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As mulheres chinesas querem sua metade do céu

Virginia de la Siega

Ilustração: Hung Liu

As mulheres chinesas querem sua metade do céu

Virginia de la Siega

A Revolução Chinesa conseguiu liquidar temporariamente algumas tradições milenares de opressão às mulheres. Com o retorno do capitalismo, esses valores e práticas estão agora combinados com as velhas pragas. Diante de um Estado que as obriga a abortar com a política de filho único e que agora as encoraja a ter mais filhos para superar o desastre demográfico criado por ele próprio, as chinesas resistem em massa.

“As mulheres sustentam metade do céu porque, por outro lado, sustentam metade do mundo” (Mao Zedong)

A política de filho único provocou uma catástrofe que levará décadas para ser superada. Por um lado, devido a essa política e a tradição de favorecer os filhos homens, existe hoje 30 milhões de homens a mais que mulheres. Por outro lado, a taxa de natalidade é inferior a taxa de reposição da população, resultando em um aumento na proporção de idosos, o que faz da China um país que passa por um envelhecimento crescente.

Com esses milhões de mulheres a menos, a condição feminina melhorou?

Muitos se perguntam se ter se tornado mais “rara” melhorou a condição das mulheres. A resposta é de que depende dos parâmetros a se considerar.

Nas cidades, a situação das mulheres melhorou bastante. Como as filhas únicas das elites urbanas, as quais não enfrentam a concorrência com um irmão a fim de ter bons estudos, ou avançar no plano profissional. Há hoje na universidade mais mulheres que homens. Segundo o estudo da Hurun Research Institute publicado em março de 2020, as nove mulheres bilionárias mais ricas do mundo e “self-made women” são hoje chinesas. Mas o quadro é muito diferente se considerarmos o nível de vida, de emprego e de satisfação das aspirações das mulheres chinesas comuns.

Ao libertá-las dos laços da doutrina confucionista, a Revolução de 1949 retirou as mulheres dos papeis tradicionais, permitiu-lhes sair do confinamento do trabalho doméstico e trabalhar na fábrica, no escritório ou na universidade. Em 1978, dois anos depois da morte de Mao e o fim da “revolução cultural”, o setor da burocracia dirigida por Deng Xiaoping lançou a reforma econômica que conduziu à restauração do capitalismo. Ao mesmo tempo em que se liquidavam as garantias de vida da grande maioria dos trabalhadores, as massas camponesas deixaram o atraso do interior para trabalhar nas grandes cidades costeiras.

Milhões de mulheres tiveram a possibilidade de migrar para as cidades, de se integrar à força de trabalho e, conformando o ideal de Confúcio, de procurar um marido o qual seja capaz de tirá-las da pobreza. Para Isabelle Attané, essa migração interna de mulheres em busca de ascensão social através do casamento é uma das causas pelas quais existem muitos homens no interior que jamais conseguiram encontrar esposas.

Pode-se perguntar o por quê de que mesmo quando as mulheres se tornam independentes, o ideal confucionista do homem como chefe de família continuou a se impor. A principal razão é de que, apesar da incorporação das mulheres à força de trabalho, as mulheres não obtiveram uma maior igualdade em relação aos homens. As que trabalham em fábricas, principalmente, constituem um setor superexplorado da classe trabalhadora.

As diferenças salarias em função do sexo aumentaram. Nas cidades, onde o “boom” econômico se deu de forma mais forte, ressurgiram os flagelos desaparecidos quando da revolução, como a prostituição. Ao mesmo tempo, as mulheres que ficaram nos campos do interior sofreram as consequências negativas da descoletivização. A exploração privada da terra reimpôs a tradicional divisão sexual de tarefas. As mulheres camponesas se encontram novamente trancadas na esfera da família e do lar. A esse problema se soma também o tráfico sexual e o sequestro de esposas, já que é no campo onde se encontra a maioria do contingente de 30 milhões de homens “excessivos”.

