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Arte, Política e Marxismo: 100 anos da Semana de Arte Moderna

Pedro Pequini

Arte, Política e Marxismo: 100 anos da Semana de Arte Moderna

Pedro Pequini

Nos dias 07/11, 21/11, 05/12 de 2021, nós da Juventude Faísca e independentes organizarmos, com um sentido preparatório, um Esquenta de Debates para o centenário da Semana de Arte Moderna que ocorrerá neste ano de 2022. Nesses encontros, discutimos sobre os antecedentes e as bases sobre as quais o modernismo brasileiro se alçou; a poesia do Mário de Andrade exposta na SAM e sua concepção sobre São Paulo; e o pós 22, adentrando na segunda geração modernista e as problemáticas acerca da liberdade da arte. Neste artigo, buscaremos, em primeiro lugar, generalizar algumas das sínteses alcançadas nos três encontros que realizamos, a fim de que possamos olhar criticamente para esse processo central na arte brasileira; e, em segundo plano, envolver e fazer você, leitor, a incorrer nesse mundo, que é a Semana de Arte Moderna, com a gente, para retirar as necessárias lições e, como diria o grande Mário de Andrade, meditar com o passado.

Por que revisitar a Semana de Arte Moderna?

100 anos se passaram desde que os modernistas incendiaram o Teatro Municipal e propuseram algo completamente inédito no cenário cultural brasileiro. Agora, quem são os jovens que hoje olham para trás e podem refletir sobre o legado deixado por esses pioneiros?

Somos uma juventude que está sendo atravessada por uma profunda crise econômica, que se arrasta desde 2008, e um consequente avanço na carestia de vida; uma juventude que sente o seu futuro ser arrancado a cada dia. Nos últimos anos no Brasil, vivemos o crescimento da extrema direita, um golpe institucional e a eleição de Bolsonaro, representante de todo o conservadorismo mais podre e a negação do visceral, do revolucionário e, no limite, da vida.

Todavia, também somos a juventude que internacionalmente no Chile se levantou contra a herança pinochetista e tomou as ruas junto dos trabalhadores, que no coração do imperialismo gritou aos quatro cantos que “Black Lives Matter" (vidas negras importam).

Para nós, depois de vivermos 2 anos de pandemia, presos em nossas casas sem poder desfrutar das artes que dependiam da troca física, com nossa subjetividade carente de experiências sensoriais, sensíveis e afetivas, regressar para um momento em que a vanguarda intelectual teve a audácia de propor o novo e bater de frente com o canônico, o tradicional, é algo que no mínimo mobiliza fortes paixões.

Este artigo nasce depois de que um grupo de jovens estudantes de Letras da Universidade de São Paulo (USP) decidiram se organizar para compreender como se deu esse fenômeno social e as implicações que ele tem até os dias de hoje. Um grupo de jovens que, assim como aqueles modernistas, não querem olhar para a história como meros espectadores, mas desejam ter o ímpeto de tomar o futuro em suas próprias mãos. Acreditamos que é fundamental aprender com a história e que o maior legado que podemos oferecer para os construtores da Semana de Arte Moderna é o de se emanar desse espírito subversivo para subverter essa realidade de miséria e construir uma sociedade livre de classes, de exploração e opressão: uma sociedade socialista!

Um breve panorama histórico

1ª Geração

É muito interessante ver como, mesmo tendo passado 100 anos, muitos dos debates presentes na Semana de Arte Moderna aparecem hoje mais atuais do que nunca. O modernismo, comumente designado de "fase heróica", cumpriu um papel único na história da arte brasileira ao beber das inovações estéticas advindas das vanguardas europeias e então pensar o Brasil que, especialmente em São Paulo, se modernizava e se industrializava galopantemente.

