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52 ANOS DE STONEWALL | As sexualidades LGBT em meio ao capitalismo: entre o desejo, a solidão e a precarização

Em meio a pandemia, frente às altas taxas de desemprego e informalidade e os constantes ataques do governo Bolsonaro e Mourão, assim como dos governadores e do conjunto do regime golpista, vemos a juventude LGBTQ+ se enfrentando com a repressão sexual e o controle dos corpos, que se escancara ainda mais no confinamento sob os olhares vigilantes da família. Diferente das diversas propagandas capitalistas que enchem as televisões e redes neste dia internacional do orgulho, narrando quase sempre um mundo harmônico para nossas sexualidades, com empresas cada vez mais “inclusivas”, hoje vivemos a realidade de uma sexualidade cada vez mais mercantilizada e precarizada. É preciso retomar a radicalidade de 68 para lutar, com a força da classe trabalhadora, pelo direito aos nossos corpos, pela livre expressão de nossas sexualidades e identidade de gênero, e por um mundo livre de opressão e exploração.

Luno P.Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS

segunda-feira 28 de junho de 2021 | Edição do dia

Entre o desejo e a precarização

Com a pandemia, se aprofunda e se revela ainda mais uma pulsante contradição entre uma aparente maior liberdade sexual e uma juventude com sua sexualidade cada vez mais precarizada. São milhões de jovens que vivem no desemprego e na informalidade, equilibrando seu futuro e os lucros de gigantes como Rappi e Ifood, em duas rodas de bicicleta e 12 horas de trabalho por dia. No meio disso, um click e logo chega a comida, um click e logo se tem acesso a indústria do sexo, junto com o tráfico ilegal de pessoas para a exploração laboral e sexual. É o gozo sendo submetido à lógica do lucro e da eficiência. Aumenta a hiper conectividade ao mesmo tempo que aumenta a solidão e as relações utilitárias, superficiais e só. Essa contradição se torna ainda mais forte dentro dessa quarentena, conseguindo desnudar uma juventude cada vez mais ligada nas redes, porém cada vez mais sozinha. Do pouco tempo livre ao distanciamento físico dos corpos, direto para as dores de cabeça, tensão muscular, cansaço generalizado, problemas de ereção, ejaculação precoce, dificuldades para lubrificação, diminuição ou ausência de libido, aos poucos vão se tornando crônicos. Então se torna terreno fértil para a vergonha e constrangimento. Um sexo cada vez mais frustrado e frustrante, que tenta provar a partir da rentabilidade a sua eficiência. Uma sexualidade atrofiada potencializada por muitos desencontros. Estamos tão super explorados que é difícil nos conectarmos com o desejo.

Enquanto os discursos sobre "liberdade sexual" e bem-estar tomam conta das redes sociais, a sexualidade é assediada pela mercantilização, incitação ao consumo e degradação econômica. A socióloga Eva Illouz argumenta que durante o capitalismo a sexualidade ganhou especial relevância como resultado do "triunfo do amor romântico" e do surgimento do "mercado do casamento", processo em que não era mais necessário cumprir uma série de requisitos endossados pela sociedade para formar um casamento típico dos romances do século XIX. Com o surgimento da competição entre as pessoas pela conquista de um parceiro, “a atratividade erótica e o desempenho sexual marcam o surgimento de novas formas de aquisição de valor social no mercado matrimonial”, assegura a autora. Essa maior relevância da sexualidade hoje se confunde com múltiplas desigualdades sociais, culturais, políticas e econômicas, também aprofundadas pela pandemia.

Além da crise sanitária que hoje atinge o mundo todo e da diminuição dos encontros sociais, somam-se os efeitos da crise econômica. A falta de tempo livre, a rotatividade dos horários de trabalho, o cansaço, o desemprego, o estresse e a falta de quarto ou espaço próprio, principalmente entre a juventude LGBTQ+, são os grandes inimigos de uma sexualidade assombrada pela precariedade da vida.

Não é uma relação mecânica, a desigualdade econômica não nos impede absolutamente de viver uma sexualidade prazerosa, mas a condiciona, e restringe, impõe múltiplos limites à grande maioria trabalhadora e pobre para desfrutá-la efetivamente. A cultura do consumo e a mercantilização da sexualidade, tão lucrativas para as empresas, também deram sua contribuição. É como se sexo ou sexualidade fosse mais um pacote de bolacha, mostram em todo lugar e você pode consumir a qualquer hora. Desse modo, a lógica do consumo atravessa a experiência sexual, pressionando a localização dos elos em um local de mercadoria.

