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Polêmica UFABC | Até onde vai a subordinação do Movimento Correnteza à reitoria e às burocracias?

As recentes eleições para a Reitoria na UFABC demonstraram de maneira categórica a falta de independência política do Movimento Correnteza em relação às burocracias acadêmicas e à Reitoria. Eles não se limitaram a declarar voto na chapa da continuidade, como se incorporaram à campanha eleitoral e embarcaram na institucionalidade da universidade assumindo o programa da Reitoria, e ainda utilizando sua localização no DCE, há dois anos sem eleições, para fortalecer essa perspectiva conciliadora no movimento estudantil. Assim, toda verborragia de “poder popular” e de “independência de classe” da Correnteza vai sendo levado por água abaixo.

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

Jenifer TristanEstudante da UFABC

sexta-feira 25 de fevereiro de 2022 | Edição do dia

Imagem: Sind. bancários do ABC

Entre os dias 21 e 23/02 ocorreram as eleições para a Reitoria da UFABC. Esse processo levantou diversos debates na comunidade acadêmica sobre os projetos de universidade em disputa após dois anos do ensino remoto e todas as transformações que isso provocou na educação como um todo. Também entraram em debate temas de como realizar o retorno presencial com segurança, os impactos nos novos cortes no orçamento das universidades federais, os problemas de permanência estudantil, as dificuldades do EaD, a precarização do trabalho, além do risco à autonomia universitária com os interventores de Bolsonaro.

Esses são temas fundamentais para a comunidade universitária e precisam ser tratados pelo movimento estudantil de maneira profunda, o que permitiria elaborar um programa capaz de se enfrentar com Bolsonaro e Mourão através da luta de classes, partindo de confiar em nossas próprias forças e na organização ao lado da classe trabalhadora e do povo pobre. No entanto, a Reitoria com a ajuda do Movimento Correnteza, buscou tratar destes temas nos limites da institucionalidade, com acordos de gabinete com os governos, algo muito distante de sequer tocar no caráter de classe da universidade, que exclui milhões pelo filtro social do vestibular e que perpetua o trabalho terceirizado dentro das universidades e mantém o conhecimento produzido sob as rédeas da apropriação privada.

Neste artigo, queremos debater com o Movimento Correnteza e sua profunda adaptação às reitorias, burocracias políticas, sindicais e sua atuação dentro do próprio movimento estudantil, que afasta cada vez mais a possibilidade de assumir de fato um papel independente e progressista enquanto Oposição de Esquerda, para retomar a UNE para a mão dos estudantes e em cada local de estudo fortalecer uma perspectiva de auto-organização dos estudantes com um programa anticapitalista que permita encadear as lutas dos estudantes com os trabalhadores por uma nova sociedade.

As eleições para reitoria da UFABC como a ponta do iceberg

Nas eleições para a reitoria, o movimento Correnteza, impulsionado pela Unidade Popular pelo Socialismo (UP) e atual gestão do Diretório Central dos Estudantes (DCE), declarou publicamente seu apoio a Chapa 1 e desde então não mediu esforços para ampliar a influência da reitoria dentro do movimento estudantil, assumindo para si o programa da reitoria e seu legado na administração da universidade como um modelo positivo.

Foram diversos vídeos apoiando a Chapa 1, da ex-presidente de 2018, Sara Lorena, da ex-presidente de 2019, Isis Mustafá e da atual presidente Laura Passarela. Algo que não deveria surpreender ninguém, uma vez que há anos essa organização já convidava a Reitoria para os Congressos dos Estudantes, assembleias do movimento estudantil e compartilhava fotos de “lutas em conjunto”, como parte de sua concepção de uma luta comum dos estudantes com as reitorias contra o negacionismo e obscurantismo de Bolsonaro. Mas será que os interesses da burocracia universitária e do movimento estudantil convergem dessa forma?

