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SEMANÁRIO

Como a defesa de uma Assembleia Constituinte foi parte da preparação da Revolução Russa pelos bolcheviques?

Diana Assunção

Iuri Tonelo

Como a defesa de uma Assembleia Constituinte foi parte da preparação da Revolução Russa pelos bolcheviques?

Diana Assunção

Iuri Tonelo

O Esquerda em Debate, um programa de entrevistas que é a mais nova iniciativa do portal Esquerda Diário, tem convidados intelectuais e personalidades políticas e militantes, entre os quais Vladimir Safatle, Plínio Sampaio Jr., Marinalva Oliveira, entre outros. São entrevistas com diversas tendências do pensamento político atual para o importante debate na vanguarda dos trabalhadores sobre a crise atual que está vivenciando o PSOL, agora em uma federação com a Rede, partido ecocapitalista e apoiando incondicionalmente a chapa Lula-Alckmin, abrindo mão de qualquer política independente e que se enfrenta com a conciliação de classes. Trata-se portanto de uma iniciativa que visa contribuir para a conformação de uma política independente dos trabalhadores em nosso país.

Um dos temas da política atual do Brasil que temos abordado no programa é a necessidade de uma política que questione as expressões bonapartistas (de autoritarismo do executivo, judiciário e congresso) que estamos vendo no atual sistema político brasileiro, que tem sido decisivamente moldado pelo golpe institucional ocorrido em 2016. Para isso, a proposta de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, imposta pela mobilização e que questione o conjunto das instituições em suas expressões autoritárias, que serviram para implementar enormes reformas contra os trabalhadores (previdenciária, trabalhista, teto fiscal), é uma resposta que se coloca na realidade atual brasileira como parte de lutar por uma saída estratégica socialista e revolucionária.

Mas essa não é uma compreensão geral dos setores da esquerda. Em uma das entrevistas do Esquerda em Debate, o convidado Zé Maria dirigente do PSTU dentre muitos argumentos para defender seu ponto de vista expressou que seria equivocado defender uma constituinte dizendo: “olha o que aconteceu na Rússia em 1917, a classe operária, junto com camponeses, soldados, tomaram o poder. Teve uma eleição constituinte depois, qual foi o resultado?”. Isso foi argumentado para dizer que não se deve levantar a consigna, o que desconsidera factualmente qual foi a utilização desta consigna na Revolução Russa. Por isso esta é uma discussão que merece ser aprofundada, assim como outros temas que surgem nos distintos debates do nosso programa Esquerda em Debate. Justamente porque a verdade é que, ao contrário da conclusão que induz Zé Maria, nos meses que antecederam a revolução de Outubro o principal partido revolucionário do mundo levantou a consigna de Assembleia Constituinte, como parte do conjunto do seu programa e do trabalho da estratégia que levou a Revolução Russa.

O paradoxo da Revolução de Fevereiro e as Teses de Abril de Lenin

Como é conhecido no processo da Revolução Russa, a insurreição operária que levou os trabalhadores ao poder com o Partido Bolchevique ocorreu em Outubro, depois de meses de lutas intensas no interior dos sovietes e contra as ofensivas burguesas, inclusive tentativa de golpe reacionário. Mas antes desse desfecho, o ano de 1917 foi um imenso laboratório político, com ricas experiências de estratégia e tática dos bolcheviques, algumas das quais são importantes para refletirmos nos dias de hoje.

Um dos pontos de complexidade da experiência russa foram os resultados imediatos da Revolução de fevereiro: a revolução estourou no 8 de março, dia internacional da luta das mulheres, e em cinco dias intensos de mobilizações e embates da luta de classes o czarismo ruiu. Um resultado expressivo da força da mobilização das massas, colocando em xeque um sistema político despótico de centenas de anos.

O problema é que a revolução de fevereiro, ainda que intensa e com impactos decisivos contra o velho regime que governava a Rússia, terminou em um paradoxo: conformou-se um duplo poder, com os sovietes de um lado, e um governo provisório de outro. O ponto fundamental é que essa forma de duplo poder tinha a sua cabeça conciliadores que passaram o poder para as mãos da burguesia, com o argumento menchevique de que sendo a revolução democrático-burguesa em suas tarefas, uma vez que se trata de derrubar um regime czarista arcaico, então era necessário a burguesia ser a classe dirigente do processo. Para usar a expressão forte de Leon Trótski na História da Revolução Russa, eis o “paradoxo da revolução de fevereiro”: ela foi feita pelas massas trabalhadoras e entregou, intermediada pelos conciliadores, o poder à burguesia, que buscavam usurpar o poder dessa revolução.

