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CPC da UNE: as formas do teatro de agitação e propaganda cepecista (PARTE 3)

Luno P.

CPC da UNE: as formas do teatro de agitação e propaganda cepecista (PARTE 3)

Luno P.

Nas linhas anteriores deste ensaio, tentei esmiuçar uma máxima de que falar sobre a história do CPC é antes de tudo falar sobre profundos processos de ruptura do teatro, influenciados principalmente pelos eventos da luta de classes no Brasil e no mundo. É inegável também dizer que essas rupturas se produziram principalmente na busca por novas formas frente aos novos conteúdos que entravam em cena - as greves, as assembleias, os piquetes, a constante ação das massas trabalhadoras e camponesas na arena das mudanças históricas no mundo -. Aqui, buscarei mostrar os caminhos desta busca e sua relação com a entrada do teatro épico de Brecht e da Revista Política de Piscator no Brasil. Para isso, tomarei as teses de Iná Camargo Costa nas obras Nem uma lágrima: teatro em perspectiva dialética e A Hora do Teatro Épico no Brasil. Obras que considero que melhor sintetizam os movimentos que constituem essa busca, fundamentais para o entendimento do desenvolvimento do CPC e seus aspectos dramatúrgicos.
PRIMEIRA PARTE: CPC da UNE: um teatro sob o signo da luta de classes (PARTE 1)
SEGUNDA PARTE: CPC da UNE: entre a cultura de combate e a conciliação de classes (PARTE 2)

Retomando Lukács e sua ideia de que, na literatura, “o verdadeiramente social é a forma, por ser ela que permite ao poeta comunicar uma experiência ao seu público” (COSTA, 2012, p.12), Costa vai buscar sintetizar as relações sobre forma e conteúdo e sua produção frente ao desenvolvimento das sociedades e seus conflitos de classes, mostrando que a obra só é entendida quando está formada, mas que também a forma se desenvolve como conteúdo, quando esse molda os caminhos dos enunciados. Esta visão encontra paralelos com as visões de Trotsky sobre os formalistas russos, quando ele afirma que “a forma verbal não é um reflexo passivo de uma ideia artística preconcebida, mas um elemento ativo que influencia a própria ideia” (TROTSKY, 1973, p. 79). Avançando em um passo, e retomando a obra Teoria do drama moderno de Peter Szondi, Costa estabelece a constatação de que “falhas técnicas em determinadas obras podem ser vistas como sismógrafos sociais” (COSTA, 2012, p. 13), ou seja, as falhas técnicas (da forma) podem servir como indicativos de instabilidade social. Sendo assim, em épocas de instabilidade social, novos enunciados de conteúdo surgem, e tendem a entrar em conflito com os enunciados formais antigos, diferente de quando esses enunciados se correspondem, onde o conteúdo evolui no interior da forma, fazendo-se possível a apropriação da obra de arte em seu conjunto. E aqui, é um direito que esses novos conteúdos encontrem as formas que lhes correspondem.

É esse conflito entre forma e conteúdo que primeiro marca o desenvolvimento da dramaturgia cepecista, em um período anterior à fundação do CPC, ainda no Teatro de Arena, com a montagem e encenação da peça Eles Não Usam Black Tie (1958). É com essa obra que melhor se expressa a crise do drama no Brasil, e que também mudou a história do teatro brasileiro colocando em cena a classe trabalhadora como protagonista. A isto, não se deve pensar apenas como uma necessidade individual de Guarnieri para representar a luta de classes, mas uma necessidade histórica que abriu o caminho para a necessidade formal do teatro épico. E quando falo de necessidade histórica, falo de um cenário de profunda agitação dos trabalhadores, que se abriu com o intenso processo de industrialização do país que tem sua principal forma com a política burguesa nacional desenvolvimentista representada com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e seu lema de “50 anos em 5”. Esta nova formação do proletariado nacional protagonizou durante toda a década de 50 profundos processos de convulsão social, como na greve dos 300 mil.