Para tentar ilustrar as profundas transformações pelas quais passava São Paulo, em 1907 contávamos com 3.358 indústrias no Brasil; em 1920, esse número chega a 13.336. Isso significa o surgimento de uma burguesia industrial cada dia mais forte, localizada especialmente no estado paulista, mas que ainda não possuía a hegemonia política, uma vez que essa estava nas mãos da oligarquia do café com leite. As disputas políticas, portanto, entre uma burguesia industrial ascendente e uma velha aristocracia cafeeira - ainda que ambas não possam ser vistas como classes antagônicas, uma vez que apresentam uma relação mutualística, com vários casos de indivíduos, como o próprio Paulo Prado que irá financiar a Semana, tendo sido de ambos os extratos sociais (um oligarca advindo de uma família escravocrata e também um industrial) - vão se fortalecendo e se expressam também na SAM, no que diz respeito ao financiamento das obras e exposições e no interesse de, cultural e ideologicamente, dar voz às ideias deste movimento como marca de seu tempo e suas transformações econômicas, políticas e sociais.

Além disso, estamos falando de um país que recebe, no período de 1903 e 1914, cerca de 1,5 milhões de imigrantes, que vão trazer consigo os ensinamentos da luta de classes do pré Primeira Guerra Mundial na Europa, através das vertentes do marxismo, do anarquismo, do sindicalismo e demais ideologias que faziam parte das experiências de greve, organização e luta do movimento operário europeu de então.

Logo, falar desse momento histórico é adentrar em um terreno de constantes e profundas mudanças e disputas. A fim de refleti-lo criticamente desde uma perspectiva marxista, é necessário também fazer um recorte de classe sobre o evento: é sabido, por exemplo, que o proletariado não esteve presente no Teatro Municipal de São Paulo durante o maremoto cultural; o abismo que se abriu entre aquilo que era debatido, apreciado e proposto pela e para a elite e aquilo que as massas tinham acesso, crescia cada dia mais, na mesma velocidade que crescia uma classe operária nas terras brasileiras agrárias, semicoloniais e dependentes do capital estrangeiro, em meio ao surgimento e fortalecimento das potências imperialistas no começo do século XX.

Além disso, a nova experimentação estética, embora tenha chocado as classes altas paulistanas conservadoras que possuíam um restrito conceito do que era arte, foi financiada pela própria elite cafeeira. O modernismo de primeira fase, portanto, carrega consigo um caráter profundamente elitista, na medida em que sua arte não saiu para além dos salões da aristocracia e todas essas novas ideias ficaram represadas nas classes mais abastadas, abstendo-se, assim, de se ligar com os trabalhadores e o movimento operário. Quando formos falar da segunda geração modernista, veremos que o stalinismo se aproveitará disso para criar uma verdadeira fissura entre este experimentalismo vanguardista e o que será a "arte engajada", limitando, desta maneira, muito das possibilidades criativas da própria classe.

Ao longo dos encontros que realizamos, uma série de dicotomias foram aparecendo e com elas, diversos questionamentos: Vanguardas Artísticas X Arte Tradicional; Nacionalismo X Internacionalismo; Arte Popular X Arte Acadêmica; Arte pela Arte X Arte Engajada; Arte Proletária X Arte Revolucionária Independente. Tais dicotomias carregam consigo uma série de debates políticos que atravessaram a produção artística modernista, cada uma defendendo, à sua maneira, como deveria ser a arte e, junto a esse debate, como deveria ser o projeto de país defendido neste momento de profundas transformações na sociedade.

2ª Geração

A crise de 1929, além de acertar em cheio a elite cafeeira que financiou a SAM, abriu um cenário político-econômico muito mais convulsivo no Brasil e é precisamente nesse momento que, em meio à repressão de Getúlio Vargas às liberdades de expressão e ao dogmatismo do realismo socialista stalinista, vemos algumas correntes artísticas se aproximarem do campo político de esquerda. Aqui, é mais do que urgente voltarmos para o questionamento feito por Roberto Schwarz:

"(...) socialismo e vanguardismo viam como caducas as formas do mundo burguês e quiseram apressar o seu fim. Por isso mesmo espanta que não tenha sido maior a sua associação e, sobretudo, que no interior da esquerda tenha havido tanta hostilidade ao espírito experimental, a ponto de se formar um desencontro histórico (...)."