Aqui entra a escola de estratégia dos bolcheviques e a importância da reivindicação da constituinte antes da revolução de outubro. Quando Lenin chega à Rússia e lança suas célebres Teses de Abril que reorientam o partido bolchevique, o que o dirigente bolchevique explica em poucas páginas e com definições claras é que do que se tratava estrategicamente era de passar todo o poder para os organismos de auto-organização da classe trabalhadora, os sovietes; da ruptura de fato com todos os interesses do capital; e da renúncia às anexações e a política de “defensismo” durante a guerra, que buscava justificativas para estar numa guerra imperialista, alheia aos interesses dos trabalhadores. Ou seja, a partir desse eixo estratégico, Lenin apontava que só com a classe trabalhadora de forma independente a partir dos sovietes é que se poderia avançar para uma verdadeira ruptura socialista contra a burguesia nascente e as velhas oligarquias do campo e do czarismo, e também com a guerra imperialista.

Mas a riqueza do pensamento político de Lenin estava em perceber que havia reivindicações democráticas na sociedade russa, justamente por ter vindo de uma situação tão atrasada, reivindicações estas que não se poderiam deixar de lado: ao contrário, era necessário chocá-las com o governo provisório e os conciliadores e acelerar a experiência das massas para tirar as conclusões corretas, momento em que a convocação de uma assembleia constituinte tinha grande importância como consigna democrático-radical. Assim, escreve Lênin nas Teses de Abril:

Escrevo, publico e explico detalhadamente: “Os sovietes de deputados operários são a única forma possível de Governo revolucionário, razão pela qual nossa tarefa é explicar de maneira paciente, persistente e sistemática os erros de sua tática, uma explicação adaptada especialmente as necessidades práticas das massas”!

Ataquei o Governo provisório por não ter marcado um prazo próximo, nem nenhum prazo em geral, para a convocatória da Assembleia Constituinte, limitando-se a simples promessas. Demonstrei que sem os sovietes de deputados operários e soldados não está garantida a convocatória da Assembleia Constituinte, nem seu êxito é possível.

!!!E atribuem a mim a posição de ser contrário a convocatória imediata da Assembleia Constituinte!!!

Qualificaria tudo isso de bom grado como expressões “delirantes” se dezenas de anos de luta política não me tivessem ensinado a considerar como uma rara exceção a boa-fé nos contraditores [1]

E por que Lênin considera “delirantes” as opiniões de quem achava que ele estava contra a convocação de uma constituinte? Uma importante explicação sobre isso se encontra na célebre História da Revolução Russa de Leon Trótski, em que ele explica como a questão da constituinte era um tema central no período entre as revoluções de fevereiro e outubro de 1917:

Outro líder do partido kadete [da burguesia], Nabokov, explicou depois qual vantagem capital teria sido ganha se Mikhail [Romanov, do antigo czarismo] tivesse aceitado tomar o trono: “A questão fatal de convocar uma Assembleia Constituinte em tempo de guerra teria sido removida”. Devemos ter estas palavras em mente. O conflito sobre a data da Assembleia Constituinte ocupou um grande lugar entre fevereiro e outubro, durante o qual os kadetes categoricamente negaram sua intenção de adiar a convocação dos representantes do povo, enquanto, insistentemente, e obstinadamente, implementavam uma política de adiamento de fato

Interessante notar que os bolcheviques tinham o norte da insurreição operária e sabiam que os conciliadores postergariam o máximo ou desviaram o processo para não convocá-la, e por isso a exigência da constituinte foi parte fundamental da preparação da revolução. Então como essa consigna se articulou com o conjunto da política bolchevique?

De abril a setembro: o trabalho da estratégia em desmascarar os conciliadores

Como colocado, do ponto de vista da estratégia, a política bolchevique era de garantir a passagem ao poder que estava sendo usurpado pela burguesia para as massas trabalhadoras a partir dos sovietes. A consigna que marcava na agitação bolchevique essa política era a de “todo poder aos sovietes”.