É nesse clima que o assunto de Eles Não Usam Black-Tie se insere, centrando sobre o episódio de uma família de trabalhadores metalúrgicos frente ao estourar de uma greve salarial e os conflitos do filho, Tião, que acabara de marcar seu casamento, e seu pai, Otávio, militante sindical comunista e grevista, e os desdobramentos causados pela postura de fura-greve do filho que, pensando no seu crescimento econômico para dar melhores condições de vida para sua mulher e seu filho que está para nascer, acaba traindo sua classe. Aqui, não entrarei em todos os pormenores dramatúrgicos da peça, mas me atentarei a um elemento fundamental dela: seu descompasso, tratando de novos temas nunca antes tratados da mesma forma no teatro brasileiro - a entrada em cena dos trabalhadores como protagonistas e a luta de classes - com as formas limitadas do teatro dramático. Costa explicita esse descompasso da seguinte forma:

Como sabem os estudiosos da obra de Brecht, greve não é assunto de ordem dramática, pois dificilmente os recursos oferecidos pelo diálogo dramático - o instrumento por excelência do drama - alcançam sua amplitude. Recorrendo ao repertório da velha lógica formal, poderíamos dizer que a extensão (tamanho) desse assunto é maior que o veículo (o diálogo dramático). (COSTA, 2016, p. 23)

Ou seja, a greve, a assembleia, os piquetes, todos esses elementos centrais da peça nunca são encenados de fato, restando apenas os diálogos na casa e as narrações dos fatos acontecidos fora dela. Esta contradição também se dá pelo fato de que Guarnieri, um dramaturgo estreante, tinha em suas mãos a necessidade de trazer a greve para o teatro sem as ferramentas e recursos que já vinham acontecendo no teatro europeu, como o próprio desenvolvimento do teatro épico. Brecht, por exemplo, só chegaria ao Brasil alguns meses após, em agosto de 1958 com a obra “A Alma Boa de Setsuan”, a primeira montagem séria de Brecht no Brasil, pelo teatro Maria Della Costa. Essa montagem coincidiu com a criação do Seminário de Dramaturgia do Arena, e abriu um ramo inteiro de discussões no Arena sobre o teatro épico brechtiano, assim como o teatro proletário de Piscator. Dessas discussões, saíram grandes obras que marcam a história da dramaturgia brasileira, sendo a principal delas a peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, a qual Iná Camargo define como o “mais importante exemplar do teatro épico brasileiro (COSTA, 2016, p.39). Na obra, somos apresentados a José da Silva, um, trabalhador explorado, traído, e que aceita que a causa de sua demissão é o aumento de seu salário para poder se alimentar e garantir a subsistência de sua família.