Será que os interesses dos estudantes, dos trabalhadores da universidade, se aliam com os de uma burocracia universitária que naturaliza os cortes orçamentários implementados historicamente e começa por atacar as políticas de permanência dos estudantes na universidade? Que faz demagogia com os trabalhadores terceirizados mas segue mantendo o trabalho precário dentro da universidade? Como se unir a uma Reitoria que fala em nome da igualdade e homenageia os terceirizados, aceitando toda a forma de opressão como o caso que deu início a luta pelascotas trans na UFABC? Seria possível se aliar às reitorias contra os interventores? Na nossa opinião, não. O movimento estudantil precisa ter sua independência política e organizativa das burocracias acadêmicas e da estrutura de poder que mantém a universidade de classe.

Nós da Faísca publicamos uma Carta de Contribuição ao Debate de Projeto de Universidade buscando demonstrar quais são os problemas estruturais da crise do ensino universitário no Brasil hoje e, nesse marco, quais as tarefas do movimento estudantil e o potencial da aliança deste com a classe trabalhadora de dentro e de fora da universidade para poder responder a altura esses ataques. A partir deste debate, chamamos o movimento estudantil a batalhar pela sua independência das reitorias e governos com um voto nulo, para que se expresse uma posição contra essa estrutura de poder antidemocrática e por uma universidade à serviço da classe trabalhadora e da maioria da população.

Frente Ampla com as Reitorias ou auto-organização dos estudantes com os trabalhadores?

O movimento Correnteza na UFABC busca se apresentar como uma ala radical, de oposição e a educação pública. Porém, por trás da fina camada de tintas radicais se assenta uma política que não vai além do reformismo, que opera na lógica da conciliação com setores da própria burguesia sob uma estratégia populista que segue subordinada à reivindicação do “legado” contrarrevolucionário do stalinismo pela UP, partido que impulsiona essa agrupação nas universidades.

Atrás do “poder popular” tão evocado pela UP está a diluição da classe trabalhadora como sujeito revolucionário, deixando em aberto a possibilidade de apoiar, como sempre fazem, os governos “progressistas” de conciliação de classe, e as frações da burguesia por trás deles, sejam eles com maior ou menor clamor popular. No caso da universidade, essa lógica leva a depositar ilusões em uma "unidade" com as burocracias universitárias que são correias de transmissão dos ataques em vez de construir desde as bases uma unidade entre os estudantes e os trabalhadores de dentro e fora da universidade, para levantar uma força que aí sim possa responder de fato à raiz dos ataques do governo.

Portanto, o programa do Correnteza para a “Gestão 2019: Todas as Vozes: Por um DCE de luta, em defesa da da universidade pública e gratuita!”, ao não questionar o capital privado que opera dentro da universidade pública, ao não questionar a lógica capitalista de produção do conhecimento a serviço de interesses privados, deixa no ar também como mesmo esse programa de aspirações vagas de defesa da educação pública se aplicaria, além do fato, de não se diferenciar em nada do projeto petista de educação.

Apesar de serem parte da Oposição de Esquerda dentro da UNE, a prática corrente do Correnteza tem avançado cada vez mais rápido para mais do que ser conivente, para encobrir a burocracia da UJS (majoritária na UNE e que tira foto com golpistas como Rodrigo Maia) para conseguir dividir as cadeiras com ela. Foi esse movimento em direção a uma convivência cada vez mais pacífica com a UJS que centrou a atuação da UP no último Congresso da UNE em 2021, onde sequer houve eleição de delegados pelos estudantes nas universidades, tampouco houve qualquer esforço de promover o debate político com o conjunto dos estudantes, que deveriam ser, por sua vez, os protagonistas desse processo.

O Congresso da UNE, organizado por acordos de cúpula das burocracias do movimento estudantil, não serviu para preparar nenhuma luta, mesmo acontecendo em meio às ferozes lutas dos povos indígenas contra o marco temporal. Serviu mais para redividir cargos entre a majoritária e a oposição, mostrando mais uma vez sua prioridade em cargos e títulos e não na organização dos estudantes pela base e na luta de classes.

Essa postura nacional se tornou visível quando a Correnteza não atendeu ao chamado de batalharmos juntos pela unidade da classe trabalhadora contra as direções burocráticas dos sindicatos, DCEs e CAs, que não queriam ouvir suas bases e colocar sua estrutura a serviço de que os seus representados decidissem. Com isso, a Correnteza votando junto com a União Juventude Socialista (UJS), a majoritária da UNE, para impedir qualquer questionamento às burocracias sindicais e estudantis que mantiveram uma trégua com o governo Bolsonaro, que deixou milhares de mortos pela pandemia e milhões de pessoas em situação de fome.