Na mesma linha, as mesmas empresas que hoje promovem o consumo desenfreado e vendem o anseio por viver o prazer no seu máximo esplendor, são aquelas que defendem a todo custo esta ordem social capitalista decadente, onde a lógica da rentabilidade se apresenta em todos os aspectos da vida, aspirando a transformá-los em produtos e serviços de todos os tipos, mesmo com as cores do arco-íris. Mas é no escuro das ruas, longe dos olhos da sociedade, onde se encontra a grande massa de LGBTQ+ marginalizadas pelo sistema capitalista.

Todo esse panorama não significa que não possamos desfrutar de nossas sexualidades. Na verdade, hoje as questões surgem com força desde crianças que exigem educação sexual abrangente em suas escolas até jovens que questionam outras gerações em suas casas, locais de trabalho e locais de estudo sobre o direito de viverem e expressarem suas sexualidades de maneira aberta. Mas é preciso pensar e imaginar todas as possibilidades no campo da sexualidade que não entram nessa "liberdade" que aceita tantas condições e cabe em tantos poucos bolsos, o que implica construir outra sociedade onde não se reduza a algo que pode ser vendido e comprado.

Leia também: O desejo sob suspeita

O controle dos corpos, o desemprego e a solidão da juventude LGBTQ+

Além disso, hoje vemos uma juventude LGBTQ+ vivendo uma "quarentena dentro da quarentena", mesmo entre aqueles que continuaram a trabalhar presencialmente. Com a pandemia, o exercício dos direitos sexuais, e também reprodutivos, está prejudicado. O fechamento das universidades e espaços de lazer e convivência social, espaços onde a juventude que transgride as normas de gênero e sexualidade podia expressar sua identidade de maneira mais aberta, mesmo que com contradições, empurrou uma grande parcela dessa juventude para o confinamento, sob os olhos vigilantes de pais e familiares conservadores, restando apenas as redes sociais como forma de romper com o isolamento subjetivo, nem que seja apenas para conversar.

Uma pesquisa de 2020 sobre os desafios da comunidade LGBT+ no contexto de isolamento social em enfrentamento à pandemia de Coronavírus, feita pelo coletivo #VoteLGBT com 10 mil pessoas LGBTQ+ brasileiras, mostrou que o afastamento das redes de apoio e o convívio diário com a família se tornaram grandes impactos negativos na pandemia. Problemas no convívio familiar foram citados como maior dificuldade durante o isolamento social por 10% dos ouvidos pela pesquisa do coletivo. Desses, um em cada dois estão na faixa etária entre 15 e 24 anos. São dados que demonstram algumas das dificuldades enfrentadas pelos jovens em seu próprio ambiente residencial. Adequação às novas regras de convívio social são o segundo fator de maior preocupação entre gays (19%) e lésbicas (14%) de 15 à 24 anos. A solidão também aparece como o maior problema para 11,7% da amostra, sendo maior entre as pessoas que se identificam como não-binárias.

Segundo os autores da pesquisa, diversas formas de preconceito ou violência (verbal, moral, psicológica e até física) transformam os ambientes mais comuns de nossas vidas em cenários de hostilidade: “Quando as novas regras de convívio impedem o acesso à redes de apoio e a casa da família de origem não aceita nem acolhe, a solidão se apresenta”. Para as pessoas LGBTQ+, o isolamento não apenas significa se afastar de seus amigos, de sua rede de apoio, mas pode até aumentar a convivência com um ambiente marcado pelo preconceito. Espaços como universidades e ambientes de convívio social são muito mais do que lugares de estudo ou lazer, muitas vezes significam ambientes onde podem sentir-se inteiros e seguros, física e emocionalmente, em um contexto onde dentro de nossas casas, o controle sobre nossos corpos impera.

A pesquisa também apontou que lidar com problemas de saúde mental é a maior preocupação para 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% das pessoas bissexuais e pansexuais e 42% das transexuais. O estudo revelou ainda que 28% dos entrevistados já receberam diagnóstico prévio de depressão - marca que é quase quatro vezes maior do registrado entre a população brasileira, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2013.

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O mapeamento mediu os impactos financeiros da crise sobre essa população: 20,7% dos entrevistados disseram não possuir renda e 21,6% afirmaram estar desempregados. O índice é relativamente maior se comparado com o de não ocupação da população brasileira, que foi de 14,7% no primeiro trimestre de 2021, segundo a pesquisa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua).

