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Arte, revolução e o trabalho com ruínas

Afonso Machado

Arte, revolução e o trabalho com ruínas

Afonso Machado

Vivemos hoje um momento particularmente perigoso para a sobrevivência de uma tradição cultural revolucionária. A extrema direita não hesita em jogar areia, em atirar pedras para soterrar as imagens rebeladas do passado. Seguindo o conselho de Walter Benjamin para trabalhar com ruínas, o marxista descobre ligações históricas entre as formas artísticas contestadoras. Elencar e refletir sobre tais manifestações não implica no seu endeusamento, na busca por talismãs ou na confecção de cartilhas estéticas. O que está em questão é o necessário olhar dialético, a capacidade crítica de perceber numa imagem as contradições de uma época e como suas energias políticas atuam sobre outras épocas. Da literatura ao teatro, passando pelo cinema, pela música pop (além de outros produtos culturais de massa ) encontramos objetos que nos ajudam a decifrar a história.

Russos, brasileiros e a arte revolucionária

Para o marxismo, o fato inequívoco das estrelas existirem antes do telescópio nos leva a refletir sobre o instrumento de observação que podemos denominar como ideias ou imagens. Este por sua vez pode exercer diferentes níveis de influência política sobre uma classe explorada que, em determinados períodos , consegue olhar para além das aparências de uma constelação histórica. A arte pode possibilitar uma experiência que contribui com o desenvolvimento da consciência histórica dos homens. Isto é visível no caso do proletariado russo quando, vitorioso com a Revolução de Outubro de 1917, olha pela câmera/telescópio do cineasta Serguei Eisenstein em 1925: os marinheiros e a população sublevados contra o czarismo na Revolução de 1905, são representados no filme O Encouraçado Potemkin a partir da montagem dialética dos acontecimentos históricos. A tensão imagética e o efeito de choque no filme, expressam o movimento da realidade. Eisenstein conta um episódio fundamental da história do movimento dos trabalhadores russos, tendo inclusive a proeza poética de revelar os meandros da luta de classes no interior de um encouraçado:

MARINHEIROS = PROLETÁRIOS X ALMIRANTES = CZARISMO. Ao tomar o navio, os marinheiros apontam os canhões para a classe dominante.

No longa de Eisenstein, a história é narrada enquanto construção destinada ao fortalecimento ideológico de uma classe. Logo a experiência sensível de uma obra de arte atua no mesmo âmbito cognitivo em que a consciência política se forma. Ao reconstituir 1905, Potemkin agiu sobre a sensibilidade política dos trabalhadores que colhiam os frutos da Revolução de 1917 na União Soviética de 1925, mas não apenas. No Brasil do início de 1964, ainda durante a Era Jango, momento de intensas agitações políticas e sociais no país, marinheiros e fuzileiros rebeldes assistiram ao filme soviético: os marinheiros que reivindicavam a melhoria da alimentação a bordo, a reformulação do regulamento disciplinar da Marinha e que apoiavam publicamente as Reformas de Base empreendidas por Jango, experimentaram a estética revolucionária de Eisenstein num contexto político em que a sociedade brasileira estava em ebulição.

A linguagem cinematográfica possibilitou que a revolta de marinheiros russos agisse sobre a consciência dos marinheiros do Brasil do início dos anos de 1960. Pode-se acrescentar que a Revolução de 1905 na Rússia conectou-se também e indiretamente com a Revolta da Chibata de 1910 no Brasil, arrancando do esquecimento um acontecimento em que marinheiros sublevados assumiram o controle de navios de guerra e apontaram seus canhões para a Baia de Guanabara: os revoltosos faziam uma lista de reivindicações ao governo brasileiro, dentre as quais estava o fim dos castigos físicos então aplicados pela Marinha. Uma associação histórica, política, deu-se entre os marinheiros de Potemkin, os marinheiros liderados por João Cândido em 1910 e os marinheiros que seriam derrotados pelo Golpe de 64. A história da Rússia e do Brasil sintetizam-se mutuamente e são iluminadas a partir de um expoente do cinema soviético.