JOSE – Então o que é que adianta aumentar o meu salário?
FEIRANTE – Sei lá eu! A culpa não é minha. Não tenho nada com isso!
JOSÉ – E quem é que tem culpa?
FEIRANTE – Isso eu não sei.
JOSÉ – Mas tem que saber. Por que foi que você aumentou a laranja?
FEIRANTE – Porque aumentou o frete.
JOSÉ – Então a culpa é de quem aumentou o frete!
HOMEM DO FRETE (comendo) – Aí é que você está errado. A culpa não é minha!
JOSÉ – Mas se foi você que aumentou o frete!
HOMEM DO FRETE – Eu aumentei o frete, porque aumentou o pneu!
JOSÉ – Ah, então a culpa é de quem aumentou o pneu!
HOMEM DO PNEU (comendo) – Aí é que você está errado. Eu não tenho culpa nenhuma.
JOSÉ – Não foi você que aumentou o pneu?
HOMEM DO PNEU – Não posso dizer que não.
JOSÉ – Então a culpa é toda sua!
HOMEM DO PNEU – A culpa não é minha não. Se eu aumentei o pneu, é porque também aumentou a borracha.
FEIRANTE – Claro que a culpa é dele.
JOSÉ – Quem foi que aumentou a borracha?
FEIRANTE – Foi o teu patrão.
JOSÉ – Então a culpa é do meu patrão.
PATRÃO - A culpa não é minha não.
JOSÉ – Mas, patrãozinho, tem que ser. Pois se eu acabei de saber que o senhor aumentou a borracha.
PATRÃO – O que é que eu podia fazer?
JOSÉ – Tava tão bom o preço que tava.
PATRÃO – E o teu aumento, quem é que dava?
JOSÉ – Então a culpa é minha?
PATRÃO – Não foi você que pediu aumento? A culpa é sua, é claro que tem que ser! A culpa é toda sua que me pediu aumento primeiro! (sai o patrão).
FEIRANTE – É José da Silva, você é que tem a culpa (José começa a rir).
JOSÉ – Não, a culpa não é minha não. Eu pedi aumento porque a minha mulher mandou eu pedir.
FEIRANTE – Então a culpa é dela.
TODOS – Ééééééé...
JOSÉ – Também não é, ela mandou eu pedir, porque o nosso filhinho que nasceu ontem, estava chorando de fome (faz gesto mostrando o menino pequenininho).
FEIRANTE – Que maravilha: então a culpa é do seu filho!
JOSÉ – Que garoto safado!
FEIRANTE – Que coisa extraordinária!
JOSÉ – Mal acabou de nascer e já está desorganizando as Finanças do país (joga fora o gesto do menino). Nessa terra está tudo errado por causa do meu filho! Quando chegar em casa, vou-lhe dar uma surra que ele não vai esquecer. (BOAL, 1957, p.10,12)

Sua estrutura nos dá os primeiros passos do teatro épico no Brasil, com sua fusão junto com a tradição do teatro de revista brasileiro. Isso se expressa nos números musicais, nas cenas em formato de esquete, no tom farsesco e de sátira política, mas principalmente na constituição de um compère, que se expressa na figura do personagem José da Silva. Essa escolha de José da Silva como compère é o que permite melhor estruturar os aspectos negativos do personagem, que não cumpre um papel de protagonista, mas de espectador e vítima de todos os seus infortúnios, que costura os diferentes esquetes buscando dar unidade a encenação em cenas que, no sentido dramático, não tem relação entre si. Além de José, temos o seu colega de trabalho, Zequinha, que assume carreira política e logo trai José, o Anjo da Guarda, aqui representando o imperialismo que dá as cartas no jogo da política institucional, entre outros. A presença do imperialismo na peça também é demonstrada na cena sete, quando José da Silva descobre que o Anjo da Guarda existe, e este cobra José da Silva pelos royalties de tudo que usufrui:

JOSÉ - Se você é meu Anjo da Guarda, tem que me ajudar. Vou te botar pra trabalhar. Anjo da Guarda meu, tem que dar duro!
ANJO - Sou Anjo da Guarda, mas não o seu. E estou aqui trabalhando.
JOSÉ - Então trabalha, vá.
ANJO (estendendo a mão) - Paga.
JOSÉ - O quê? Não te comprei nada.
ANJO - Você acendeu a luz.
JOSÉ - Estou na minha casa.
ANJO - Sou o Anjo da Guarda da Light. Paga o royalty.
JOSÉ - Toma lá, mas pode ir andando porque eu não preciso de Anjo que, em vez de me dá uma mãozinha, fica me aperreando (paga e entra no banheiro, em mímica). Que é que você está esperando?
ANJO - Receber, senhor.
JOSÈ - E o dinheiro o que eu dei?
ANJO - Foi pra Light, mas o que é isso na sua mão?
JOSÉ - Pasta de dentes.
ANJO - Sou Anjo da Guarda da Phillips do Brasil! Paga e não bufa.
JOSÉ - Toma (faz mímica de descarga).
ANJO - Você vai lavar as mãos com sabonete. Não se esqueça que eu sou o Anjo da Guarda da Lever Sociedade Anônima (José paga).
JOSÉ - Agora vou tomar café, não me venha com histórias. Café é feito aqui, e na sua terra num dá café.
ANJO – Feito aqui, mas controlado pela American Cofee Company. Marcha.
JOSÉ - Claro que nessa altura não posso tomar bonde da Light, nem ônibus da Mercedes Benz, nem taxi da Ford. Vou é a pé mesmo.
ANJO - Então paga.
JOSÉ - Eu disse que vou a pé.
ANJO - A sola do seu sapato é da Goodyear (BOAL,1957, p.31)