Essa adaptação da Correnteza à “autonomia” de cada entidade escolher se convocava ou não a classe trabalhadora a lutar, sem batalhar para que se organizassem assembleias com direito a voz e voto e permitir com que nos apresentemos como uma força social organizada, acabou por renunciar à luta pela unidade da classe trabalhadora, que só seria possível se enfrentando com as burocracias do PT e do PCdoB que fazem questão de separar as nossas lutas.

Mas essa adaptação ganhou espaço não somente na organização da nossa luta, mas também no programa que o DCE junto com outros setores da esquerda passaram a levantar: o Impeachment de Bolsonaro. Uma política que na nossa opinião, não é apenas desastrosa por clamar pela entrada de um general como Mourão na presidência como um “mal menor”, mas também pelo papel de desvio da raiva e indignação que sentimos pelas mais de 600 mil mortes de COVID e o aumento da precarização e da fome, uma vez que se colocaria na mão do Congresso Nacional, o mesmo que aprovou, contra nós, todas as reformas como a trabalhista e da previdência, o destino do país.

Ao ver a esquerda espremida numa foto com Joice Hasselmann, Kim Kataguiri e outros partidos burgueses, inevitavelmente fica exposto do que está se abrindo mão: das nossas reivindicações históricas como a defesa do aumento dos nossos salários de acordo com a inflação, o fim do vestibular, o não pagamento da dívida pública e um combate feroz contra a polícia, em nome dessa “unidade contra o fascismo” com aqueles setores que não titubeiam em nos atacar.

Essa experiência da UFABC com a Correnteza também teve outras similaridades com o papel que esta corrente cumpriu em outras universidades, como na UNIFESP onde convocou “lives” junto com as burocracias universitárias e as reitorias para constituir “um campo contra Bolsonaro” (algo que a Correnteza já fazia naturalmente), o que silenciava a grande massa de estudantes que constrói a universidade, e que poderia ser a fonte de energia que poderia incendiar a classe trabalhadora, de ser parte ativa desse processo político. Essa experiência da UP na UFABC também permitiu que, sem oposição alguma, esta colocasse a “sua alternativa” para as manifestações, que não foi outra coisa, senão a adaptação ao petismo, ao caráter meramente eleitoral e inofensivo que deram aos atos de rua, com datas espaçadas, sem um plano de lutas e fazendo questão de manter separadas as iniciativas no movimento operário das do movimento estudantil.

O atalho de se ligar aos dirigentes sindicais e estudantis mais adaptados aos calendários eleitorais, em vez de batalhar pela unidade desde as bases de diferentes categorias, de diferentes regiões e entre estudantes e trabalhadores levou a este beco sem saída, onde os atos começaram a refluir e se reforçou o caminho eleitoral como a “única forma de enfrentar Bolsonaro”, ainda que para além das urnas, o bolsonarismo como fenômeno social não irá desaparecer.

Em duas ocasiões esses dois horizontes se chocaram: na greve da GM em São Caetano do Sul em 2021 e na luta por justiça a Moise. Em ambos os casos, o DCE estava concentrados nas eleições institucionais em detrimento de fortalecer essas lutas que aconteciam fora da universidade. No primeiro caso, não participaram - sequer com uma foto de apoio - das ações de apoio à greve da fábrica da GM no ABC paulista por estarem ocupados com as eleições dos Centros Acadêmicos, com o argumento de que eleger bons representantes seria uma forma de evitar uma desestruturação caso houvesse um interventor bolsonarista, um caminho oposto a de colocar suas energias para organizar os estudantes de forma independente e combativa, buscando se aliar com os trabalhadores dentro e fora da universidade para se enfrentar com os ataques de Bolsonaro. E mais recentemente, frente ao brutal assassinato de Moïse que se tornou um símbolo trágico da cruel reforma trabalhista, sequer um cartaz de convocação das manifestações foi feito, enquanto os chamados às eleições da reitoria estavam a todo vapor.

Entidades estudantis: militantes e independentes das reitorias e governos ou centros de administração institucional?