Pensando ainda nas possíveis relações entre os contextos soviético e brasileiro, encontramos o Proletkult, um dos principais ancestrais das organizações que promovem arte revolucionária. Ao mencionar os tempos do CPC(Centro Popular de Cultura) o cineasta brasileiro Glauber Rocha comparou a arte revolucionária que surge a partir do apoio institucional do governo Jango(1961-64) com o Proletkult:

(...) “ O CPC era um órgão ligado ao Ministério da Educação, tinha verbas do Ministério e da UNE(...) Então planejava uma política de educação popular através também da alfabetização; a cultura não era só o cinema(...) era o desenvolvimento de um programa coletivo, com um programa do Proletkult “(...)

Sabemos que a concepção de cultura proletária é equivocada: não precisamos aqui retomar as brilhantes reflexões históricas de Leon Trotski. Mas descontadas as equivocadas concepções culturais do Proletkult, não se pode negligenciar que este foi pioneiro na sistematização das atividades artísticas revolucionárias da classe trabalhadora, o que geraria herdeiros legítimos dentro da arte de esquerda. A criação de uma suposta arte proletária, que participaria ativamente da organização política e cultural dos trabalhadores, coloca o Proletkult, criado em 1917 na Rússia para unificar artistas e intelectuais revolucionários, e o CPC, organização surgida em 1961 e vinculada á União Nacional dos Estudantes para agremiar artistas e intelectuais brasileiros de esquerda, no mesmo campo da tradição artística revolucionária. Embora o CPC expresse em várias de suas realizações artísticas o imaginário populista, a perspectiva nacionalista e os equívocos políticos do PCB(Partido Comunista Brasileiro), tratou-se de uma iniciativa revolucionária que aproximou por um curto período de tempo artistas, operários, estudantes, camponeses, intelectuais e marinheiros.

O teatro de Brecht

Um pensamento flexível que permite analogias históricas entre movimentos políticos/sociais e obras de arte, também se faz dentro da própria dinâmica das realizações artísticas. É o que observamos no caso de Bertolt Brecht quando este apresenta uma nova maneira de realizar a citação histórica numa peça teatral. O teatro épico nos lega a lição de que diversão e reflexão histórica precisam andar juntas. No teatro de Brecht, o espectador proletário está numa posição de relaxamento diante de uma narrativa. Ele necessita de histórias que lhes faça pensar, exatamente porque o trabalhador possui motivos para pensar: o preço do pão não é um mistério religioso, uma guerra possui entrelinhas feitas de interesses econômicos ocultos, assim como o salário do operário não cai do céu junto com a chuva. Na rotina estes elementos históricos são harmonizados na consciência dos trabalhadores através das narrativas capitalistas: pela superfície factual, pela sua aparência, estas imagens recebem o estatuto inquestionável de realidade imutável, algo tão natural quanto uma samambaia. Brecht altera este estado de coisas duvidando, refletindo, realizando perguntas no palco.

Já que uma narrativa encenada no teatro representa acontecimentos conhecidos, produz imagens de acontecimentos, para Brecht os eventos históricos são os mais adequados a este espectador cheio de indagações sobre o que foi, o que é e o que pode ser a realidade. A história da luta de classes é o material dramático do teatro épico. Pode-se narrar uma história junto a um círculo de pessoas que no silêncio de uma noite insone, saboreiam pelas palavras do contador de histórias as situações imaginadas: é a dialética do coração ansioso, da lua tensa, dos olhos atentos e do vento misterioso que balança as folhas das árvores e a curiosidade dos ouvintes. Porém, no mundo moderno, existem instrumentos mais adequados a uma realidade produtiva em que a batida do coração dialoga com a energia elétrica, o neon compete em brilho com a lua, os olhos entregam-se aos apelos sensíveis da publicidade e o vento é bloqueado pelo ar condicionado ou substituído pelo ventilador. Integrando sua linguagem teatral a esta realidade produtiva iminentemente moderna, que por sua vez interfere na percepção que o trabalhador tem das coisas, Brecht, assim como Erwin Piscator, introduz junto ao corpo dos atores letreiros e posters, isto é, recursos que pertencem ao contexto da cultura de massa. É de acordo com esta realidade produtiva que Brecht constrói em suas peças teatrais a narrativa materialista da história.