Cada um desses dados, embora bastante parciais, escancaram a miséria que o capitalismo impõe para o conjunto da classe trabalhadora e, em especial, aos setores LGBTQ+ de nossa classe, sendo a juventude aqueles que mais amargam essas estatísticas que já eram realidade antes mesmo da pandemia, mas que se aprofundam frente a crise sanitária. Enquanto, de um lado, vemos cada vez mais a visibilidade de uma certa parcela da população LGBTQ+ crescer, aparecendo na televisão e Netflix, com espaço na música e no cinema, com as empresas usando nossas identidades para promover discursos de empreendedorismo para aumentar seus lucros, do outra lado somos empurrados a precariedade, ao desemprego e trabalho informal, e também a violência LGBTfóbica promovida também por asquerosos da extrema-direita como o Bolsonaro. Um dos exemplos mais brutais disso é o exemplo da tentativa de transfeminicídio em Recife, onde uma mulher trans teve 40% do seu corpo queimado enquanto estava no terminal rodoviário da cidade.

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Retomar a radicalidade de 68

Como aponta Josefina Martínez. “na luta contra o capitalismo patriarcal e suas violências, a luta por desfrutar o tempo livre e a sexualidade é parte do combate por uma sociedade emancipada”

É por isso que neste próximo dia 28 de junho, dia Internacional do Orgulho LGBT, criado em referência à revolta de Stonewall, queremos retomar a radicalidade da juventude de 68 e daquelas pessoas LGBTQ+ que se levantaram contra a violência policial e pelo direito de livre expressão de suas sexualidades. É preciso ter claro que a luta pela emancipação da nossa sexualidade e de gênero se trata de criar as condições materiais, culturais e políticas para que isso aconteça, sentar as bases de uma verdadeira libertação sexual contra as desigualdades existentes, contra a objetificação e mercantilização dos corpos e do desejo. Isso nada tem a ver com permitir que empresas lucrem com nossas identidades, mas sim tem a ver com a necessidade de confiar apenas em nossas forças e nas forças da classe trabalhadora para lutar contra nossa opressão e exploração. Isso passa por se enfrentar diretamente contra todo o reacionarismo do governo Bolsonaro, Mourão e contra o conjunto do regime do golpe que, juntos com seus ataques e reformas contra a classe trabalhadora, precarizam a vida da maioria das LGBTQ+ que hoje tem apenas os postos de trabalho precário e informal como perspectiva.

O que precisamos é criar as condições para exercer livremente nossa sexualidade e nossas identidades, diferentemente dos ideais reformistas que apostam na visibilidade e defendem que a emancipação é uma soma de vários direitos se acumulando, como se o problema da repressão sexual fosse uma questão de ignorância popular, e não um instrumento dos capitalistas para aumentar sua exploração. Mas também, a nossa perspectiva não pode ser pós-moderna que acha que a emancipação sexual é destinada a parcelas específicas, dos círculos universitários e da classe média, que são capazes de “se auto emancipar” através de uma linguagem inclusiva e da “auto-libertação”. É preciso atacar o capitalismo no seu coração,com a força da classe trabalhadora, pelo direito à nossa sexualidade e livre expressão de identidade de gênero.

É nesse sentido que subscrevemos aqui as palavras inspiradas nos combates dos anos 1970 pelo Grupo de Liberación Gay de Chicago, em seu Documento de Trabajo para la Convención Constitucional Revolucionaria:

“Nossa luta particular é pela autodeterminação sexual, pela abolição dos papéis e estereótipos sexuais e pelo direito humano a usar o próprio corpo sem a interferência das instituições sociais e legais do Estado. Muitos de nós temos entendido que nossa luta não pode ter êxito sem uma mudança fundamental na sociedade que coloque a fonte do poder (os meios de produção) nas mãos das pessoas que, no presente, não tem nada. Aqueles que estão agora no poder se oporão a esta transformação com uma repressão violenta que, de fato, está em marcha. Nem todos nossos irmãos e irmãs na liberação gay compartilham esse ponto de vista, ou sentem que as soluções pessoais podem funcionar. Mas conforme cresça a nossa luta, se tornará evidente, diante da transformação das condições objetivas, que nossa libertação está inextricavelmente ligada à libertação de todos os oprimidos”

Assista a LIVE LGBT e Marxismo: Revolução nas ruas, nas casas e nas camas, com Luno Pires, Letícia Parks, Pedro Pequini e Virgínia Guitzel, no dia 28 de junho, às 19h, no canal oficial do Esquerda Diário no Youtube.




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