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SÍRIA | As razões imperiais do ataque contra Síria

Antes de analisar concretamente os ataques e suas possíveis consequências é necessário explicitar que se trata de um ato de agressão militar de três potências imperialistas que pretender legitimar seu militarismo com o desgastado argumento humanitário.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

terça-feira 17 de abril de 2018 | Edição do dia

Na sexta-feira a noite, uma pequena coalizão de ocasião composta por Estados Unidos, Inglaterra e França levou adiante o bombardeio que havia sido anunciado sobre o território sírio em represália ao suposto ataque com armas químicas do regime de Assad sobre a cidade de Duma, no dia 7 de abril.

Antes de analisar concretamente os ataques e suas possíveis consequências é necessário explicitar que se trata de um ato de agressão militar de três potências imperialistas que pretender legitimar seu militarismo com o desgastado argumento humanitário. É tão necessário reconhecer a gravidade disso, sem suavizar, quanto dar os valores concretos.

Primeiro sobre as motivações.

Se sempre se desencoraja crer em tudo que se vê, em tempos de "fake news" qualquer ingenuidade se paga como erro. As imagens da catástrofe que o povo sírio sofre são indignantes, sem dúvidas. Mas é impossível saber com certeza a existência confiável de cada ataque com armas químicas, sobretudo dos que se voltam de emblemas para tentar mudar o cenário da guerra ou da paz. Menos ainda sua autoria. É tão plausível que o regime de Assad o fez, assim como alguns dos seus muitos rivais por interesses próprios. No caso de Assad, não só porque fez antes, mas também porque tem cada vez mais confiança de que vai sobreviver, apoiado pela Rússia e pelo Irã. E sobre essa presunção consolida o controle do regime na zona ocidental do país, eliminando os últimos bolsões de resistência de frações islamitas opositoras, para expandir em direção ao leste. Nessa estratégia, o possível ataque com armas químicas em Duma faria sentido. No caso dos opositores, porque lhes daria uma justificativa humanitária para convocar a intervenção estrangeira direta, como aconteceu, embora a uma escala que, como veremos, não serviu para dar um golpe decisivo à coalização de Assad?

A tentativa de disfarçar esse ataque de guerra é muito solta. Há uma contradição no final entre o argumento moral e Trump, May e Macron. Não houve nenhuma resolução das Nações Unidas (não poderia ser pelo veto da rússia) que cobriria o bombardeio com alguma legitimidade. Eles também não esperaram pelo relatório da agência que foi contratada para verificar o ataque químico. O parlamento britânico, no qual a primeira-ministra Theresa May é minoria, já está tomando a conta por não ter votado este ato de guerra, que segundo pesquisa realizada pelo jornal The Independent, teria apenas 25% de aprovação na população.

Segundo, sobre o ataque.

Em território tático, foi um ataque com alcance limitado, "cirúrgico", como é chamado. O chefe do Pentágono, Jim Mattis, que hoje é a voz da "moderação", foi responsável por dar a ideia de que se tratava de um bombardeio articulado e que, em princípio, não iria se repetir. O que fala muito sobre os objetivos políticos de Trump, May e Macron: trata-se de dar uma mensagem por meio de uma ação punitiva circunscrita, que não tem entre seus objetivos forçar a "mudança de regime", ou seja, causar a queda de Assad e, assim, desempenhar um papel decisivo e direto na guerra civil. Muito menos criar as condições para um confronto militar direto entre "o Ocidente" e a Rússia (e, em menor escala, o Irã). Os objetivos parecem ser mais modestos. Para May, foi uma oportunidade para manter a posição que ela ganhou em seu confronto com a Rússia pelo envenenamento do ex-espião, o que o fez esquecer por um momento como seu papel internacional para o Brexit foi diminuído. E Macron, que enfrenta por esses dias uma onda de protestos sem precedentes, talvez tenha buscado um pouco de unidade nacional em torno de reivindicar o status de grande poder para a França. De forma alguma o seu negócio com a Rússia está em risco, para onde ele viajará no próximo mês.

Como transcendeu pelo Pentágono e várias outras fontes, utilizaram os canais "normais" que estão sendo usados para avisar a Rússia antes do ataque, e assim evitar qualquer acidente envolvendo tropas ou armas russas. Neste meio todos parecem ter desempenhado o seu papel e buscam aproveitar. O trio imperialista retornou ao ringue. Putin respirou porque quase não lhe cobrou a conta pelo ataque químico, e Assad orquestrou uma celebração desafiadora em Damasco para celebrar que ele ainda está no poder.

Por último, mas não menos importante, sobre a (geo)política.

Trump estava prestes a se retirar da Síria, onde os Estados Unidos têm cerca de 2.000 soldados e atua em aliança com as milícias curdas, especialmente com o objetivo de combater o Estado Islâmico, que hoje quase destruído. De acordo com a posição do presidente, já não valeria a pena gastar dinheiro e sangue americano (o famoso e nunca bem traduzido "blood and treasure") para consertar um desastre que o presidente considera alheio ao interesse nacional. O que equivaleria a dar de presente à Rússia do Irã a resolução do principal conflito geopolítico no Oriente Médio. Uma abdicação da liderança dos Estados Unidos, que além de se justificar com o lema de bravatas de "America First", era impossível passar despercebida como um sinal de fraqueza para os aliados e inimigos da principal potência imperialista.