Aqui vemos um claro paralelo com a peça cepecista Não tem imperialismo no Brasil, também de Boal, onde somos apresentados aos personagens Homem 1 (representado a alienação, que nega a presença do imperialismo), Homem 2 (que vê a presença do imperialismo no cotidiano e avisa seu colega) e Ele (alegoria do imperialismo em si, com sotaque americano, que cobra os royalties).

HOMEM 2 - Tem imperialismo, sim senhor.
HOMEM 1 - Tem nada. Isso é coisa de comunista pra fazer baderna.
ELE - Muito bom. Coiso de comunisto vermelhuda…
HOMEM 2 - De comunista nada. Se comunista quisesse baderna, fazia comício contra a desonestidade que ia todo mundo.
HOMEM 1 - É coisa de comunista, sim. Aqui não tem imperialismo coisa nenhuma.
ELE - Apoiada. Apoiada.
HOMEM 2 - Vai te fiando nisso, vai. Termina de cueca na mão, rindo sorriso Kolynos, que é americano.
HOMEM 1 - Ah, vai andar, vai.
ELE - Vai andar, comunisto. (Homem 2 sai.)
HOMEM 1 - (Tira um cigarro). Que coisa. Falando de imperialismo. Dia inteiro falando de imperialismo. Que chatice!
ELE - Estar um absurda. Absurda filho da mãe. Paga.
HOMEM 1 - Paga o quê?
ELE - O cigarrinha.
HOMEM 1 - Ah, o senhor é o seu sou Souza Cruz?
ELE - Souza Cruz um banana. Seu Souza Cruz agora ser do British American Tobacco Company. Paga os dividendos. (BOAL apud PEIXOTO,1989, p.26)

Diferente de José da Silva, que se irrita frente ao aperreamento das cobranças do Anjo da Guarda imperialista, Homem 1 agradece pelas cobranças, vendo a presença dos americanos como ponto positivo pelo fato de não sermos mais índios, enquanto continua negando a presença do imperialismo: “Tá certo. Tá certo. Se é americano, tem que pagar mesmo, porque vocês ajudam a gente às pampas. Sem americano, tudo aqui ainda era índio.” (BOAL apud PEIXOTO,1989, p.27). Essa peça fez parte do mural - colagem de cenas curtas - intitulado Miséria ao Alcance de Todos e, junto de O Petróleo Ficou Nosso, de Armando Costa e que fazia parte do mural Imperialismo e Petróleo, constitui-se como as peças de agitação imediata do CPC, feitas na rua ou em cima de caminhão, usadas para fixar determinados conceitos, como o conceito de imperialismo.

Voltando para Revolução na América do Sul, vemos, como afirma Iná Camargo, nos são apresentados também os aspectos da contrarrevolução brasileira, pavimentado pela política de conciliação de classes do PCB:

começando pelo movimento fundamental de cooptação do inconsistente grupo autoproclamado revolucionário (sem descuidar sequer da sua composição promíscua: de operários especializados na repetição de clichês “revolucionários” a “ playboys” que não podem participar de uma “ação revolucionária” porque tem festas e outros compromissos de sociedade a que não podem faltar), e culminando com a objetiva aliança que, estabelecida nos marcos da política institucional, é amplamente patrocinada pelo imperialismo onipresente - e que tem como único objetivo manter uma situação que nem sequer permite aos trabalhadores o direito à vida (COSTA, 2016, p.71)