Não obedecendo o fatalismo expresso na linha reta dos fatos, na inevitabilidade do destino do herói trágico, o teatro épico possui uma outra relação com o tempo histórico(Benjamin). O final catártico que foi teorizado por Aristóteles, notável filósofo que no entanto legitimou a ideologia conformista da tragédia clássica, não é importante em Brecht. No teatro épico acontecimentos são destacados, citados em sua individualidade, o que permite na estrutura do espetáculo abranger ou referir-se aos mais variados períodos históricos(Benjamin). Estes últimos são nas peças de Brecht combinados, comparados, montados, enfim, construídos. Como observou Walter Benjamin, amigo de Brecht que dedicou-se a pensar a estética do teatro épico, na peça sobre Galileu( memorável cientista perseguido pela Inquisição do século XVII) o dramaturgo alemão apresenta( no final da década de 1930) uma alegoria para a situação aterrorizante do intelectual numa Europa ameaçada pelo nazismo. Como diria o próprio Benjamin, Brecht atualiza o passado.

A citação histórica se faz no teatro épico pelo gesto do ator, por sua fala, pelo seu canto e por recursos modernos. O letreiro ou o cartaz que traz uma data, um fato, uma foto, uma frase, articula-se criticamente com aquilo que é encenado no palco. O coro da tragédia é substituído por uma linguagem que remete ao jornalismo, que portanto requer objetividade histórica, associação crítica entre os acontecimentos narrados/representados. Benjamin escreve e nos ensina através de Brecht que citar é interromper o curso de uma ação num espetáculo ou num texto. No teatro épico a quebra do personagem e a fala do ator consistem precisamente numa citação, momento de crítica/reflexão na peça teatral. Este choque, que permite a citação histórica e o comentário político/social do ator que “ sai “ do personagem, revolucionou a forma da própria narrativa histórica marxista.

Em Brecht, iminente teórico marxista do teatro, a distração, a diversão e o prazer são contextos indispensáveis para que a arte se faça enquanto força material, força que interfere na percepção política da população. Neste sentido, o entretenimento ou a diversão de massa não contradiz, para Brecht, a reflexão, a transgressão e o esclarecimento político. Isto também é cristalino quando observamos a música e a cultura jovem da década de 1960.

Iluminações e contradições

Os Beatles nos mostram que, apesar do rock ser necessariamente embalado para o consumo de massa, este acabava por exprimir uma postura de contestação social. A banda inglesa acompanhou durante a segunda metade da década de 1960 o movimento de rebeldia da juventude do período, sintonizando-se com aquilo que foi designado como contracultura, entrando em conflito com a moral e os valores das autoridades. John Lennon em especial exerce na condição de artista o papel de opositor da invasão norte americana no Vietnã. Enquanto que Diógenes, o cínico e rebelde escritor grego da Antiguidade teria dito para o conquistador e gênio militar Alexandre, o Grande, sair da sua frente porque o macedônio estava bloqueando os agradáveis raios do sol que o iluminavam, John Lennon disse para o presidente norte americano Richard Nixon sair do Vietnã e deixar o sol entrar naquele país. A rebeldia de Diógenes e Lennon choca-se com Alexandre e Nixon.

Se as longas cabeleiras, o amor livre e os relatos de experiências com drogas eram fatores contraculturais inscritos entre os iniciados do underground do pós guerra, elementos que ficaram num primeiro momento conhecidos pela literatura Beat dos anos de 1950( a partir da obra de escritores norte americanos como o romancista Jack Kerouac e o poeta Allen Ginsberg), os Beatles difundem nos anos de 1960 esta linguagem transgressora em discos como Revolver(1966) e Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band(1967). As formas contraculturais , reprovadas pelas autoridades que impulsionavam medidas repressivas como aquelas realizadas pelo então governador do Estado da California Ronald Reagan contra estudantes, tinham um forte bastião nas composições dos Beatles, assim como nas de outros artistas do período vinculados ao rock, como o compositor folk norte americano Bob Dylan. Entretanto, o quarteto de Liverpool não tinha muita proximidade com as correntes políticas de esquerda que orientavam parte significativa da juventude da época, não endossando por exemplo os numerosos cartazes propagandísticos de Mao Tsé Tung, como atesta a canção Revolution de 1968:

“ Você diz que quer uma revolução
Bem, você sabe
Todos nós queremos mudar o mundo
(...) Mas se você ficar carregando cartazes do Presidente Mao
Você não vai fazer ninguém aderir de jeito nenhum “

(Lennon/McCartney)

Nota-se um contraste entre a postura musical em sintonia com a contracultura e as concepções artísticas que embalavam a juventude chinesa durante os anos da desastrosa Revolução Cultural(1966-76). Afirma Mao Tsé Tung em suas célebres reflexões sobre arte e literatura contidas no Livro Vermelho(1963):

“ A nossa literatura e a nossa arte servem ás grandes massas populares e, em primeiro lugar, aos operários, aos camponeses e os soldados. Elas são criadas para os operários, camponeses e soldados e são utilizadas por eles “.

John Lennon e Paul McCartney apresentaram antipatia e um posicionamento crítico frente ao culto feito a Mao, ao autoritarismo presente na Revolução Cultural Chinesa, cuja máxima por uma “ Educação socialista purista “ ocultava a manobra política do “ Grande Timoneiro “ para fortalecer junto aos jovens e trabalhadores sua influência política e controle ideológico no Partido Comunista Chinês. A arte do período maoísta, cuja insígnia “ proletária “ ou “ revolucionária “ servia( a exemplo do que foi feito pelo stalinismo nos anos de 1930/40) como propaganda e manipulação de massa, contrasta com a estridente e libertária linguagem de massa do rock de 1968. Outrossim, tanto os cartazes maoístas quanto os discos dos Beatles eram produtos de massa. Entre a boina e o punho cerrado dos raivosos guardas vermelhos e a psicodelia dos hippies sonhadores, os Beatles estavam alinhados aos segundos. Porém, o pacifismo da banda era perfeitamente compatível com o capitalismo, com as vendas milionárias de singles e álbuns gravados, logo distante de um projeto político que poderia transformar as bases econômicas da sociedade.

Revolucionários, satanistas e antropófagos

Há mais de um século as imagens, ideias e realizações de revolucionários e rebeldes circulam pelos meios de comunicação de massa. Entre o período histórico que vai de Louis Blanqui e Charles Baudelaire a Che Guevara e os Rolling Stones, a disseminação das negações do sistema vigente infiltrou-se progressivamente na cultura de massa, chegando inclusive até o imaginário dos nossos dias. Blanqui: líder revolucionário e símbolo da Revolução de 1848 na França , que testemunhou o martírio de uma geração de militantes presos, fuzilados e deportados pelas forças reacionárias personificadas em Cavaignac, o general carniceiro que esmagou as jornadas de junho. Che Guevara: o ícone da guerra de guerrilhas do terceiro mundo, liderança dos camponeses que desceram em 1959 a Sierra Maestra para colocar um ponto final na ditadura de Fulgêncio Batista e levantar a voz contra o imperialismo norte americano em Cuba. A geração de Blanqui viveu em 1848 um momento histórico em que o movimento operário não lutou contra mas ao lado da burguesia(Marx), o que acarretaria em trágicas consequências. Che, expoente de uma geração que jogou parte de suas fichas na guerrilha, é paradoxalmente um revolucionário e um homem autoritário. Ele personificou a direção política deformada cubana que se caracteriza por estabelecer a intolerância dentro da revolução. A trajetória revolucionária de Blanqui pertence a um momento em que a fotografia estava tecnicamente florescendo. Che, que foi assassinado a mando da CIA em 1967, teve o seu corpo morto (e os olhos bem vivos) expostos e, contrariando a intenção dos seus executores, tornou-se pela tela da televisão um símbolo revolucionário. A figura de Che, diferentemente de Blanqui, foi imortalizada pela imagem televisiva. O efeito imagético/estético do personagem Che adentrou profundamente pela sensibilidade da juventude revolucionária latino americana através de fotos, bandeiras, camisetas e até adesivos.

