Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Apagão no Amapá e o caráter desigual e combinado do capitalismo brasileiro

Daphnae Helena

Apagão no Amapá e o caráter desigual e combinado do capitalismo brasileiro

Daphnae Helena

A população do Amapá está passando, nos últimos dez dias, por uma situação de desespero total. Treze dos dezesseis municípios do estado estão sem energia elétrica, devido as precárias condições na qual se encontravam os transformadores de uma subestação, geridas por uma empresa privada de capital espanhol. Foram dias sem energia, sem água, sem comida. O abastecimento elétrico voltou normalmente para os condomínios de luxo, enquanto nos bairros periféricos, trabalhadores, indígenas e quilombolas, seguem no escuro. A mídia tradicional silencia sobre o que está ocorrendo no Amapá. Uma situação como a que está passando os trabalhadores e a população pobre amapaense, nas proporções que estamos vendo, já teria se tornado escândalo na mídia nacional e internacional se tivesse ocorrido no eixo sul-sudeste do país.

A pouca repercussão que o caso vem tendo nas mídias não é desinteressada. Em primeiro lugar porque o projeto econômico de privatizações também é parte da agenda defendida pela mídia burguesa. Estes meios de comunicação, como a Rede Globo, que estão a serviço dos lucros de empresários e banqueiros nacionais e internacionais, fazem uma verdadeira campanha pela aprovação da agenda de ataques como a reforma administrativa e as privatizações. Em segundo, porque impera no país um pacto do regime golpista que abarca Bolsonaro, militares, Centrão, STF, Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e Rede Globo. O conteúdo desde pacto é avançar na obra econômica do golpe, jogando os custos da crise nas costas dos trabalhadores para garantir o lucro dos capitalistas. A situação que vive o estado do Amapá é expressão desse projeto de país do regime golpista.

O apagão no estado do Amapá não foi acidente, foi fruto da privatização que coloca o lucro dos empresários a frente da vida de milhares de pessoas. A empresa que era responsável pelo gerenciamento da subestação de energia é a Isolux Corsán, de capital espanhol. Essa empresa declarava problemas financeiros desde 2016 e, com a crise atual, entrou com pedido de recuperação judicial na Espanha e no Brasil. Para garantir os retornos de seus acionistas, a companhia se desfez de uma série de “ativos”. Entre eles, a participação que tinha na operação de energia do estado do Amapá, transferindo-a nesse ano para a Gemini Energy, uma holding controlada pelas gestoras internacionais Starboard Partners e Perfin.

A Isolux Corsán manteve por quase um ano os transformadores de energia em mau estado. No momento do apagão, dos três equipamentos que deveriam estar operando, apenas um estava funcionando corretamente, os outros dois estavam em manutenção e quebrado. Foi por isso que o incêndio em um dos transformadores deixou praticamente todo o estado do Amapá no escuro. Ao contrário do discurso utilizado no primeiro momento, de que o incêndio havia sido causado por um raio, as investigações descartaram essa hipótese.

Ironicamente, a empresa que assumiu o suprimento emergencial de energia foi a estatal Eletronorte, subsidiária da Eletrobrás. Em meio ao apagão, o secretário de desestatização do Ministério de Paulo Guedes, Diogo Mac Cord, foi a imprensa acalmar o mercado financeiro e garantir que a situação do estado não impacta no projeto de privatizações. O setor de energia, no qual opera a estatal Eletrobrás, é um dos que estão na mira da política de concessão ao capital privado, assim como o setor do petróleo com a venda das refinarias da Petrobrás.

A diferença na repercussão da mídia se deve a algumas razões. Além da já citada privatizações, tem peso também o fato deste ser o estado de origem de um importante ator nacional que é o presidente do Senado Davi Alcolumbre. A família Alcolumbre controla uma parte significa da economia e da política local. Além disso, os próprios protestos por condições básicas de sobrevivência e a brutal repressão policial se divulgados poderiam também amplificar o sentimento de revolta em outros estados.

Mas para além de cada uma dessas questões, a situação calamitosa da grande maioria dos municípios do estado amapaense nos leva a pensar também em elementos estruturais da formação do capitalismo brasileiro. O conceito desenvolvido por Trotsky de desenvolvimento desigual e combinado, ao analisar o processo de desenvolvimento capitalista dos países atrasados, submetidos às forças externas do capital imperialista nos fornece um importante instrumental para compreender a situação atual no extremo-norte do Brasil.

A crise do Amapá e o desenvolvimento desigual e combinado

Em pleno século XXI ocorrer um apagão que flagela a população de uma região de um país como o Brasil é uma demonstração cabal do desenvolvimento desigual e combinado, cuja política neoliberal aprofunda, e não moderniza como querem propagar seus defensores. Trotsky empregava o conceito de desenvolvimento desigual e combinado para explicitar que nos países de capitalismo atrasado, o desenvolvimento do país se dá de forma extremamente desigual. Como é feito de “fora para dentro”, ou seja, por uma força econômica externa que é a exportação de capital dos países imperialistas, essa associação do capital financeiro internacional com a burguesia nacional produz uma enorme desigualdade, inclusive territorial. São regiões modernas e avançadas – o que se traduz também em mais peso econômico e político- conectadas com os avanços tecnológicos, com mercado de trabalho desenvolvido, com presença industrial. Ao passo que outras são marcadas pela precariedade da infraestrutura de comunicação, por um marcado de trabalho pouco desenvolvido e com uma economia que permanece agrária. Mas este desenvolvimento desigual também é combinado, no sentido de que as estruturas sociais mais arcaicas convivem com o que existe de mais moderno num mesmo espaço.