É lançando mão da sátira e da caricatura explícita para revelar os mecanismos da contrarrevolução brasileira que Boal dá continuidade aos avanços iniciados por Guarnieri em Eles Não Usam Black-Tie. Se Guarnieri viria a introduzir a luta de classes - a greve - e os trabalhadores como protagonistas em cena, Boal deu conta de tirar uma fotografia do desastre que se aproximava e era pavimentado pelas forças de direção das massas operárias e camponesas no país. Além disso, nos apresenta também uma fusão de teses marxistas com o teatro brasileiro, como a tese do Salário, Preço e Lucro de Marx. Mas o fator primordial para pensar a peça de Boal é que ela carrega em si também outra contradição. Se em Eles não usam Black-Tie havia um descompasso entre forma, Revolução na América do Sul carregava a contradição de produzir um espetáculo de teatro épico fora das condições em que ele fazia sentido (NEVES apud COSTA, 2016, p. 59), ou seja, uma peça de texto popular que só atingia as classes médias devido às limitações impostas pela própria estrutura de apresentação, um pequeno teatro em Copacabana. Com isso, estabelecendo a entrada do teatro épico na dramaturgia brasileira, e escancarando a contradição de para onde e para quem o teatro era feito, a Revolução na América do Sul assentou parte do caminho para um novo capítulo, o que viria a ser a peça-síntese, mais propriamente peça-modelo, do CPC da UNE, A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, de Vianinha. Esta foi definitiva para a construção do CPC enquanto um verdadeiro departamento de teatro de agitação e propaganda, fruto direto de suas referências no teatro político de Piscator.

No artigo O Teatro Proletário, Piscator define como uma das tarefas ao novo teatro a seguinte questão:

[...] exercer uma ação de propaganda e educação sobre as massas que são politicamente hesitantes ou indiferentes, ou que ainda não compreenderam que em um Estado Proletário a arte burguesa e a maneira burguesa de ‘desfrutar a arte’ não poderão ser conservadas (PISCATOR, 2015, p.151)

Essa ideia é centro das experiências de agitprop e se estabelece como uma das ideias propulsoras para a dramaturgia de Vianinha, a qual o mesmo define, no artigo O artista diante da realidade, desta forma:

Quero fazer um teatro que pretende enriquecer o instrumento do homem, com que ele enfrenta a realidade, permitindo-lhe uma intervenção direta no seio mesmo das próprias condições que originam sua trágica existência — necessariamente trágica pelas condições, não porque suas vontades formam condições, porque as condições formam vontades. Um teatro que distinga a realidade da representação e dos valores que o homem dela tira para a modificação destes mesmos valores, mais aptos para enfrentar as condições que a originaram. (VIANNA FILHO, 1983, p.73)

Aqui, cabe um pequeno parêntesis para a definição do que seria esse "teatro de agitprop". Iná Camargo, Douglas Estevam e Rafael Villas Bôas, com a obra Agitprop: cultura política, são crucias para entender o desenvolvimento desse teatro e suas experiências históricas, assim como suas aproximações com as teorias Lenin e o Proletkult de Anatoli Lunatchárski, mas a definição de Julián Boal é a que mais me interessa para a análise do teatro cepecista: mais do que um estilo, propriamente dito, o teatro de agitação e propaganda é uma denominação genérica que engloba todas as formas de espetáculo que visam preparar ou manter um espírito de agitação revolucionária nos seus espectadores (BOAL, Julián, 200. p. 81). Ainda que impreciso, de meu ponto de vista, pois para além da agitação revolucionária o que é mais forte no agitprop é a defesa de determinadas ideias, esta definição permite englobar as mais diversas experiências de agitação e propaganda no teatro, dos trens de agitprop da Rússia soviética, ao CPC da UNE.