Diante desse desencontro histórico é que nos chamou especial atenção artistas como a Pagu (Patrícia Galvão), que, atravessada pelos preceitos do Realismo Socialista e do experimentalismo do Modernismo de Primeira Fase, produziu uma obra única no cenário nacional que carrega justamente essas contradições: Parque Industrial.

Se apropriar dos debates e das inovações advindas desse momento histórico é travar uma batalha dilacerante com o presente, um presente em que a burguesia dita através da Indústria Cultural os pensamentos e os prazeres alienantes das massas; um presente em que as ideias stalinistas voltam a aparecer no pensamento político de esquerda, em especial na juventude, como uma nostalgia do que um dia o aparato burocrático stalinista teria feito pela revolução, quando na verdade seu único papel foi o de trair a classe trabalhadora internacionalmente e afundar o estado operário até a restauração capitalista. Por isso, buscar debater arte desde uma perspectiva permanentista, da Teoria da Revolução Permanente de Trótski, é realizar um acerto de contas com a história, e limpar a cara do socialismo em relação à liberdade e à independência da arte que sempre fizeram parte da sua tradição marxista.

Anita e o Desenvolvimento Desigual e Combinado

Com o objetivo de compreender mais profundamente os elementos que deram base para a Semana de Arte Moderna, dedicamos o primeiro encontro do nosso esquenta para analisar a exposição que pode ser vista como sua ante-sala, seu estopim político e criativo: A Exposição de Pintura Moderna - Anita Malfatti, realizada em São Paulo, entre 12 de dezembro de 1917 e 11 de janeiro de 1918.

Com 8 quadros em óleo sobre tela, Anita escandalizou a crítica e aglutinou em torno de si ferrenhos defensores, que posteriormente seriam os idealizadores da Semana. Sua arte reapresentou um ponto de inflexão importantíssimo no Brasil, onde não era mais possível ignorar as inovações estéticas das vanguardas: a sua clara inspiração no expressionismo alemão para retratar os mais oprimidos e explorados de sua terra natal (Mulheres, Negros, Idosos, Imigrantes e Operários) era evidente.

No encontro, o aspecto mais discutido foi que percebemos tanto na crítica feita à sua obra, seja ela positiva ou não, quanto na produção em si, uma espécie de simbiose de elementos muito avançados para o seu tempo, com outros, contraditoriamente, demasiadamente atrasados. Esse conflito, entre o novo e o velho, o progressista e o reacionário, o avançado e o superado, estão no DNA do Brasil enquanto um país da periferia do capitalismo. A modernização vivida naquela época, principalmente em São Paulo, carregava consigo (e, devido à lógica do capitalismo em sua fase imperialista, necessariamente deveria ter sido assim) o que havia de mais atrasado no nível econômico, cultural, político. A isso, Trótski deu o nome de Desenvolvimento Desigual e Combinado.

Se pegarmos uma declaração de Mário de Andrade em defesa da promissora pintora que fora brutalmente atacada por Monteiro Lobato na crítica "Paranóia ou Mistificação”, cujo seu conservadorismo chegou a relacionar as experimentações artísticas de Anita a deficiências mentais, poderemos ver que, mesmo entre aqueles que apreciavam e defendiam sua arte como legítima, havia um descompasso teórico:

“Com efeito, educados na plástica “histórica”, sabendo quando muito da existência dos impressionistas principais, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita, que em plena guerra vinha nos mostrar quadros impressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam O homem amarelo, A estudante russa, Mulher de cabelos verdes. E a esse Homem Amarelo de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima... Éramos assim.”

Ou seja, para expressar sua mais sincera admiração às pinturas de vanguarda que quebravam com a norma (que na realidade eram mais propriamente expressionistas do que cubistas), Mário se utiliza de uma forma poética que representava justamente a tradição, a não subversão, o conservador: o parnasianismo.