No entanto, duas hipóteses se colocaram no tabuleiro da revolução: por um lado, que a pressão das massas, junto a agitação bolchevique, fizesse os conciliadores dos partidos operários e camponeses tomassem o poder de fato em ruptura com a burguesia (o chamado “governo operário”). Por outro, que pela pressão dos anseios democráticos, eles convocassem a assembleia constituinte.

O pensamento formal diria: eles não vão convocar a constituinte e não vão enfrentar a burguesia, então agitemos a consiga de “revolução socialista” e uma hora as massas vão entender e a revolução acontecerá. Isso seria uma visão esquemática, e não a rica complexidade da política revolucionária de Lênin e Trótski. Ao contrário, o que eles fizeram, mantendo a linha estratégica claramente delimitada, foi fazer exigências que desmascarassem os conciliadores, que não podiam alegar “falta de força” uma vez que dirigiam sovietes nas grandes cidades industriais, de operários e soldados armados. Daqui que uma das consignas importantes do período entre as revoluções foi a de “abaixo os ministros capitalistas” (uma vez que os mencheviques e socialistas revolucionários, direção conciliadora dos sovietes, passaram a compor o governo provisório junto à burguesia e seus ministros kadetes). Os bolcheviques diziam: se vocês tomarem o poder e romperem completamente com a burguesia, nós nos comprometemos a enfrentá-los politicamente nos sovietes de maneira pacífica, porque será uma disputa política entre organizações de trabalhadores e camponeses pobres, sem métodos insurrecionais. Ou seja, faziam de forma ofensiva a exigência num momento agudo da luta de classes depois de uma revolução. Os conciliadores romperam com os capitalistas? Não, e justamente por isso a exigência concreta foi fundamental para as massas fazerem experiência com eles.

Também nesse sentido a importância da consigna da constituinte naquele momento como parte do trabalho da estratégia. Isso porque como expresso na citação que apresentamos de Trótski, a exigência para marcarem de fato a data da constituinte, e não em palavras, foi parte de chocar os anseios democráticos das massas contra Kerenski e os agentes do governo provisório russo. E se os conciliadores a tivessem realmente convocado? Nesse caso os bolcheviques participariam da constituinte colocando todas as questões estruturais do país e a necessidade de uma política proletária independente para a resolução dos problemas, ou seja, se a exigência bolchevique obrigasse os conciliadores a convocar a constituinte, não estaria nada resolvida a situação dos trabalhadores, mas as condições para a batalha dos bolcheviques claramente estariam melhores. Por isso os bolcheviques não defendiam a constituinte como uma consigna solta ou como um fim, mas era parte de um sistema que estrategicamente visava debilitar a força política dos conciliadores e aumentar a dos revolucionários diante das ilusões de setores de massas, uma vez que eram os revolucionários os que buscavam uma resposta independente e verdadeiramente emancipatória dos trabalhadores.

Matias Maiello e Emilio Albamonte sintetizam de forma precisa esse aspecto da política dos bolcheviques quando escrevem que:

Durante a Revolução Russa, a partir de uma posição defensiva, os bolcheviques levantaram a exigência às direções conciliadoras majoritárias do movimento de massas (mencheviques e socialistas-revolucionários) de que rompessem com os ministros capitalistas e as potências imperialistas e tomassem o poder. Os revolucionários não participariam de um governo assim, mas lutariam pelo poder de forma pacífica mediante a conquista da maioria nos sovietes. Paralelamente, levantavam a consigna democrático-radical de Assembleia Constituinte. Por sua vez, sem dar apoio político ao governo de Kerenski, chamaram a enfrentar o golpe de Kornílov, aproveitando para armar o proletariado. Nem Lênin nem Trótski, como direção, opinavam que fosse possível uma etapa democrática intermediária, seja sob o governo dos conciliadores, seja sob uma Assembleia Constituinte, mas, em um ou outro caso, se alguma de ambas as variantes se realizasse, a classe operária estaria em melhores condições para lutar pelo poder operário; e se não se realizasse, o que era infinitamente mais provável, serviria para arrancar as massas da influência das direções conciliadoras. [2]

Expressar os fatos de como se desenvolveu a constituinte na política bolchevique é fundamental, pois a forma apresentada por Zé Maria do PSTU, de só destacar que a Constituinte foi dissolvida, após a tomada do poder no caso russo, semeia a confusão na vanguarda e esconde a verdadeira riqueza da política bolchevique para a tomada do poder que inclui a utilização das consignas democrático-radicais como era naquele momento a constituinte.