Essas ideias expressas por Vianinha, sob a influência de Piscator, se manifestam dramaturgicamente em A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar, onde a estrutura interna da peça tem todo seu sentido de existência, fruto do encontro destes jovens militantes do Teatro de Arena com o ISEB, em didaticamente colocar no centro da encenação, da maneira mais didática possível, o conceito marxista de mais-valia. Para isso, somos apresentados ao grupo de personagens Desgraçados (D1, D2, D3 e D4) e Capitalistas (C1, C2 e C3). Entre trocadilhos, é engraçado ver que justamente o personagem nomeado como D4 tem como uma das principais características a sua postura questionadora. É interessante notar já um recurso do teatro épico brechtiano, com personagens que abandonam a construção psicológica do teatro dramático, onde os personagens são movidos por suas questões e interesses individuais. Em A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, os personagens são inseridos dentro da estrutura de classes, e suas motivações partem disso. Eles não têm nome, são conhecidos apenas por sua localização na produção capitalista, com os Desgraçados sendo a representação alegórica dos trabalhadores, ainda que carreguem em si características próprias. Na peça, D4 não aceita sua condição de explorado e parte num caminho de investigação para entender os mecanismos da sua exploração. Neste caminho, ele se defronta com a constatação de que a mais-valia absoluta é o “prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador teria produzido apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho e a apropriação deste mais-trabalho pelo capital” (MARX apud COSTA, 2016, p. 83).

D4: “O lucro existe porque as mercadorias são vendidas pelos seus valores. Isto parece um paradoxo e contrário à observação de todos os dias. Parece também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol, e que a água seja formada por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela aparência enganadora das coisas. Karlão!”. (VIANNA FILHO, 1981, p. 265)

Seguindo os contornos brechtianos, Vianinha também vai pensar, desde a dramaturgia, na cenografia da peça como mais um elemento de distanciamento:

(Enquanto cantam, no outro canto, a moça que saiu da máquina se despede dos capitalistas e sai. Eles viram o tapume – Agora ele representa uma janela de um palacete. Somem atrás do tapume. Aparecerão de short, como estavam, mais cartola, gravata, óculos escuros. Estes apetrechos são tirados do baú, à vista do público. O tapume serve de biombo também) (VIANNA FILHO, 1981, p.230)

Também temos outra assimilação da herança do teatro de revista brasileiro, o monsieur du parterre, um espectador-ator que participava das encenações com opiniões, questionamentos, discussões e reclamações (VILLARES, 2014, p. 60). Esse espectador-ator se apresenta na peça de Vianinha como o personagem Sujeito, que quebra a quarta parede para conversar com o público:

Sujeito – Com licença. Como a peça, escrita por um principiante, tem explicação que não acaba nunca e muito pouco riso, eu fui encarregado pela companhia de fazer alguma graça aos senhores para levantar o ânimo do público. (Dá três pulinhos com a cara mais séria do mundo) Muito obrigado. (VIANNA FILHO, 1981, p.260)

Esse recurso de distanciamento também será usado em outros momentos na peça, com o personagem Indivíduo, que entra na peça errada, e nas falas de D3, que reclama da peça, dizendo que nem tem tempo para trocar de roupa direito.

