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SEMANÁRIO

Anasse Kazib, o operário agitador da companhia nacional ferroviária da França

Anasse Kazib, o operário agitador da companhia nacional ferroviária da França

Ferroviário sindicalizado na SUD-Rail, marxista e colaborador convidado do programa Grandes Gueules na RMC, Anasse Kazib multiplica intervenções notáveis tanto nos piquetes de greve quanto nos palcos de programas de TV. Debatedor volúvel e sem filtros, ele critica tanto a CNews como a France Inter, mas explica que não devemos “abandonar o espaço midiático”, correndo o risco de deixar as elites falando entre elas.

Publicamos entrevista realizada pelo diário digital Arrêt sur Images, da França, com o militante ferroviário Anasse Kazib, membro da Courant Communiste Révolutionnaire (organização irmã do MRT na França) e do diário Révolution Permanente. Extraído do original, publicado no dia 5/1/2020, "Anasse Kazib, une "grande gueule" made in SNCF"

Do megafone ao microfone, há apenas um passo. Pelo menos é nisso que se pode acreditar ao ver o percurso de Anasse Kazib. Este ferroviário de 32 anos passou de um sindicalista da SUD-Rail muito ativo no seu terreno de trabalho a convidado regular nos programas de TV. Várias vezes na LCI e na CNews, um dia no Balance Ton Post, uma vez no RT... Mas é sobretudo na RMC que os ouvintes escutam suas intervenções sobre uma ampla variedade de assuntos, desde a reforma ferroviária ou da aposentadoria até uma polêmica sobre o véu, os muçulmanos, o CICE (crédito de competitividade no emprego) ou o clima. Assim, ele ainda não era o convidado destaque no Grandes Gueules (GG) da RMC quando o Les Inrocks esboçou, em abril de 2018, o retrato "do trabalhador ferroviário e militante da SUD Rail e da NPA", "mais vermelho que vermelho". Naquela época, o pai de família, funcionário da SNCF Paris-Nord, assim como fora seu pai e ainda hoje são sua esposa e sua própria irmã ferroviárias, é notado por sua qualidade como "pilar da greve" na Gare du Nord contra a reforma que previa a abertura do SNCF à concorrência.

“PROLETÁRIOS, BURGUESIA, LUTA DE CLASSES...” ENTRAM NO DEBATE

Um mês depois desta publicação, em maio de 2018, ele fez seu primeiro ensaio altamente notado no programa GG. Em plena polêmica após as palavras do deputado do Les Républicains, Jean-Luc Reitzer, considerando que ele não era pago o suficiente, Anasse Kazib disparou ao convidado Charles Consigny: "Para alguém que monitora os ferroviários na saída do trabalho, eu te acho complacente com os parlamentares”. Toda a sua intervenção, para quem ainda é apenas um novato, recebeu os comentários mais elogiosos da produtora do programa e de seus dois apresentadores, Alain Marshall e Olivier Truchot, como ele conta ao Arrêt sur Images. Ela marca o início da colaboração no programa, na proporção de três vezes por mês, alternando com seu trabalho como ferroviário e o terreno que ele não abandona, encadeando de acordo com a atualidade confrontos e, portanto, rebuliços (aqui, aqui e aqui entre outros).

É este colunista/colaborador do Grandes Gueules e militante acostumado com as discussões velozes e saturadas desses programas quem recebeu um retrato brilhante no Le Parisien em 3 de janeiro de 2019, apresentando-o nos aspectos que deseja colocar em evidência. A do militante "marxista revolucionário" que coloca no centro dos debates "a miséria" e "o destino das gerações futuras", também falando da "radicalidade" que ele gosta nos Coletes Amarelos, lembrando brevemente sua amizade com um dos líderes do movimento, Jérôme Rodriguez. Suas intervenções na televisão se baseiam prontamente em um vocabulário marxista quase desaparecido das ondas de rádio e da televisão: "luta de classes", "proletário", "burguesia" etc.

Terrorismo Verbal

Este retrato surge alguns dias após um acalorado debate entre Anasse Kazib e a deputada do LREM [partido de Macron] Fadila Mehal. No dia 29 de dezembro, convidado para discutir aposentadorias na CNews, Anasse Kazib interrompe a eleita, dizendo que ela está fornecendo informações "falsas" sobre as contribuições. Ao ser interrompida, a deputada responde que "isso é terrorismo verbal". Kazib sai do set.

O vídeo viralizou e o confronto foi transmitido por alguns meios de comunicação como RT, Sputnik, Le Parisien. Kazib retomou o episódio em uma longa thread e dois vídeos no Twitter. "Eu digo duas palavras “CICE, ISF...” [Crédito de imposto pela competitividade e o emprego e Imposto sobre fortunas], eu tenho que responder a quatro pessoas ao mesmo tempo, elas querem que você cale a boca, um trabalhador só deve falar sobre salsichas e fundo de greve, a política é para os Énarques [formados na Escola Nacional de Administração]", escreve ele, observando que não cortou a fala de Mehal. Ele também acusa (veja o vídeo abaixo) Dominique de Montvalon, editorialista presente no set e ex-editora-chefe do JDD de "ódio de classe".

"Acusar-me de terrorismo verbal é muito grave, mas todos se concentraram neste ataque quando, pouco antes, Fadila Mehal disse algo pior do que isso, Kazib disse ao ASI. “Ela disse: ’Não intervenha no debate’". No entanto, para Kazib, é exatamente isso que as elites procuram. "Eles querem conversar entre si, mas eu estou no set e destruo ao vivo o discurso que Mehal planejou para as eleições".