Os Stones multiplicaram por cinco músicos a postura decadentista de Baudelaire. O satanismo do poeta francês expresso na obra As Flores do Mal, faz dele o agente secreto (Benjamin) infiltrado no paraíso literário da burguesia. Nos versos que integram a sessão Litania de Satã pertencente ao referido livro, Baudelaire insulta a burguesia no âmbito da espiritualidade:

"Ó tu, Anjo mais belo e sábio
Senhor, Deus que a sorte traiu e privou do louvor
Tem piedade, Satã, desta longa miséria!
Tu, cujas graças ao leproso e ao pária cedem
Com a lição do amor o próprio gosto do Eden “(...) (Charles Baudelaire)

Em Baudelaire a contestação religiosa é parte constituinte da sua confusa revolta política. Em certos momentos o poeta defende o engajamento político da literatura, como em 1850 quando afirma que a arte não se separa do que é útil. Mas se Baudelaire aproxima-se em certo sentido do ponto de vista das barricadas na Revolução de 1848, sua posição política tem mais a ver com a negatividade e o aspecto provocativo do conspirador. Mick Jagger também apresentaria nos anos de 1960 as qualidades negativistas e provocadoras do conspirador : o escândalo da prisão por porte de drogas, a sexualidade livre e andrógena, também o aproximam, enquanto artista rebelde, do contexto de subversão política. Como já tive a oportunidade de abordar em outro texto, a canção Street Fighting Man de 1968 exprime a simpatia dos Stones pelos jovens revolucionários de Paris e Chicago. Porém, a fortuna da banda inglesa a afasta inevitavelmente do proletariado. Baudelaire foi um dos primeiros a compreender que perante as massas das grandes cidades capitalistas, o poeta nada mais é do que uma mercadoria. Jagger e seus amigos radicalizaram a condição mercadológica do artista na era da indústria cultural. A exemplo de Baudelaire os Stones também recorrem ás estratégias profanas do satanismo na canção Sympathy for The Devil, de 1968:

(...) “ Prazer em conhece-lo
Espero que adivinhe o meu nome
(...) Assim como cara é coroa
Simplesmente me chame de Lúcifer “ (... )
(Jagger/Richards)

Jagger recorda que por aquela época, diante do violento cenário histórico de 1968, estava lendo Baudelaire, o que certamente influenciou na qualidade blasfematória da canção. Tanto nos versos de Baudelaire quanto na composição de Jagger e Richards, a luta de classes atinge uma proporção metafórica com a luta entre o sagrado e o profano, o conflito do Deus da burguesia com os párias, os marginais e os rebeldes. Não se trata obviamente de expressões revolucionárias proletárias, mas de exteriorizações poéticas que subvertem elementos superestruturais, logo intervindo na realidade material em épocas de agitação revolucionária. Impossível desconsiderar o valor alegórico destes elementos nos conflitos entre as classes sociais(trata-se do potencial político da imagem dialética). É o que Benjamin classificou como o desejo de “ interromper “ a história: a revolta expressa numa forma artística carrega este desejo de interromper, de parar o tempo da dominação e da repressão, subvertendo na curta temporalidade do verso e da canção o paraíso burguês.

O sonho da burguesia, que pressupõe o pesadelo do proletariado, é feito de muito conforto, de imagens confortáveis que domesticam e castram. O tempo livre dos trabalhadores baseia-se numa ideia inofensiva de felicidade e satisfação(Marcuse), alimentada em nossos dias tanto pelo grosso da indústria cultural quanto por certos espaços religiosos. Mas quando o prazer é reivindicado nesta vida, dentro da história e não no Céu, existe a ameaça de subversão já que o capitalismo deve disciplinar o corpo dos trabalhadores: sabe-se que os capitalistas necessitam sustentar a mentira de que os trabalhadores são livres e satisfeitos. Eis que quando os sentidos são liberados a satisfação e a felicidade colocam-se como historicamente possíveis(Marcuse). A arte rebelada cuja matriz remete aos primeiros românticos e cujos desdobramentos deram-se inclusive dentro da indústria cultural, expressa esta possibilidade. A sensualidade e a revolta sintetizadas na arte libertária carregam um novo corpo que não quer servir ao capital. Isso é muito importante: o impulso revolucionário requer um corpo liberto. A fruição dos sentidos, ou se quisermos uma liberação dos sentidos, condiz com uma ameaça real contra a cultura : recusar o conforto burguês imprime a necessidade da negatividade, o desejo de perturbar os gostos e valores de uma classe que morre de medo do Diabo e do proletariado organizado.

