ditadura do proletariado, cuja primeira expressão histórica concreta foi vista na Comuna de Paris de 1871. Este governo da classe trabalhadora, representando a maioria da população contra os parasitas capitalistas, teria a função de executar as medidas de expropriação do capital e construção do socialismo.

Na "Crítica ao Programa de Gotha", Marx distingue duas fases no desenvolvimento social após o capitalismo:

[Na primeira fase] [2] Por conseguinte, o produtor individual – feitas as devidas deduções – recebe de volta da sociedade exatamente aquilo que lhe deu. O que ele lhe deu foi sua quantidade individual de trabalho. Por exemplo, a jornada social de trabalho consiste na soma das horas individuais de trabalho. O tempo individual de trabalho do produtor individual é a parte da jornada social de trabalho que ele fornece, é sua participação nessa jornada. Ele recebe da sociedade um certificado de que forneceu um tanto de trabalho (depois da dedução de seu trabalho para os fundos coletivos) e, com esse certificado, pode retirar dos estoques sociais de meios de consumo uma quantidade equivalente a seu trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma. Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque, sob as novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma. [...] Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”.

Essa distinção entre duas fases, também conhecida como distinção entre socialismo e comunismo, foi posteriormente recuperada por Lenin em sua crítica ao estatismo reformista da socialdemocracia em "O Estado e a Revolução" e por Trotsky em suas reflexões sobre a burocratização da URSS em "A Revolução Traída". As revoluções do século XX adicionaram uma questão adicional: a transição ao socialismo em países com um desenvolvimento capitalista menor do que o dos países metropolitanos acrescentava uma espécie de prólogo a essas duas etapas pós-capitalistas delineadas por Marx.

Em seu livro "Communisme et stratégie", Isabelle Garo observa que a distinção canônica entre essas duas fases, derivada do texto de Marx, surge de uma interpretação questionável de seu pensamento. Segundo Garo, Marx estava discutindo um projeto de programa que se aproximava mais do que depois seria chamado de Estado de bem-estar do que de uma posição comunista, e por isso simplificou ao extremo sua abordagem, por razões pedagógicas. Mas a fixação dessas etapas como predeterminadas seria incompatível com a concepção marxiana de revolução permanente e com a ideia do comunismo como movimento real. Efetivamente, a transição envolve momentos ou fases, mas não necessariamente etapas predeterminadas de forma rígida. No entanto, como a experiência histórica mostrou, o grau de fluidez da transição depende de condições materiais mais do que de vontades.

E o stalinismo?

Nunca se pode considerá-lo um cachorro morto. Sempre pode surgir, em condições de cerco capitalista, uma casta que afirme que, por ser a garantidora da revolução, merece viver melhor do que o resto.

No entanto, a experiência do século XX não foi em vão. O estalinismo manchou o nome do comunismo, mas as rebeliões de Berlim em 1953, Hungria em 1956 e Praga em 1968 mostraram outras possibilidades: tentativas de estabelecer um socialismo revolucionário de baixo para cima que foram esmagadas pela burocracia, mas que deixaram seu testemunho, no sentido mais pleno e digno do termo: ergueram uma bandeira que coincidia – sem saber na grande maioria – com a que Trotsky e os oposicionistas levantaram na antiga URSS.

As reflexões de Trotsky trazem questões centrais para pensar em uma sociedade de transição para o socialismo que evite as armadilhas do stalinismo: pluralidade de partidos que defendam a revolução, instituições de democracia direta que tomem decisões políticas, econômicas e culturais, planejamento econômico discutido democraticamente. A amplitude da comunicação digital, que nas mãos da burguesia contribui para a proliferação de notícias falsas e ideologia pró-capitalista em grande escala, poderia ser usada para fortalecer a transparência e a possibilidade de igual acesso à informação, dentro de uma democracia operária e popular que amplie os canais de participação e decisão de formas até hoje desconhecidas. Àqueles que sugerem que é necessário combinar a instituição do voto com a organização de tipo soviético, dizemos que isso já existia na Constituição russa de 1918, embora – pequeno detalhe – o voto não fosse exatamente "universal": os exploradores estavam privados de direitos políticos.

Idealismo, realismo e tarefa estratégica

Não falta quem aponte que estas ideias estão isentas de realismo. Mas o que não é realista é continuar por este caminho destrutivo e pretender que terá resultados melhores do que os atuais. Aqueles que querem resolver tudo através do livre mercado são ou ingênuos ou simplesmente mentirosos. Por outro lado, aqueles que fazem culto do ’reformismo sem reformas’ não têm nem idealismo nem realismo (como Mariátegui uma vez disse sobre o suposto ’pensamento ibero-americano’): em vez de grandes ideais, defendem uma ’realpolitik’ decadente que já não pode entusiasmar ninguém, mas pretendem apresentá-la como um elemento moderador dos problemas que eles próprios reproduzem com sua própria prática. Contra a aceitação da decadência desta sociedade, as palavras de André Breton que citamos no título, unindo Marx e Rimbaud, estão mais vigentes do que nunca.

Após longas décadas de restauração burguesa, abriu-se um período de instabilidade sistêmica, marcado pela crise, a guerra e as revoltas populares (incluindo algumas lutas mais ’clássicas’ do movimento operário organizado como na França). Grandes multidões se colocaram periodicamente em movimento nos últimos anos, mas sem encontrar uma grande causa pela qual lutar além de demandas mais ou menos imediatas. Daí as revoltas, em muitos casos, terem sido seguidas por recomposições estatais mais ou menos conservadoras. Faltou menos o ’movimento real’ do que o claro objetivo de ’abolir o estado atual de coisas’. Está posta uma luta ideológica, estratégica e programática para buscar uma convergência entre um e outro, sabendo - como Trotsky disse uma vez - que a história pode pular etapas, mas nós não podemos pular as etapas da experiência da própria classe trabalhadora.


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FOOTNOTES

[1,Em livre tradução para o português, "Marx no país dos sovietes ou os dois rostos do comunismo"

[2Nota da edição
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