A Mulher de Cabelos Verdes, 1915, de Anita Malfatti
Óleo sobre tela, c.i.e.
51,00 cm x 61,00 cm
Coleção particular

Também demonstrando esse descompasso, é interessantíssimo ver o que a professora Neide Rezende aponta em seu livro “A Semana de Arte Moderna” sobre um comentário feito também por M. de Andrade sobre o quadro “A Mulher de Cabelos Verdes”.

“Num comentário a um dos quadros expostos, Mulher de cabelos verdes, Mário pergunta se os cabelos verdes não sugeririam o passar dos anos... Não podiam ainda entender que a arte traduzia na própria forma o seu conteúdo, que a ruptura com a concepção do natural pressupunha uma ruptura com o seu código.”

Tropical, 1917, de Anita Malfatti
Óleo sobre tela, c.i.e.
102,00 cm x 77,00 cm
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil
Reprodução fotografica Romulo Fialdini

Outro ponto profundamente debatido no encontro, foi o quanto, no exercício de trazer as propostas da Europa, como por exemplo a estética expressionista, para representar o Brasil, houve dissonâncias. O quadro claramente mais distante, não só do expressionismo, mas também das próprias pinturas organizadas na exposição, é o "Tropical". Confeccionado 2 anos depois dos demais, "Tropical" traz uma negra/ indígena segurando uma cesta de frutas em meio a palmeiras.

Sendo a única retratada trabalhando, somos perfurados pelo seu olhar cansado, marcado pelo Sol cuja cicatriz do trabalho agrário não se deixa confundir no corado em baixo das retinas. Como se fosse um cartão postal do Brasil às avessas, vemos todos os elementos que compõem o imaginário estrangeiro do que seria o “país tropical abençoado por Deus” radicalmente subvertidos. Seus traços menos deformados e a impossibilidade de encaixar a imagem de uma negra trabalhadora na estética europeia talvez expressem justamente o quanto o racismo coloca em cheque toda a hipocrisia demagógica que a burguesia tentou exprimir, escondendo a desigualdade estrutural do capitalismo nos ideários da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade. Na "falha" formal, notamos o quanto a realidade do setor mais oprimido no Brasil, as mulheres negras e indígenas, olha para as mentiras cínicas da elite e responde com olhos que dizem "a mim você não engana".

Mário e o Triunfalismo do Atraso

Já no segundo encontro, decidimos encarar o coração deste esquenta e adentrar na produção exposta durante a Semana de Arte Moderna. Elegemos o poeta Mário de Andrade como nosso foco de análise, e seu poema, "Paisagem Número 1", presente no primeiro livro de poesia moderna do Brasil, "Paulicéia Desvairada", foi o ponto de partida das discussões:

"Paisagem No. 1

Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento ...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca."

É curioso ver como o verso de abertura do primeiro poema do primeiro livro de poesia moderna do Brasil, "Minha Londres das neblinas finas!", é, nos parâmetros métricos poéticos, um decassílabo camoniano! Mais uma vez notamos, agora a partir da formalização estética, a simbiose de formas inovadoras com formas arcaicas.

Para além dos fortes contrastes (verão/ neve; alegre/ triste) que nos lembram a questão do Desigual e Combinado, nos chamou especial atenção a forma como o poema funciona do meio para o fim. A partir do momento em que aparecem as figuras do São Bobo e do guarda civil, uma atmosfera violenta se instaura. Há uma prisão e um sentimento de tristeza se apodera do eu lírico. Todavia, nas estrofes seguintes, há uma reviravolta e o que prevalece são um otimismo e uma felicidade que superam a tristeza anterior. Logo, vemos que existe uma percepção das mazelas que afligem aquela São Paulo das neblinas finas, mas, ao invés de encarar isso como um infortúnio, é visto como uma virtude, algo a ser celebrado. Acerca disso, Roberto Schwarz abriu uma reflexão em seu artigo "Nacional por Subtração":

