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MÚSICA | Como a arte “desnudou a vida” de Nina Simone...

“A nova arte não só desnudará a vida, mas lhe arrancará a pele”, foi a frase, dita certa vez por Leon Trotsky, que me veio a cabeça ao refletir sobre o documentário “ What Happened, Miss Simone?”

quarta-feira 8 de julho de 2015 | 00:34

Negra e pobre em pleno período de acirramento da luta pelos direitos civis da população negra norte americana nas décadas de 50 e 60, Eunice Kathleen Waymon, falou certa vez: “Não podíamos mencionar nada racial em nossa casa. Eu não lidava conscientemente com a raça”. No entanto, a questão racial pesava sobre suas costas e de sua família a cada acontecimento, ainda que mínimo: foi na tradicional igreja negra norte americana que começou a estudar piano; a partir da benevolência de uma senhora branca passou a receber aulas de piano clássico; aos 17 anos, mesmo com um conhecimento técnico raro, não foi admitida na Curtis Institute.

Talvez o germe de sua consciência racial tenha se apresentado no episódio de seu primeiro concerto, aos 12 anos, quando se recusou a tocar até que seus pais retornassem aos lugares da frente da platéia que haviam cedido a dois brancos.

Acabou estudando na Escola de Juilliard e para bancar seus estudos passou a tocar piano no Midtown Bar & Grill, na Pacif Avenue, em Atlantic City, onde seu patrão exigiu que também cantasse. A partir daí passou a ser Nina Simone para sua família não saber que agora tocava e cantava a “música do diabo”, para sustentá-los (como tantas mulheres negras o fazem, mesmo submetidas a cruéis adversidades). Mas foi um ponto fora da curva da realidade das mulheres negras, ainda hoje, e passou a ocupar um espaço cada vez maior no cenário da música.

Longe de ser um “dom natural”, uma espécie de aptidão inata justificada pelos brancos para eximir-nos do papel ativo na construção de nossos saberes e de quem somos, seu talento e genialidade requereram entrega em tantos sentidos: uma vida dedicada aos estudos e uma pele preta emocionalmente entregue aos anos 60.

Uma mulher que, a princípio, desejava ser a primeira pianista clássica negra, encontrou no jazz e no blues, expressões artísticas máximas da negritude estadunidense, o canal para identificar-se e expressar as contradições raciais de sua vida, sua época e de milhões de pessoas a sua volta, dando lugar a uma Nina intensa, visceral. Por meio das letras e melodias, do cabelo e das novas atitudes no palco, de uma espécie de dança frenética que pôde “falar” daquilo que passou a lhe fazer sentido, sobre a luta negra. O assassinato de quatro crianças negras na explosão de uma igreja em Birmingham foi o estopim. E através da proximidade com Marthin Luther King, Malcolm X e sua esposa, Lorraine Hansberry, Panteras Negras, das leituras de Karl Marx e Lenin, buscou a formação intelectual do movimento por direitos civis e deu voz ao sofrimento e ao anseio dos negros tomarem as rédeas de sua própria história. Mas, ao contrário do primeiro, dizia “NÃO SOU NÃO VIOLENTA!”.

Resistência: única resposta cabível à brutal violência proporcionada pela elite branca racista de sua época. Resistir proporcionalmente ao modo como atacavam era a saída. Obviamente, as elites brancas estavam em larga vantagem com as leis, a polícia e a ideologia vigente a seu favor. Mas Nina defendeu a necessidade de mentes feitas e corpos prontos, de invocar a ira de todos os deuses africanos demonizados pela cultura eurocêntrica, se armando e matando, se necessário, para arrancar um Estado separado para os negros. Conquistou uma má reputação perante a ordem, acarretando em dificuldades de contratações por temerem que seu lado político sobressaísse, sendo boicotada pela indústria musical.

“Toda minha vida desejei exprimir meu sentimento de prisioneira, esse silêncio atroz que transforma todos os negros em encarcerados”, que os fazem desconhecer sua ancestralidade, não orgulharem-se de seus traços identitários nem saber sua origem. Não dá pra escutar Ain’t Got No – I Got Life da mesma forma. Sentimos orgulho do nosso cabelo, nosso nariz, nossa boca. E este empoderamento nos aproxima da revolta necessária, aproxima-nos dos escravos insurretos, ofuscados pela história dos opressores.