Vejamos então que, como parte da dialética, tudo que existe pode “se converter em seu contrário”, e naturalmente depois da revolução todos os recursos foram utilizados para voltar-se contra a insurreição dos trabalhadores, inclusive as consignas democrático-burguesas.

A revolução de Outubro e o poder dos sovietes: a manobra menchevique de usar a consigna depois da revolução

Conforme dissemos, a aposta dos bolcheviques, e de Trótski em particular era que caso a Assembleia Constituinte tivesse sido convocada em abril de 1917 ela própria teria sido empurrada a enfrentar todos os problemas sociais e justamente por isso as classes dominantes teriam que se enfrentar com a Constituinte, a covardia dos partidos conciliadores ficaria mais evidente e os bolcheviques, ao participarem desse processo poderiam ter aumentado sua influência e ganhado maioria dos sovietes facilitando as tarefas da revolução. Não foi isso o que ocorreu, entretanto as conclusões dos bolcheviques nunca foram no sentido de rever a política da Constituinte em 1917, muito pelo contrário.

O processo que se desenvolveu não incluiu uma convocação anterior à tomada do poder da Constituinte. Os bolcheviques, ainda assim, aumentaram sua influência com a consigna "todo poder aos sovietes" avançando para a insurreição operária em 25 de outubro de 1917. Na medida em que a tomada do poder e a constituição de um governo de fato dos sovietes e das massas trabalhadoras na Rússia avançava para implementar as medidas que o governo provisório não havia feito, perdia-se a razão de ser da reivindicação da constituinte, uma assembleia democrático-burguesa, na medida em que já havia se conquistado um regime político infinitamente mais democrático e superior: o poder dos sovietes.

Ao contrário, depois da insurreição de Outubro, os socialistas revolucionários e mencheviques mudaram de forma oportunista de posição e começaram a semear ilusões de que somente a Assembleia Constituinte poderia legitimar as conquistas da Revolução. Ou seja, ao mesmo tempo os partidos conciliadores, a burguesia liberal e os oficiais czaristas tomaram essa consigna para si como forma de desviar e derrotar a revolução. E isso tinha uma razão de ser da própria dinâmica da constituinte, que é importante chamarmos a atenção: as listas partidárias para a votação da constituinte foram publicadas antes da revolução de Outubro, e a data da votação ficou para novembro e foi realizada efetivamente nesse mês, depois da insurreição de Petrogrado. Por isso, tanto as listas como a votação (posto que era em um momento muito recente dos efeitos da insurreição em todo o país) expressaram um período anterior da relação de forças, e elegeu em sua maioria os Socialistas Revolucionários (conciliadores), uma partido que inclusive se dividiu no período da revolução, com uma parte aderindo aos bolcheviques - o que também não se expressou nas listas para a votação.

É dessa forma que os mencheviques e socialistas revolucionários vão exigir aos bolcheviques a convocatória da Assembleia Constituinte. Os bolcheviques a convocaram para janeiro de 1918, e a dinâmica dessa assembleia que não durou mais que algumas horas entre a convocação e o 19 de janeiro, teve como crivo fundamental a seguinte questão: a partir das forças do governo dos sovietes se questionou se a assembleia constituinte aceitaria os decretos da revolucionários da paz, que tirava os trabalhadores russos da guerra imperialista, da entrega das terras aos camponeses (expropriando os latifundiários) e se respeitaria o poder dos sovietes, órgão mais democrático dos trabalhadores e avançado da revolução em curso. Rejeitou-se a proposta, e daqui que o choque entre as demandas da revolução e aquela constituinte retrógrada pós-revolução ficou evidente. No discurso sobre a dissolução, Lenin disse que “quando a Assembleia Constituinte novamente manifestou a disposição de pôr de lado todas as questões e tarefas dolorosas e urgentes que lhe foram apresentadas pelos sovietes, nós respondemos-lhes que não pode haver nem um minuto de adiamento. E por vontade do poder soviético a Assembleia Constituinte, que não reconheceu o poder do povo, é dissolvida” [3]