"Na década de 1920 o programa pau-brasil e antropofágico de Oswald de Andrade também tentou uma interpretação triunfalista de nosso atraso. A dissonância entre padrões burgueses e realidades derivadas do patriarcado rural forma no centro de sua poesia. Ao primeiro dos dois elementos cabe o papel de veleidade disparatada ( Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia ). O desajuste não é encarado como vexame, e sim com otimismo aí a novidade , como indício de inocência nacional e da possibilidade de um rumo histórico alternativo, quer dizer, não-burguês. Este progressismo sui generis se completa pela aposta na tecnificação: inocência brasileira (fruto de cristianização e aburguesamento apenas superficiais) + técnica = utopia. A ideia é aproveitar o progresso material moderno para saltar da sociedade pré-burguesa diretamente ao paraíso. O próprio Marx na carta famosa a Vera Sassulitch (1881) especulava sobre uma hipótese parecida, segundo a qual a comuna camponesa russa alcançaria o socialismo sem interregno capitalista, graças aos meios que o progresso do Ocidente colocava à sua disposição. Neste mesmo sentido, ainda que em registro onde piada, provocação, filosofia da história e profetismo estão indistintos (como aliás mais tarde em Glauber Rocha), a Antropofagia visava queimar uma etapa."

Essa visão triunfalista do atraso brasileiro é algo que pode ser visto em outras áreas das ciências humanas, uma vez que, inclusive, o modernismo foi um movimento que encontrou expressões também na política e na sociologia. A tese da Democracia Racial de Gilberto Freyre carrega muito desta concepção, dado que fez uma análise positiva da opressão racial, defendo que éramos um país miscigenado e livre de racismo. Mário não nega a existência das problemáticas sociais, porém as encara como muletas que podem catalisar o nosso avanço, apostando todas as suas fichas no desenvolvimento industrial para solucionar as contradições sociais. Ao perceber futuramente o fracasso do seu projeto, o poeta fará uma autocrítica duríssima do movimento modernista do qual foi o principal teórico.

Veja mais sobre Mário de Andrade em: Falando em Marx #16: Mário de Andrade

Pagu entre o realismo socialista e a estética do modernismo paulista

Para refletir sobre o que veio depois da Semana de Arte Moderna, elegemos uma escritora que entoou um canto silencioso e silenciado, cuja voz marginalizada adquire valor político indispensável para resgatar as implicações libertadoras da arte: Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, na sua vida militante e na sua produção artística (elementos indissociáveis) batalhou fervorosamente pela liberdade e independência da arte defendidas por Breton e Trótski no Manifesto da F.I.A.R.I.

Há também 100 anos da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), faz-se necessário aqui recapitular rapidamente a linha que a Terceira Internacional de Stalin adotou para a arte. O Realismo Socialista, modelo estético exportado do Kremlin, defendia que as produções deveriam negar os novos experimentos estéticos das vanguardas, adotando somente a forma realista, com a desculpa de que a classe trabalhadora não entende o cubismo, futurismo, expressionismo e etc, e que esses negariam a realidade. Além disso, os enredos deveriam ser construídos de tal forma que fosse óbvio, pela classe social das personagens, saber quem era o vilão (burguês) e quem era o herói (trabalhador), sempre com descrições idealizadas do proletariado, sendo esses homens, fortes e de índole inquebrantável.

Essa orientação era sustentada ideologicamente no que a linha stalinista entendia por “cultura proletária”, que significava a negação de toda a arte produzida até então pela humanidade, pois seria uma arte burguesa, e a imposição de um modelo artístico específico, rígido e panfletário. Já o entendimento de Trótski do que seria essa “arte proletária” é bem distinto:

“Termos como literatura proletária e cultura proletária são perigosos quando comprimem artificialmente o futuro cultural no quadro estreito presente, falseiam as perspectivas, violentam as proporções, desnaturam os critérios e cultivam de modo muito arriscado a arrogância dos pequenos círculos[...] Se rejeitamos o termo ‘cultura proletária’, o que fazer com o Proletkult? Convenhamos então que Proletkult significa ’atividade cultural do proletariado’, isto é, a luta encarniçada para elevar o nível cultural da classe operária. Tal interpretação, na verdade, não diminui em nada a sua importância.”