Segundo o Banco Mundial, a proporção de mulheres chinesas empregadas passou de 73% em 1990 para 63% em 2016. Essa tendência se acentuou após a crise mundial de 2008, dentro de um período no qual se viu o reforço dos valores tradicionais, da doutrina de Confúcio e as concepções reacionárias sobre o papel das mulheres. A figura da “mãe adotiva” que trabalha duro no campo, cuida do seu marido, dos filhos e dos sogros idosos, é novamente tida como um exemplo. Segundo certos estudos, 90% das mulheres, e a maioria dos homens, dizem ser o homem aquele quem deve ser o provedor da família.

Tanto no público como no privado, os diretores preferem contratar homens em suas oportunidades de emprego. A maioria das vagas no Ministério da Segurança Pública se diz “somente para homens”. Quando as mulheres não são explicitamente excluídas, os anúncios exigem que os candidatos sejam casados e com filhos, para que os empregadores não precisem pagar licença maternidade. Em um anúncio da província de Hebei para a contratação de condutoras de trem, exigia-se que as candidatas tivessem características físicas não relacionadas ao trabalho, como ter entre 1,62 e 1,73 metros de altura e peso inferior a 65 kg, sem tatuagem, cicatriz ou marcas no rosto. Tudo isso é obviamente proibido por lei, mas as empresas sabem como as autoridades raramente intervêm diante desses abusos e que, nos raros casos em que as queixas levam a condenações, o montante das multas é ridículo.

A situação não melhorou na política. 25%, apenas, de membros do Partido Comunista Chinês são mulheres, e só 6 em cada 25 estão em cargos políticos. O Comitê Permanente do Departamento Político é formado exclusivamente por homens, situação inalterada desde 1949.

Segundo o Fórum Econômico Mundial, nos últimos anos a China caiu no ranking mundial de paridade de gênero. De 57º em 144 países em 2008, caiu em 2017 para 100º lugar.

“Eu não ligo se ficar solteira…”

As ideias tradicionais ressurgem, mas as novas gerações de mulheres nascidas nas classes médias urbanas as estão contornando. Recusando-se a seguir os caminhos seculares, elas não mais consideram que seu único futuro está no casamento. Elas decidiram não suportar mais os maridos os quais não as satisfazem, os casamentos infelizes ou os homens violentos. O número de casamentos não cessa de baixar desde 2013, enquanto os divórcios aumentam constantemente desde 2006, todos reconhecendo se tratar, sobretudo, de iniciativas femininas.

As pressões exercidas pela família e a sociedade para conseguir com que essas jovens rebeles se casem não está dando mais tantos resultados. Contudo, segundo Yue Wang, uma jornalista da Forbes, essa situação já mudou bastante. Em um artigo publicado em outubro de 2017, ela explica como as mulheres chinesas, principalmente aquelas residentes de zonas urbanas, preferem estudar, se concentrar na carreira profissional e ascender a uma boa posição social, ao invés de pensar sobre casamento e de ter filhos. Alguns anos atrás, uma mulher de 27 anos que ainda fosse solteira era submetida ao sarcasmo; era chamada de "shengnu", aquela que está "sobrando". Em uma entrevista, uma jovem mulher de 29 anos que trabalha em Pequim em um escritório de advocacia internacional disse a ela: “Eu vou me concentrar em minha carreira. Você deve ter uma posição sólida economicamente para formar uma família. O homem com o qual me casarei deve ganhar mais dinheiro ainda do que eu, porque eu não quero que meu marido se torne um fardo para mim. Mas não me importo de ficar solteira caso não encontre um parceiro que me convenha.”

Desesperadas pelas tais atitudes “antissociais” (embora perfeitamente justificadas pela doutrina confucionista a qual exige do marido o sustento da família), o partido lançou uma ofensiva em favor da “família socialista”. Aplicando essa linha, a Federação de Mulheres da China organizou uma campanha “Famílias felizes”, a qual elogiava as mulheres que se casam, tem dois filhos e cuidam dos sogros. Em maio de 2017, o Comitê Central da Liga da Juventude Comunista decidiu “ajudar” jovens solteiros a encontrar um parceiro, criando uma “Divisão para namoro e casamento” que lançou uma plataforma de encontros online. Xi Jiping em pessoa apelou por reforçar “os valores tradicionais da família socialista”.