Não por um acaso, Victor Serge escreveu sobre esse episódio que "a dissolução da AC foi chamativa nos outros países, mas na Rússia passou desapercebida". Obviamente, isso não quer dizer que não tenha gerado amplos debates e resistências, inclusive internacionais. Mesmo a grande revolucionária Rosa Luxemburgo, vendo a situação do exterior, não concordou com a dissolução da constituinte pelos bolcheviques como forma de enfrentar as tentativas de desvio. No caso, Rosa Luxemburgo considerou errada a mudança de tática dos bolcheviques que, como apontamos, depois de meses agitando a necessidade da constituinte depois de ganharem maioria nos sovietes e dos sovietes tomarem o poder, decidem dissolvê-la depois que foi convocada. O erro de Rosa neste caso foi justamente não ver que no enfrentamento entre os sovietes e a constituinte já estava se expressando a luta entre dois regime sociais opostos, por isso a contrarrevolução se apoia na defesa da constituinte para dar uma cobertura democrática ao retorno da defesa da antiga ordem. O curso no qual se desenvolve a disputa e utilização da constituinte, entretanto, nunca significou parte de um balanço dos bolcheviques que seguiram não somente considerando correta a utilização das consignas democrático-radicais como demonstrando na prática que sabiam muito bem como enfrentar as ameaças de contrarrevolução quando fosse necessário.

Por tudo isso podemos dizer que todas as decisões dos bolcheviques sobre a constituinte não foram lidar com "o que se deu" e sim foram golpes habilidosos pensados contra a burguesia e seu regime que levaram à conquista do poder e a defesa do governo operário.

Lições para o Brasil: por que levantar essa consigna agora

No Brasil desde 2016 vivemos em um regime político bastante degradado pelo golpe institucional que mostrou que a própria Constituição de 1988 tutelada por militares prevê mecanismos que permitem vetos que são ataques na realidade contra o sufrágio universal, como é por exemplo o mecanismo do impeachment, que é também um mecanismo de desvio quando as massas se enfrentam com os governos para preservar o regime político. Naquele momento, quando forças da direita se levantaram para implementar um golpe institucional que permitisse levar adiante ataques mais profundos do que o PT já vinha fazendo, não havia dúvidas de que uma esquerda revolucionária deveria se enfrentar frontalmente contra o golpe institucional de maneira independente do PT, ao mesmo tempo levantar uma bandeira que buscasse enfrentar o conjunto deste regime como é a bandeira da Assembleia Constituinte Livre e Soberana.

Embora naturalmente estejamos em uma situação muito distinta da vivenciada na Revolução Russa de 1917, existe algo do método de reflexão dos bolcheviques que devemos retomar, e a polêmica com Zé Maria nos remete a isso: a necessidade de diante das ilusões democráticas das massas utilizar as consignas democrático-radicais para acelerar sua experiência e fortalecer a luta revolucionária contra o capitalismo. Por isso a luta socialista contra Bolsonaro e todo esse regime golpista precisa questionar todas as instituições autoritárias, e como parte de fazer experiência das massas contra conciliadores e esse regime, batalhar por eleger uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana (ACLS). Nessa batalha, buscaríamos eleger representantes do povo sem qualquer privilégio, que ganhem o equivalente ao salário de um trabalhador qualificado, e sejam revogáveis a qualquer momento. Dentro de uma Constituinte como essa, poderíamos batalhar ombro a ombro para opor os interesses dos grandes capitalistas com os dos trabalhadores urbanos e rurais, e setores oprimidos. Defenderíamos a dissolução de todos os demais poderes, para que não se submetesse a nenhuma figura que queira ocupar o lugar de Bolsonaro, mas também repudiando a figura cesarista da presidência, rechaçando o status do Senado como “Câmara Alta”, assim como o autoritarismo da casta judiciária. Nem é preciso dizer que a instalação pela luta de uma ACLS teria que eliminar imediatamente e de uma vez o desprezível artigo 142, dispositivo incluído pelos militares em 1988, e sempre citado por eles em suas chantagens golpistas, e aboliria todos os seus privilégios financeiros (pensões vitalícias, altos salários, etc.).