O fato é que essas três obras são parte de um longo período de formulação, de busca e pesquisa, do que daria as bases para a criação dramatúrgica no CPC, aproximando a herança do teatro brasileiro com a sátira do teatro de revista, com a revista política de Piscator e o teatro épico de Brecht. Estes recursos, assim como os temas, serão frequentemente base para as outras peças do repertório do CPC, como já mostrado aqui com o desenrolar de cenas que mostram a presença do imperialismo na vida cotidiana apresentado em Revolução na América do Sul e em Não Tem Imperialismo no Brasil, também de Boal. A postura questionadora de D4 encontra paralelos em Formiguinho, de A estória do formiguinho ou deus ajuda os bão, de Arnaldo Jabor. Nela, somos apresentados à saga de Formiguinho que, ao querer construir uma porta para proteger seu barraco, é impedido por falta de uma licença e, em busca da licença, atravessa o país até chegar aos Estados Unidos. Nessa travessia, Formiguinho vai ouvindo as mais ridículas explicações sobre a miséria do país, mas também vai entendendo os mecanismos de exploração contra os trabalhadores: “Descobri que todo mundo tá é explorando a gente. Ninguém quer nada com a gente” (JABOR apud PEIXOTO,1989, p.97). Esta peça é sem dúvidas um dos maiores êxitos do CPC, conseguindo criar um texto ágil e divertido, regado de toda a comicidade do teatro épico e do humor inteligente, marca do CPC para criar um quadro que explicita não só a exploração e o imperialismo, mas também os problemas mais sensíveis causados pelo êxodo rural advindo da rápida industrialização do país.

Com maior afinação e mais maturidade dramatúrgica, somos apresentados também a duas fortes obras do CPC: Brasil - Versão Brasileira, de Vianinha, escrita em 1962, e A Vez da Recusa, de Carlos Estevam Martins. A Vez da Recusa traz à tona um combate a militância estudantil, “na medida em que desmascara a ingenuidade…ou a irresponsabilidade de um grupo de dirigentes isolados da massa que usa a mentira como arma de luta” (PEIXOTO, 1989, p.21), ainda assim, apesar da alternação entre cenas mais íntimas, onde prevalece um desenvolvimento psicológico (PEIXOTO,1989, p.20), presentes em ambas as obras, é em Brasil - Versão Brasileira, onde vemos se consolidar mais claramente a postura dramatúrgica assumida por Vianinha em A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar (COSTA, 2016, p.90), aqui trazendo novamente a perspectiva do teatro épico de Piscator e sua assimilação com o teatro de revista brasileiro, na utilização de slides que dão o tom da encenação e trazem para a cena símbolos que marcam a presença do imperialismo no país:

SLIDE 6 - O símbolo da Esso.
7 - O símbolo da Petrobrás.
8 - O símbolo da Esso se superpõe ao símbolo da Petrobrás.
9 - Juscelino Kubitschek e Foster Dulles rindo.
10 - Só Juscelino rindo.
11 - Só Foster Dulles rindo.
12 - Augusto Frederico Schimidt rindo.
13. Horácio Láfer rindo.
14. Carlos Lacerda rindo.
15. Assis Chateaubriand rindo.
16. Eisenhower rindo.
17. Kennedy rindo. (VIANNA FILHO apud PEIXOTO, 1989, p. 252, 253)

Todos esses recursos estão a serviço da narrativa, que gira em torno da postura de Vidigal, empresário nacionalista que quer votar pela suspensão do contrato com a empresa responsável pela construção da Refinaria Duque de Caxias, a Kellog. Num primeiro ato, temos uma reunião entre Vidigal, o presidente da república, Mr. Lincoln Sanders, representando a Esso no Brasil, e Prudente de Sotto, presidente do Banco do Brasil. Esses últimos três pressionam Vidigal para votar contra a suspensão do contrato frente aos atrasos da empresa americana. Tudo isso acontece em meio aos preparativos de uma greve salarial na empresa de Vidigal, protagonizadas principalmente por Diógenes, Claudionor e Espártaco, personagens representando diferentes correntes de atuação no movimento sindical brasileiro da época: a ortodoxa e ultraesquerdista, a católica reformista e a jovem renovada disposta a dialogar com os católicos. É inegável essa novidade dentro da dramaturgia brasileira, colocando não só a luta de classes, mas a assembleia no centro da ação dramática, avançando inclusive sobre as contradições apresentadas antes em Eles Não Usam Black Tie. Mas o mais interessante é a clareza de influência da linha partidária de aliança com a burguesia nacionalista que levava à frente o PCB, já que Vidigal tem todo o seu sentido de defesa da Petrobrás em sua ideologia nacionalista, o que entra em contradição quando sua posição de classe é ameaçada na peça, o que o faz votar contra a suspensão. Ainda assim, Vidigal rompe com o governo frente à greve e passa a apoiar os trabalhadores, um verdadeiro wishful thinking sobre a postura do empresariado brasileiro, a qual o PCB, e Vianinha também, viam como possíveis aliados.