A fim de combater o aumento dos divórcios, grandes províncias tais como Shangai, Guangdong e Sichuan tentaram impor um “período de reflexão” de três a seis meses para os casais que desejam se divorciar. Eles tiveram de se afastar da raiva das mulheres, mas outras províncias já realizaram as mesmas medidas.

“Quando querem diminuir a população, eles nos esterilizam à força. Quando querem aumentá-la, eles nos incentivam a ter filhos. Mas para onde eles estão nos levando?”

Quando em 2016, o governo mudou a política de filho único para a de “dois filhos”, os burocratas acreditaram que as mulheres aceitariam sem reclamar. Eles não levaram em conta a existência de uma nova geração de mulheres de classe média instruídas, de que o ideal era uma família com um filho, algo ensinado desde o nascimento. Eles também não levaram em consideração as mulheres na casa dos trinta as quais já tiveram um filho e já retomaram às suas carreiras no que é chamado de “segunda primavera”. A maioria delas não vê sentido em deixar pela segunda vez suas carreiras profissionais para cuidar de um bebê.

Em 2018, demonstrando o desespero do governo, o Diário do Povo (órgão do Partido Comunista) escreveu que “o nascimento de um bebê não é uma questão de família, mas também uma questão de Estado”. Isso provocou uma onda de respostas indignadas na internet, como a citada no cabeçalho anterior. Em uma tentativa de convencer as futuras mães mais relutantes, os governos regionais prometeram pagar ajuda para cada criança ou cobrir os custos do parto para famílias com o segundo filho. Entre 2016 e 2017, quase todas as regiões estenderam a licença-maternidade. E as autoridades enfatizaram aos empregadores a parar de perguntar às mulheres que aparecem para um emprego se têm filhos e a garantir que voltem ao trabalho se tiverem que dar à luz.

O desespero da burocracia contribuiu para a aparição de algumas respostas ridículas, como aquela de um professor de economia da Universidade de Fudan, em Shangai, que sugeriu, para resolver o problema, que as mulheres vivam nos campos do interior, tenham mais de um marido e, assim, mais de um filho. Os comentários das mulheres chinesas publicadas no Weibo, o twitter chinês, não deixam dúvida sobre o que pensam dessa proposta.

Com a memória de 35 anos de política de filho único em mente, as pessoas estão começando a temer que, se a campanha do governo falhar, o governo usará meios mais coercitivos. Várias províncias já proibiram o aborto após a décima quarta semana e algumas, como Jiangxi, exigem a assinatura de três médicos antes de autorizar um aborto.

Se o governo central pretende impor essa política, são as novas gerações de mulheres que serão as principais vítimas. A China se depara com um problema crescente: o envelhecimento da população. Quando as famílias têm dois filhos, especialmente no campo, onde as aposentadorias são totalmente insuficientes para a sobrevivência dos agricultores, elas se beneficiam do seguro de aposentadoria dupla. Conforme estabelecido pela tradição, o filho estudará e seguirá uma carreira para garantir o futuro econômico dos pais; quanto à menina, que terá que cuidar dos pais ou do marido de qualquer maneira, ora por que dar educação a ela?

Mas tudo isso continua em fase de planejamento. Para que tudo ocorra bem, o governo chinês terá de convencer as mulheres a terem dois filhos. E esse é o problema. Os diferentes governos no mundo impuseram em diferentes momentos políticas de natalidade. Pequim poderia proibir o aborto e os meios de contracepção, mas, como a História já mostrou várias vezes, a proibição não seria capaz de impedir a disseminação e a prática ilegal. A grande contradição reside no fato de que, se o governo foi capaz de esterilizar e fazer as mulheres abortarem à força por três décadas, não há como forçá-las a casar e engravidar de dois filhos agora.


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