Logo, para o autor de “Literatura e Revolução", nunca se tratou de limitar a arte, muito pelo contrário! O papel do partido revolucionário após a tomada do poder deveria ser o de apresentar para as massas o conjunto da produção artística acumulada até então pela humanidade, fomentando as produções que surgiriam a partir daí.

Pagu foi militante abnegada do PCB e, mesmo depois de ter sido humilhada e expulsa do partido por ter falado em um ato, sendo acusada de "agitadora individual, sensacionalista e inexperiente" pela direção, por orientação de uma amiga do partidão, escreveu o livro "Parque Industrial" para mostrar que ainda se orientava pela revolução e queria voltar a militar. Quando desenvolveu a obra "Parque Industrial", portanto, Pagu ainda acreditava na linha stalinista (o que mudará após a sua ida a URSS e a constatação da existência da pobreza no estado operário, enquanto a burocracia gozava de profundos privilégios) e desejava escrever um livro panfletário nos moldes do realismo socialista. Todavia, sua experiência anterior com o modernismo da primeira fase e com o experimentalismo estético, além do seu espírito indomável e questionador, fez com que algo único nascesse. "Parque Industrial" é uma obra que está justamente na tensão entre essas diferentes concepções artísticas e acaba por expressar ambas nas suas páginas.

"A criação de cenas aparentemente soltas, com proveniências literárias que remetem à interrupção brusca entre situações, dá-se junto à busca condensada por caracteres humanos em objetos inanimados como máquinas (componentes estes que remetem aos textos dos futuristas); tais elementos coexistem com a intenção realista" (MACHADO, Afonso, Modernidade e a Estética do Credo Vermelho)

Desta forma, Pagu, juntamente a Mário Pedrosa - um importante crítico literário brasileiro e dirigente da LCI, Liga Comunista Internacional - figuram como personagens fundamentais na preservação dos fios de continuidade do trotskismo no campo artístico, por terem questionado e rompido com os dogmas e as rédeas que o stalinismo queria impor.

Veja mais sobre Patrícia Galvão (Pagú): [PODCAST] 048 Feminismo e Marxismo - Lutadoras: Patrícia Galvão (Pagú)

Perspectivas para 2022

Esperamos que esse artigo cumpra o papel de ser um verdadeiro pontapé, fomentando uma reflexão crítica nesse ano em que esses debates estarão presentes em diversos espaços, com diferentes análises e interpretações. Acreditamos que muito mais deve ser estudado, analisado e proposto, e nós da Faísca queremos encampar esse desafio com todos que, assim como nós, desejam aprender com o passado para aguçar nosso olhar sobre o presente e assim não cometer os mesmos erros na construção do futuro.

Queremos construir uma juventude que seja a negação de toda a miséria que querem impor a nós: uma miséria econômica, uma vez que somos a geração que tem o desemprego e o trabalho precário como algo concreto e provável; uma miséria ambiental, quando o desequilíbrio com a natureza reina e somos privados de conhecer os biomas do nosso próprio planeta por conta da devastação e das queimadas; uma miséria cultural orquestrada pela Indústria Cultural, na qual a massificação, a alienação e o consumismo são os ditames que ditam as regras; e uma miséria de sonhos. Nos deixem sonhar! E sonhar no sentido mais imperativo da palavra: aquele que sonha com os olhos abertos. O nosso sonho germina na necessidade científica de superação do capitalismo, sistema que não consegue dar conta das necessidades mais elementares da humanidade, como garantia de alimentos para todos, e que represa as nossas potencialidades pelo signo da propriedade privada. Basta! Destruir o capitalismo e construir o socialismo, eis a grande tarefa da nossa geração!


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