Está claro que a mudança de opinião do presidente não foi impulsionada pelas imagens atrozes de crianças com espuma em suas bocas, mas porque esse resultado foi e é inaceitável para os Estados Unidos. Portanto, a notícia de armas químicas, reais ou não, deu a oportunidade a Trump de reconstruir a imagem norte-americana e retornar ao ringue. E nisso vinham acompanhados de republicanos e democratas, embora salvassem sua alma opositora denunciando que, mais uma vez, um ato de guerra passa sem discussão no Congresso.

No entanto, a grande questão é se realmente serviu para mudar a posição norte-americana na Síria do pós-guerra. Até agora, a resposta parece ser negativa.

Trump cantou uma vitória rápida como sempre através de um tweet. Foi um "sucesso total", ele disse, e terminou com uma "Missão cumprida". O último presidente antes de Trump que declarou "missão cumprida" foi George W. Bush em 2003, a bordo do porta-aviões Lincoln. Como logo se tornou conhecida, esta declaração de vitória na guerra do Iraque foi mais do que prematura, impossível: 15 anos depois, os Estados Unidos ainda não podem concluir o capítulo iraquiano da "guerra ao terrorismo". O triunfo, eles diriam para esses pagamentos, eu te devo.

A estratégia de Bush fracassou, mas pelo menos teve uma, o uso unilateral do enorme poder americano para reverter a tendência de declínio da liderança global dos Estados Unidos. No caso de Trump, há uma pergunta anterior, porque ninguém sabe com certeza qual seria a missão cumprida. Ou, em outras palavras, dentro de qual estratégia este ataque contra a Síria foi formulado, que exceto por ter sido acompanhado pela França e pela Grã-Bretanha, e por ter duplicado o número de mísseis, é quase uma cópia do primeiro bombardeio ordenado contra a Síria em abril de 2017. Para honrar as "linhas vermelhas" que Obama abandonou.

No plano interno, o ataque da última sexta-feira ocorreu em um momento particularmente convulsivo para a Casa Branca, que está no meio de uma transição para um gabinete onde falcões como Pompeo e Bolton prevalecem. Trump vem de semanas turbulentas no nível judicial, acusado decido ao Russiagate e o suspeito relacionamento com uma famosa atriz pornô que logo depois de receber uma quantia significativa de dinheiro do advogado do presidente lamentou ter vendido seu silêncio e agora é uma das espadas do FBI.

Na véspera de decidir o ataque nos subúrbios de Damasco, o presidente dividiu seu tempo entre acompanhar no Twitter os "belos mísseis" com uma retórica inflamatória contra a Rússia e o Irã, e antecipar a publicação de um novo livro que o difama, desta vez são as memórias de James B. Comey, o segundo na hierarquia do FBI demitido por Trump. O homem gosta muito de lembrar em grande detalhe vários escândalos sexuais atribuídos ao magnata em solo russo, o lado engraçado de sua alegada relação com o regime de Putin para assumir a presidência dos EUA.

No plano externo, Trump tem vários desafios pela frente, com resultados incertos, que somados aos contos de guerras comerciais, especialmente com a China, dão à situação um caráter volátil. O mais importante desses desafios é a eventual cúpula com o líder norte-coreano Kim Jong Un, que a Trump não convém chegar com o precedente de ter se retirado, quase sem combate, de um dos principais cenários da geopolítica mundial. E logo ele terá que decidir se se retira do acordo nuclear com o Irã, o que daria força à aliança anti-iraniana que reúne os Estados Unidos com Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar. Na Síria, a conquista do leste de Ghouta parece indicar que a situação está inclinada para uma vitória de Assad e, atrás dele, da Rússia, do Irã e também da Turquia, que aderiu tardiamente à coalizão que poderia garantir o esmagamento das aspirações de independência dos curdos. Lembre-se que a Turquia, um aliado da OTAN, vem do lançamento de sua própria guerra em Afrin, contra as milícias curdas, que são os principais aliados dos Estados Unidos na Síria.

A possibilidade de a Rússia e do Irã dirigirem a Síria do pós-guerra fortalece objetivamente a projeção regional do regime dos aiatolás e seus aliados e satélites (como as milícias do Hezbollah). Ao mesmo tempo, permite que Putin apareça como o arquiteto da derrota do Estado Islâmico e fomente o sonho de restaurar o status de grande poder da Rússia. É essa "pax russo-iraniana" que tenta obstruir os Estados Unidos e seus aliados ocidentais e regionais. Essas contradições são as que atualizam os riscos de aprofundar um conflito regional, que há muito tempo se tornou internacional.

A verdade é que a guerra civil na Síria, que entrou em seu oitavo ano, claramente tem um caráter completamente reacionário. O que começou como uma revolta democrática popular contra o regime ditatorial de Assad degenerou em uma guerra multifacetada onde as potências mundiais e regionais estão lutando por seus interesses. E é a população civil que está pagando o preço com 500.000 mortos, 12 milhões de refugiados e deslocados e uma destruição sem precedentes que será o futuro negócio dos vencedores.

Tradução: Ursula Noronha




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