Impor pela luta essa demanda exigiria a mais ampla auto-organização das massas para enfrentar materialmente os poderes constituídos do Estado, que não aceitaria a imposição de medidas contra os lucros dos capitalistas e seus privilégios, como uma reforma agrária radical que acabe com o latifúndio, que coordene uma produção agrícola de acordo com interesses das massas e entregue as terras aos trabalhadores rurais, ou a revogação de todos os acordos de submissão com o imperialismo, como o pagamento da dívida pública. No desenvolvimento de uma Constituinte assim os socialistas batalharíamos para debater todas as medidas para a defesa das liberdades democráticas contra os poderes constituídos, assim como as medidas para colocar fim à violência policial racista como vimos no selvagem caso do assassinato de Genivaldo pela polícia rodoviária bolsonarista e para impor a efetiva separação do Estado em relação às Igrejas e à religião, garantindo os direitos democráticos das mulheres. Em uma ACLS, pelos debates de massas que suscitaria, estariam melhores as condições para colocarmos na ordem do dia a transformação da estrutura econômica do país, e que apontam no sentido da emancipação nacional frente ao imperialismo, e para a conquista de condições de vida dignas para as amplas massas, em detrimento da grande propriedade capitalista, o que exigiria o desenvolvimento da auto-organização das massas abrindo caminho a luta por um governo de trabalhadores de ruptura com o capitalismo. Essa é a dialética de como levantar a consiga: nossa estratégia é de um governo de trabalhadores em ruptura com ao capitalismo, mas partindo das fortes ilusões democráticas que as massas ainda tem, fruto de anos de um regime degradado por um golpe institucional, levantamos a necessidade de uma constituinte a partir da imposição das massas auto-organizadas, uma engrenagem no programa dos socialistas para debilitar esse regime, fazer experiência com os que querem conciliar com os golpistas, e levar as massas trabalhadoras a avançar em suas conclusões na necessidade de romper com o capitalismo.

Hoje, dentre as correntes que se reivindicam do trotskismo as consignas democrático-radicais, como a Assembleia Constituinte Livre e Soberana, sofreram todo tipo de deformações, desfigurando o papel que cumprem como parte do engrenagem do programa transicional até a ditadura do proletariado. Existem as correntes que a transformam em um fim em si mesmo, os que elaboram uma teoria da revolução democrática criando uma etapa intermediária entre a queda das ditaduras ou governos autoritários e os fins socialistas do nosso programa, ou também que se negam a dar importância às consignas democrático radicais dizendo que são "democratizantes" ou que estão "dentro do regime burguês". Em todo caso o resultado é um debilitamento da luta contra os regimes burgueses o que leva, diretamente, a se adaptar a estes mesmos regimes como por exemplo a defesa de “eleições limpas” ou até de “impeachment” com a direita, que faz o PSTU em face a um regime tão degradado como o regime golpista no Brasil - que nos faz observar que por trás de uma ausência da defesa de consignas democrático-radicais, pode se esconder uma forte tendência a adaptação ao regime tal como se apresenta. E isso não é um problema menor quando nas últimas décadas a democracia burguesa e as ilusões nela aumentaram como nunca antes.

Neste marco, as experiências históricas, tomadas suas proporções e situações específicas devem servir para não confundir os trabalhadores na utilização das consignas democrático radicais com afirmações equivocadas como "na Revolução Russa os bolcheviques não defenderam a ACLS" e sim demonstrar justamente como essa consigna foi utilizada naquele momento a serviço da luta revolucionária.


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FOOTNOTES

[1Lenin. Obras selectas. Buenos Aires: Ediciones IPS, p. 24 - tradução nossa

[2Emilio Albamonte e Matias Maiello. Estratégia Socialista e Arte Militar. Buenos Aires: Ediciones IPS, p. 250

[3Lenin. Discurso sobre a dissolução da Assembleia Constituinte na reunião do CECR. 19 de janeiro de 1918. Lisboa. Editorial Avante. p. 370
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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED

Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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