Como último ato deste capítulo, teremos também os Autos cepecistas. Estas obras rápidas eram estruturadas como comícios dramáticos, peças que respondiam de maneira imediata a fatos da realidade. Um dos principais Auto cepecista é o Auto dos 99%, encenado durante a UNE Volante de 1963 e em meio aos grandes debates da Reforma Universitária. O texto percorre a história da formação do Brasil, desde seu descobrimento, as relações de exploração dos portugueses contra os índios, dos brancos contra os negros e, atravessar de pulos históricos, traçar uma crítica aberta à universidade de classes e sua desigualdade, concentrando apenas um terço da população, os filhos da burguesia e da classe média em sua maioria. Em tons de alta comicidade, o que sobrou foi apenas o texto da obra, que nada mais é do que apenas um esboço, devido as próprias características dos autos cepecistas, que exigiam uma ampla flexibilidade para mudanças dramatúrgicas frente aos fatos.

Do CPC, o importante de entender é que essas novas formas e estruturas nascem a serviço da necessidade de tomar partido frente à realidade e de usar a arte como uma arma política para a revolução, o que é fundamental para entender o CPC não como um fruto do acaso, mas de uma posição frente à luta de classes: a defesa de um teatro lado a lado das massas operárias e camponesas ou de um teatro comercial a serviço da burguesia. Na próxima (e última) parte deste ensaio, adentraremos mais no fim do CPC pelas mãos da ditadura, sua influência na arte brasileira e a experiência dos operários de Santo André.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Revolução na América do Sul. [S. l.], 1 nov. 2016. Disponível em: http://www.teatroparatodosufsj.com.br/download/boal-revolucao-na-america-do-sul/. Acesso em: 20 out. 2022.

COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2016.


. Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Expressão Popular: Nankin Editorial, 2012.

COSTA, I. C; ESTEVAM, D; BO S, R. V.(Orgs.). AGITPROP: cultura política. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

MACIEL, Luiz Carlos. Situação do teatro brasileiro. In: Revista Civilização Brasileira, ano I, no 8, julho de 1966.

MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Tudo é história, 85).

MATOS, Daniel; URBANO, Edison. O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil. Esquerda Diário, [S. l.], p. 1, 27 mar. 2022. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/O-processo-revolucionario-que-culmina-no-golpe-de-64-e-as-bases-para-a-construcao-de-um-partido. Acesso em: 20 out. 2022.

MOTA, Danilo Henrique Faria. O Nacional-Popular e a Dramaturgia de Vianinha no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). 2018. 150f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018.

PISCATOR, Erwin. Teatro Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968

SOUSA, Alexandre Ricardo Lobo de. O teatro no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes : o povo, a nação, o imperialismo e a revolução (1961-1964). Orientador: Cesar Augusto Barcellos Guazzelli. 2001. Dissertação (Mestrado em história) - Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, [S. l.], 2001. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/1734. Acesso em: 18 out. 2022.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1959]. Tradução: Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

TEATRO de Arena. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399339/teatro-de-arena. Acesso em: 23 de outubro de 2022. Verbete da Enciclopédia.ISBN: 978-85-7979-060-7

TROTSKY, Leon. “A escola poética formalista e o marxismo”. In: TOLEDO, Dionísio (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1973.

VIANNA FILHO, Oduvaldo. O artista diante da realidade. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha: teatro, televisão, política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 73

ZDHANOV, Andrei. Soviet Literature: - The Richest in Ideas, the Most Advanced Literature. Disponível em: https://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/zdhanov.htm. Acesso em: 19 out. 2022.


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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