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LITERATURA | Como Machado de Assis descreveu o 15 de Novembro?

Trazemos uma breve reflexão sobre pontos da obra de Machado de Assis e alguns trechos de Esaú e Jacó, romance onde os ocorridos do 15 de Novembro são narrados.

quarta-feira 15 de novembro de 2017 | Edição do dia

Machado de Assis escreveu o Brasil várias vezes. Eventos históricos, como o 15 de Novembro e a abolição da escravidão foram temas de especial relevância para sua obra, bem como a própria escravidão brasileira, as hipocrisias do patriarcado carioca oitocentista, a formação (ou não-formação) do país enquanto estado nação, etc. Dois de seus últimos romances dão destaque para esse período no final do século, sendo Esaú e Jacó, penúltimo romance do autor carioca, uma obra que retrata justamente os embates entre distintas forças políticas no calor da passagem da monarquia para a república, enquanto o Memorial de Aires, publicado no ano de sua morte, narra os ocorridos na vida do Conselheiro Aires no transcorrer desses dois anos peças-chave para a história nacional - 1888 e 1889. Causa imenso interesse analisar os eventos da proclamação da república sob os olhos do Conselheiro Aires em Esaú e Jacó, ou do próprio Machado, que, à luz da ironia e agudeza típica, consegue organizar a matéria histórica de uma maneira particularmente inteligente.

Machado reserva alguns capítulos de seu penúltimo romance para descrever o dia 15 de novembro. Agora, exatos cento e vinte oito anos após o ocorrido, trazemos algumas passagens que jogam luz ao que de fato ocorreu nesse processo. Ideia já popularizada - mas sempre bom enfatizar - conhecer o nosso passado ajuda a pensar o presente para projetar um futuro diferente. A isso só temos a agradecer a Machado que, diga-se de passagem, representa um dos maiores intelectuais negros da história do continente. Algumas frases do romance se tornaram clássicas, como “nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele”, ou “o povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas”, para descrever a proclamação da república. Um pouco antes, no capítulo referido abaixo, Aires passa pelas ruas da capital e as lojas estão fechadas, o povo escondido, um silêncio estarrecedor para uma “revolução”.

Elas conseguem sintetizar um pouco daquilo que até hoje historiadores nacionais são incapazes de compreender - a saber, que o 15 de novembro de 1889 foi feito sem participação popular, foi ou uma “revolução de ocasião”, como é descrito ironicamente no trecho que trazemos. Foi um processo cujos detalhes e embates se assemelham aos de hoje, e que transcorreram o século XX inteiro na historiografia burguesa, onde a participação dos trabalhadores, da população negra e do povo pobre brasileiro foi sempre escanteada enquanto as disputas palacianas tomavam lugar no palco. Quase como se a história do país fosse feita tão somente pelos poderosos, no 15 de novembro pela casta militar apoiada por setores da elite e em outros momentos também pelos milicos e por setores do grande empresariado brasileiro, mas nunca com o povão. Guardadas as devidas proporções, muito semelhante com os golpes contemporâneos.

As passagens que trouxemos retrata um pouco disso tudo no fino. Machado retrata um impasse histórico tipicamente nacional, do último país a acabar com a escravidão no mundo ocidental e com uma elite afrancesada e carregada de ‘ideias fora do lugar’, para citar Schwarz, um grande intérprete machadiano, a qual vislumbra uma sociedade burguesa desenvolvida onde se firma o chão da escravidão violenta. Tudo isso sob a ótica do diplomata Aires, cuja visão elitista, mas aguda, não poderia ser diferente. Uma cena ilustrativa de como no país grandes decisões foram feitas à revelia do povo é a festa na Ilha Fiscal, onde golpistas e golpeados tomam bons drinks semanas antes do 15 de Novembro, como se nada estivesse ocorrendo. E assim se funda e refunda nossa República - com perdões dos golpeados e uma repetição farsesca da história até hoje, seja na impunidade dos torturadores, seja na benevolência petista… o que precisa mudar é o rumo do protagonismo dos de baixo, dos trabalhadores, dos negros, de todos os oprimidos que aparecem na obra de Machado frequentemente, e de tantos outros escritores negros da época e atualmente. Pois chega de rodeios e vamos ao Machado. Aqui trazemos algumas passagens que podem ser vistas na obra de domínio público digital aqui:

CAPÍTULO LX / MANHÃ DE 15

Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio Público. Chegou às sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las bater e recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma forte, que as movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa também, a que não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que bradava as suas cóleras.

Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e coisas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal coisa suspeitou, não a disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro.

Quando Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma coisa, e seguiu até o Largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma notícia clara nem completa. Na Rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito uma revolução, ouviu descrições da marcha e das pessoas, e notícias desencontradas. Voltou ao largo, onde três tílburis o disputaram; ele entrou no que lhe ficou mais à mão, e mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dois ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petrópolis, vinha descendo a serra.

Aires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi, na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da Rua dos Inválidos e levara ao Largo da Glória, por sinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.

— Talvez fosse algum implicado no barulho, sugeriu Aires.
— Também pode ser, porque ele levava o chapéu derrubado, e a princípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...
Chegavam justamente à porta de Aires; este mandou parar o veículo, pagou pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo…
— O que é que não é certo, José? É mais que certo.
— Que mataram três ministros?
— Não; há só um ferido.
— Eu ouvi que mais gente também, falaram em dez mortos...
— A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por almas, porque não és bom católico, José.

CAPÍTULO LXI / LENDO XENOFONTE

Como é que, tendo ouvido falar da morte de dois e três ministros, Aires afirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia do criado? Só se pode explicar de dois modos, — ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dois terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única verdadeira. Pouco depois passava pela Rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regímen que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.

— Temos gabinete novo, disse consigo.

Almoçou tranqüilo, lendo Xenofonte: "Considerava eu um dia quantas repúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra espécie de governo, e quantas monarquias e oligarquias são destruídas pela sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes..." Sabes a conclusão do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de governar; mas logo depois a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capítulo.

(…)

CAPÍTULO LXIV / PAZ!

(…)
Só às duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do império.

— É verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela Rua do Ouvidor, ouvi as aclamações à república. As lojas estão fechadas, os bancos também, e o pior é se se não abrem mais, se vamos cair na desordem pública; é uma calamidade.

Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição.

— Não sei, tenho medo, conselheiro.
— Não tenha medo. A baronesa já sabe o que há?
— Quando eu saí de casa, não sabia, mas agora é provável.
— Pois vá tranqüilizá-la; naturalmente está aflita.

Santos receava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o imperador, e com ele as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... Aires tirou-lhe o Terror da cabeça. As ocasiões fazem as revoluções, disse ele, sem intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para dar forma fixa à idéia. Depois lembrou a índole branda do povo. O povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de generosidade. Para provar o que dizia referiu um caso que lhe contara um velho amigo, o Marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo da Regência. O imperador fora ao Teatro de S. Pedro de Alcântara. No fim do espetáculo, o amigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da Igreja de S. Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que bradava indignado, e soube dele que o cocheiro do imperador não tirara o chapéu no momento em que este chegara à porta para entrar no coche; o homem acrescentou: "Eu sou ré..." Naquele tempo os republicanos por brevidade eram assim chamados. "Eu sou ré, mas não consinto que faltem ao respeito a este menino!”

Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou entender aquele rasgo anônimo. Ao contrário, todo ele parecia entregue ao presente, ao momento, ao comércio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de uma suspensão total de negócios, durante prazo indeterminado. Cruzava e descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou.

— Então, parece-lhe?...
— Que descanse.

Santos aceitou o conselho, mas vai muito do aceitar ao cumprir, e a aparência era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A cabeça via esboroar-se tudo. Quis despedir-se, mas fez duas ou três investidas antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava pela certeza. Conquanto tivesse visto e ouvido a república, podia ser... Em todo caso, a paz é que era necessária, e haveria paz? Aires inclinava-se a crer que sim, e novamente o convidou a descansar.

— Até logo, concluiu.
— Por que não vai lá jantar conosco?
— Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, talvez, ou amanhã. Vá, vá tranqüilizar a baronesa, e os rapazes. Os rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pô-los em ordem.
— O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite.
— Pode ser; se puder, vou. Amanhã com certeza.

Santos saiu; tinha o carro à espera, entrou e seguiu para Botafogo. Não levava a paz consigo, não a poderia dar à mulher, nem à cunhada, nem aos filhos. Quisera chegar a casa, por medo da rua, mas quisera também ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos seus. O espaço do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, enfim, não viveria ali a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via gente à porta das lojas. No Largo do Machado viu outra que ria, alguma calada, havia espanto, mas não havia propriamente susto.

(…)




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