O Amapá possui uma população de cerca de 838 mil pessoas, segundo os dados do IBGE. Este estado que se localiza no extremo norte do Brasil possui uma infraestrutura precária de comunicação via internet, com uma das piores banda largas do país. Além disso, não há comunicação terrestre com outros estados da federação, a comunicação com um dos estados mais próximos, o Pará, é feita pela forma de hidrovias. Com uma indústria pouco desenvolvida, a economia está baseada, fundamentalmente, na exploração mineral, em especial do ouro, que também é o principal produto de exportação do estado. O mercado de trabalho é marcado por um peso grande dos setores informais conta-própria – acima da média nacional-, ao mesmo tempo em que o setor empregado com ou sem carteira assinada é abaixo da média nacional.

Ainda, do ponto de vista econômico este estado, por fazer parte da Amazônia, está num dos centros dos interesses imperialistas no Brasil. A sua extensão territorial total é de 14,3 milhões de hectares, sendo que 10,5 milhões estão destinados para unidades de conservação ambiental, terras indígenas e quilombolas. O Bolsonaro quis fazer demagogia e se colocar como defensor da Amazônia, quando sabemos que o seu governo, apoiado pelos latifundiários do agronegócio, foi aquele que mais avançou com as queimadas na Amazônia apoiado por garimpeiros e grileiros. Bolsonaro está associado com esta burguesia brasileira, atrasada, débil e dependente da exploração da terra.

Como escrevem Mario Pedrosa e Lívio Xavier sobre a formação da burguesia e do estado brasileiro:

“A penetração imperialista é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições econômicas e as contradições de classe. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas a sua influência, comprometendo o seu desenvolvimento capitalista normal, não permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado. Por essa razão, a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam edificar uma superestrutura política e social progressista. O imperialismo não lhe concede tempo para respirar, e o fantasma da luta de classe proletária tira-lhe o prazer de uma digestão calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa a defesa do capitalismo. Daí sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e – em todos os planos – a sua covardia” [1].

A herança colonial e a extrema-direita

Essa é a herança reivindicada pelo Bolsonaro, de um país que foi construído pela brutal exploração e o assassinato dos indígenas e negros. No país em que o Bolsonaro quer autorizar a mineração em terras indígenas, no Amapá uma das terras nas quais querem avançar é a da reserva indígena Wajãpi, cujo líder foi assassinado a facada no ano passado. Esta terra possui reservas de ouro, além de outros minerais como nióbio.

Na herança colonial, de uma burguesia que nasceu no latifúndio e da exploração da mão de obra escrava e indígena, é que fica evidente os laços de classe que conectam a extrema-direita do Bolsonaro com os mais tradicionais partidos da direita do país, como é o caso do DEM do senador Davi Alcolumbre - que é também o mesmo partido de Rodrigo Maia, presidente da Câmara. A prática da família Alcolumbre no Amapá reflete a herança dos tempos coloniais dos “coronéis” brasileiros. O enriquecimento de vários de sobrenome Alcolumbre ocorreu pela via de roubo de terras públicas. Denúncias foram publicadas pelo The Intercept [2] que mostram a prática de grilagem realizada pela família, que deve 1 milhão de reais em multas para o Ibama. A grilagem – ou, o roubo de terras do Estado- envolve terras públicas ao lado dos rios, por exemplo, impedindo a atividade de pescadores. A repressão às atividades dos pescadores que estavam em áreas legais e públicas é feita muitas vezes com a própria polícia local, que reprime os trabalhadores e não fiscaliza o desmatamento ilegal. Além disso, esta família controla também os meios de comunicação do Estado com as filiais do SBT e da Bandeirantes.

Em meio ao caos que passou o Estado, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deu entrevista fazendo a cínica afirmação de que o mais afetado pelo apagão era o seu irmão, que está concorrendo à eleição como prefeito da cidade. As eleições burguesas iriam seguir normalmente, mas foram adiadas dias atrás. No entanto, o adiamento é apenas para a capital, Macapá, por conta dos protestos que prejudicariam o processo eleitoral. Ao mesmo tempo, pretensos partidos do progressismo como é o PDT que governo no estado, mostra a sua verdadeira política naquele estado, reprimindo com a polícia estadual os manifestantes de forma brutal e se associando com a burguesia reacionária e fazendo campanha para o irmão de Davi Alcolumbre.

De Bolsonaro a Davi Alcolumbre os laços da extrema direita e da direita ficam evidentes com esta burguesia semicolonial, débil, associada ao imperialismo e que diante da sua fraqueza tem que reprimir de forma brutal os trabalhadores, os quilombolas e indígenas. Uma resposta progressista para a situação que vive o extremo-norte do país é impossível de ser dada se unindo com este setor, caracterizado pelo seu reacionarismo e sua covardia. A grande conclusão política do conceito do desenvolvimento desigual e combinado, muitas vezes apagada nos debates acadêmicos, é que os países de capitalismo atrasado produzem uma classe trabalhadora forte, construída com a potência das empresas estrangeiras e do imperialismo, ao passo que a burguesia nacional é extremamente débil e dependente do capital imperialista. Por isso, as tarefas mais democráticas, como por exemplo, a reforma agrária, só podem ser levadas a frente pela classe trabalhadora. Cabe aos explorados, a classe trabalhadora, aos indígenas, aos negros quilombolas transformar a revolta em organização política, para mover a força necessária para vencer os ataques da extrema-direita e a direita no país.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1“Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” de 1931.
CATEGORÍAS

[#SOSAmapá]   /   [apagão]   /   [Amapá]   /   [Brasil]   /   [Teoria]

Daphnae Helena

Economista e mestranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp
Comentários