Talvez a relação que mais escancarou as contradições da época em que vivia e a desgastou subjetivamente tenha sido seu casamento com Andrew, um policial que abandonou a carreira para tornar-se seu empresário. A relação abusiva e o entendimento inconciliável sobre a carreira e posicionamento político de Nina evidenciam o abismo entre ambos. O sentimento de posse e coisificação de sua esposa revelava-se pelo ciúmes, estupro e espancamento – uma realidade infelizmente comum a tantas mulheres -, e também na tentativa de coagi-la a não se posicionar, no monopólio administrativo e financeiro de sua carreira, na tentativa de torná-la comercializável em detrimento da dura realidade que se impunha sobre sua arte. Na prática, fazê-la desaparecer enquanto sujeito social, manter a invisibilidade de um ser humano cuja imagem não se enquadra no perfil eurocêntrico, cuja história tenta-se apagar. O encantamento inicial encerrou-se no esforço para manter as aparências, pelo bem dos negócios e da filha pequena. A expressão máxima de sua exploração (enquanto ser humano, esposa e artista) foi o episódio em que Andrew literalmente a carregou até o piano (porque o show tinha que continuar e o negócio, faturar) quando estava no limite da exaustão emocional devido a uma doença mais tarde diagnosticada como bipolaridade e depressão. Duas pessoas negras mergulhadas nas contradições e efervescências sociais de sua época...E com sentimentos e respostas opostas.

...e poderá “arrancar a nossa pele”?

“Como ser artista e não refletir sua época?” Também me questiono.

Conviver com Nina era, muitas vezes, doloroso. A pressão não vinha apenas do medo que sentia do marido, senão também das 19 pessoas que sustentava enquanto tantos caíam a sua volta, perdendo a sanidade, assassinados um a um.

Mudanças drástica de humor tornavam-a violenta de uma hora pra outra, odiando tudo e todos. As surras destruíam tudo dentro de si e o suicídio, bem como a necessidade incontrolável de sexo, pareciam uma saída.

Talvez numa esperança desesperada de fuga para a sensação de paz e liberdade a tenha conduzido à Libéria, onde se refugiou deixando pra trás marido, filha e carreira. Era o refúgio pra tudo que doía: casamento, opressão racial, cantar e piano. Seu talento tornou-se seu fardo. Toda a sensibilidade lhe arrancava pedaços; é compreensível que tenha encontrado na África um lugar familiar, aconchegante e que a isentasse de toda injustiça vivida na pele e na de tantos irmãos que até lhe pareciam uma extensão da sua própria. Mas seu conflito interno não encontrou paz, revelando-se na relação agressiva com sua filha. E o dinheiro uma hora acabou, obrigando-a retomar a carreira.

Encontrou-se perdida cantando em bares por 300 dólares à noite, morando num apartamento sujo em Paris. Amigos a ajudaram, buscando compreender o porquê dos acessos de raiva repentinos, chegando ao diagnóstico maníaco-depressiva e bipolar.

Submeteu-se ao tratamento com remédios fortíssimos que comprometiam as habilidades com o piano e anestesiavam suas emoções frente à vida. Ao menos permitiu cumprir os acordos empresariais e botar a carreira nos trilhos novamente.

Nina não morreu devido ao câncer de mama em 2003; antes, morreu em vida. E a sociedade que forjou a artista brilhante foi, em parte, a mesma que a matou, dia a dia, lentamente, através do racismo e capitulação de seus sonhos para algo inofensivo. Nos momentos mais acirrados de luta, isto era mais claro. Quando não houve mais movimento por direitos civis nem pessoas lutando, todos se foram junto com a razão para cantar determinadas músicas. Só lhe restou a solidão que, por diferentes caminhos, se faz tão familiar à mulher negra.

O que seria de Eunice Kathleen Waymon sem a conturbação de seus tempos? Com certeza não seria Nina Simone. É fato que a dor dá vazão à experiência estética e se materializa em obras como as músicas de Nina. Sentimos-nos um pouco ela, sentimos um pouco dela e do movimento por direitos civis dos negros toda vez que a escutamos. Como algo pode ser doloroso e belo ao ponto de nos arrancar suspiros e sorrisos? Como pode ser tão lindo ao ponto de doer, de cutucar como agulhadas? Eu não sei. E acredito que a experiência com o sensível não possa ser verbalizável ou diretamente transposta a formas de comunicações racionalizadas. Neste sentido, a frase de Trotsky assume um papel muito importante para se pensar a arte de hoje vislumbrando o futuro. O que Nina e tantos célebres artistas fizeram foram desnudar a vida, escancarar apesar do peso, apesar da dor, apesar de tudo, o mundo em que vivemos. A consciência é um degrau essencial da escada que podemos construir rumo ao novo. E é num novo mundo que a arte terá o poder de arrancar-nos a pele, uma metáfora até singela diante da emoção que uma obra poderá fazer-nos sentir, algo que hoje, talvez, se manifeste numa forma nem tão comum quanto desejada às nossas condições materiais e subjetivas: o arrepio. O que me motiva fazer da arte de Nina a arte comum, da militância política a transformação pra um mundo com novas relações, é a esperança de não ser a dor, mas sim, a liberdade, nossa força motriz. A força capaz de produzir obras de arte pensadas a partir de outros paradigmas, elevando-as a um novo patamar.




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