“A dominação da mentalidade e formação dos jovens é uma das formas mais antigas de manutenção do poder”. Márcio Moreira Alves, jornal da FEUB, 1968.

O papel das entidades estudantis é um grande tema hoje frente às profundas transformações que o ensino remoto gerou. Para que servem? Como funcionam? Qual a sua história? Qual a relação entre as entidades nacionais e as representações em cada universidade, escola ou instituto?

As entidades estudantis são as ferramentas históricas de organização que serviram para aglutinar os estudantes em momentos das lutas, assim como em manter uma tradição do movimento estudantil em momentos de refluxo. Na luta contra a ditadura militar de 1964, as entidades cumpriram papéis fundamentais e foi nesse período que a UNE conquistou sua maior influência na sociedade ao apresentar um programa de questionamento ao caráter de classe elitista das universidades.

Para se ter uma breve ideia, assim se inicia o documento da UNE, redigido para o seu 30º Congresso, que teve como resultado a prisão de todos os delegados presentes: “Temos uma longa luta pela frente e só agora o movimento estudantil começa a se libertar de fato dos seus vícios de origem, da ideologia das classes dominantes que o alimentou. Antes de abril, o movimento estudantil esteve preso a uma das facções dominantes que disputava o poder. Seguindo as correntes reformistas, a UNE depositava suas esperanças de transformação social do País nas mãos da burguesia nacional progressista. Todas as grandes mobilizações dos estudantes foram canalizadas para o apoio a tais setores progressistas. Por mais violentas que fossem as palavras dos seus dirigentes, o movimento estudantil, na prática, deu mais importância aos contatos de cúpula do que à aproximação direta com as áreas populares”.

Esse papel hoje em dia poderia ter significado uma enorme fonte de energia para, em cada universidade, fortalecer a auto-organização dos estudantes, podendo em cada curso organizar assembleias e eleger representantes, para que possamos coordenar nacionalmente as nossas lutas com um programa anticapitalista que permita fortalecer a luta por uma sociedade sem exploração e opressão.

Na contramão desse caminho e dessas batalhas, a Correnteza na UFABC segue na gestão do DCE sem convocar novas eleições há dois anos e vem utilizando essa localização para se apresentar como “a voz oficial do movimento estudantil” constantemente misturando o papel da entidade com a suas próprias posições, institucionalizando o seu coletivo de mulheres, Olga Benário. Eles se escondem atrás do jargão “O DCE somos todos nós estudantes” e dizem que são democráticos porque incorporam todos que ingressam na universidade, mas a verdade é que incorporam em base ao programa da chapa da Correnteza, que conflui com reitorias e com as burocracias dos sindicatos.

Reduzir as entidades estudantis a meros conselheiros administrativos da reitoria, servir de conciliador dos interesses dos estudantes com a burocracia acadêmica ou transformar as entidades à serviço da sua própria construção é um papel lamentável que não apenas esconde a história da luta de centenas de militantes que deram suas vidas no combate à ditadura, como rebaixa nossas aspirações e o necessário trabalho de estratégia que precisa ser articulado para que tenhamos força organizada capaz de lutar para que sejam os capitalistas a pagarem pela crise.

Por isso que exigimos novas eleições para DCE já! Para que possamos abrir um verdadeiro debate na universidade sobre qual programa é necessário o movimento estudantil levantar, sobre qual estratégia e com quais aliados contamos de fato para esse projeto, onde os estudantes sejam protagonistas desses debates e da construção das nossas entidades.

Nós da Faísca Revolucionária queremos batalhar por uma entidade militante com uma direção proporcional conforme os votos, onde os estudantes possam fazer experiência com as diferentes propostas de cada organização que se propõem a estar à frente do movimento estudantil. Batalhar para construir diálogo efetivo com os estudantes, assembleias deliberativas com a base dos cursos, fortalecendo uma aliança entre os estudantes, trabalhadores e professores para decidir sobre os rumos da nossa universidade. Esse é o primeiro passo para poder conformar uma força capaz de construir um projeto nacional para retomar a UNE de volta para mão dos estudantes e colocá-la a serviço da luta de classes, contra o capitalismo e a serviço de abrir espaço para um novo mundo.




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