Ainda em 1968, encontramos no Brasil o exemplo do tropicalismo em conexão com o que os Stones e os Beatles realizavam no Primeiro mundo. Apesar do comprometedor apelo comercial, as provocações estéticas e as atitudes anárquicas dos tropicalistas entrelaçam-se historicamente com uma atmosfera de rebelião, com a reivindicação de um corpo liberto e logo incompatível com a realidade política repressiva da ditadura militar(1964-85). Mesmo sem serem propriamente marxistas, os tropicalistas contribuem com o debate estético dentro do marxismo ao mostrarem a importância do diálogo crítico/antropofágico com as estruturas comunicativas da era da cultura de massas: o projeto antropofágico de Oswald de Andrade é retomado com primor na era da contracultura e da arte pop. O estranhamento do tropicalismo com o pensamento marxista é aparente , visto que a reflexão crítica que esta postura desperta influi consideravelmente sobre o olhar materialista, necessariamente interessado em captar as contradições da história do Brasil.
A hostilidade ao espírito inventivo do tropicalismo não partiu propriamente nos de 1960 do marxismo mas da esquerda nacionalista que, em sua filiação histórica ao stalinismo, trouxe o empobrecimento filosófico do próprio marxismo. Quando Caetano Veloso e os Mutantes foram vaiados e agredidos por estudantes de esquerda durante a memorável execução da canção É Proibido Proibir no Tuca em 1968, existiu no discurso inflamado do artista um ponto chave. Caetano questiona as limitações culturais de uma esquerda incapaz de apreender a inventividade expressa na revolta dos movimentos culturais de juventude do período:

“ Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos ... “.

Este episódio em que Caetano e os Mutantes são vaiados, aproxima na história do Brasil 1968 e 1922: entre o Tuca e o Teatro municipal, ambos localizados na cidade de São Paulo, entre os tropicalistas e os modernistas da Semana de Arte Moderna, encontramos por entre tomates e ovos atirados por plateias intolerantes, o dado da rebeldia na estética. Vislumbrar essas conexões históricas não implica em uma atitude formalista, mas na construção de uma analogia histórica entre períodos artísticos que exprimem a agitação política revolucionária em seus respectivos contextos/conteúdos históricos. Modernistas e tropicalistas em suas inquietações estéticas geram escândalo e expressam épocas de subversão política.
Certamente que os aristocráticos intelectuais que vaiaram Oswald de Andrade em 1922 não são os mesmos estudantes de esquerda que vaiaram Caetano Veloso em 1968. Porém, a vista curta da esquerda nacionalista para questões estéticas a aproxima curiosamente dos reacionários da classe dominante. Entre a subcorrente do movimento antropofágico de 1928/29 e o tropicalismo de 1968/69, constitui-se no Brasil uma tradição cultural de assimilação crítica da modernidade em sua feição internacional; e o que faltou(e ainda falta...) para certos setores da esquerda é a perspectiva internacionalista, inclusive no campo das atividades culturais.

Construindo uma tradição

A busca pela tradição cultural revolucionária, consiste num gesto construtivo e afirma-se enquanto oposição a uma sociedade que bloqueia a possibilidade histórica de emancipação. A construção desta tradição implica num processo de montagem. Se a classe dominante tenta apagar os momentos de revolta e tensão da história, cabe a nós estarmos aptos para lidar com as ruínas: a arte rebelada possui energias reveladoras daquilo que poderia ter sido mas não foi. Quando estas imagens rebeladas invadem a realidade estabelecida, nos deparamos com a história em aberto.


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