“A extrema-direita: pior inimigo do mundo operário”

Portanto, não há qualquer chance do vigilante e sinaleiro da estação de triagem de Le Bourget (93) abandonar o espaço da mídia. Em entrevista à Arrêt sur Images, ele faz uma crítica sem filtros à mídia, àquelas em que ele ainda concorda em intervir e às que baniu, transitando constantemente entre os papéis de colunista e do militante sindical e político, convencido de que cada uma de suas intervenções "perturba" à direita e, especialmente, a extrema-direita, o pior inimigo, segundo ele, do "mundo operário". Ele também conta dos bastidores do Grandes Gueules, um programa que parece feito sob medida para esse debatedor volúvel e sem filtros.

ASI – Qual o seu percurso? Como você chegou à SNCF?

Anasse Kazib - Nada me predestinou a ingressar na SNCF, mesmo que meu pai fosse contratado de lá, vindo como trabalhador marroquino e mesmo que, a partir dos 18 anos, comecei a ter empregos sazonais lá. Basicamente, tenho um diploma como técnico colaborador de arquiteto, o equivalente a um techno bac [baccalauréat, diploma técnico de segundo grau], depois tentei um concurso para entrar na Escola Profissional de Artes Gráficas em Ivry, no qual eu passei. Mas a falta de dinheiro - o equipamento escolar é caro – e a falta de interesse me fez interromper meus estudos no segundo ano. Depois, trabalhei por três anos no administrativo de compras no setor de coleta de sangue, antes de me tornar um agente de controle de orientação na SNCF.

ASI – E o que te fez se sindicalizar tão cedo à SUD-Rail?

Anasse Kasib - Muito rapidamente, a gerência quis me designar para Amiens, o que não seria bom pra mim, principalmente porque minha esposa estava grávida e trabalha não muito longe de casa. Eu me opus três vezes e compreendi muito rapidamente que não é bom abrir a boca. Tive a sensação de que queriam me colocar pra fora. Mas tudo mudou quando eu conheci um delegado da SUD Rail. Contei a ele sobre o meu problema. Os membros do sindicato entraram imediatamente no meio e, de repente, a gerência mudou de tom comigo e finalmente admitiu minha recusa à transferência. Entendi, então, o peso que um sindicato pode ter para fazer valer seus direitos. Mas, a princípio, em 2013, entrei para a SUD Rail apenas como um agradecimento por sua intervenção. O verdadeiro gatilho veio com a reforma ferroviária de 2015 e a lei trabalhista conhecida como El Khomri, sob a presidência do Hollande. Eu havia votado no Hollande pela primeira vez e disse a mim mesmo que não! A política não é a escolha entre votar nos burgueses de esquerda ou na direita.

Anasse, dirigindo-se a uma coluna de grevistas em Paris

ASI- Então, você decidiu aprofundar seu engajamento?

Anasse Kazib - Sim, concorri ao cargo de delegado, em novembro de 2015, fui eleito na Sud Rail. Hoje, 50% dos agentes do meu setor são sindicalizados na Sud-Rail. Em 2017, uma greve “perolada” foi feita [termo utilizado para retratar greves parceladas em que os trabalhadores intercalam dias de greve com dias de trabalho normal] de janeiro a maio, e somente no mês de maio, passou a ser renovável por 32 dias, antes de assinar um protocolo de fim de conflito. Ganhamos a manutenção do emprego, um bônus de 1000 euros para agentes para o ano de 2017, criação de postos de trabalho e melhoria do gerenciamento.

ASI – Você também colabora com o site de informação de extrema-esquerda Révolution Permanente [site francês da rede Esquerda Diário] (NPA) lançado em junho de 2015, nome escolhido em referência à palavra de ordem de Karl Marx.

Anasse Kazib - Sim, porque eu sempre soube que o sindicalismo não era suficiente. Em 2017, enquanto organizávamos uma greve no Le Bourget, nenhuma mídia falou sobre ela, exceto o Revolução Permanente. Um repórter do Le Parisien veio. Ele nos perguntou qual era o impacto da greve para os viajantes e respondemos que "nenhum" porque é uma greve do transporte de carga. Ele então fechou o caderno. Não achou útil saber mais. Ele se contentou com uma nota (que a ASI encontrou aqui).

ASI - Como nasceu a colaboração com esse site?

Anasse Kazib - Durante o Nuit Debout [movimento social francês iniciado em 2016 contra as reformas trabalhistas conhecidas como Lei El Khomri] e no local de trabalho, conheci muitos camaradas do mundo operário. Ao conhecer os colaboradores da Revolução Permanente, comecei a lhes dizer de meu interesse pelas mídias e pelo marxismo. Eu, que não lia muitos livros, além dos obrigatórios na escola, fiquei impressionado com as obras de Marx, como O Capital, e as de Leon Trotski ou Antonio Gramsci. Eles então me propuseram a escrever para o site. Assim, escrevi artigos, editoriais e realizamos reuniões a partir do final de 2017. Para mim, o Revolução Permanente é uma política do real, da base, e não uma política da ENA [Escola Nacional de Administração].

ASI - Pouco tempo depois, em maio de 2018, você se tornou debatedor no Grandes Gueules da RMC. Como passou de um para o outro, entre esses dois extremos?

Anasse Kazib - Conheci o Grandes Gueules graças ao meu instrutor quando trabalhava no setor de coleta de sangue. Ele só via isso e eu realmente fiquei viciado imediatamente. De repente, fazia minhas rondas conectado na estação e acompanhava a todas as edições até o final do meu serviço. O que eu mais gosto é sobretudo a diversidade do programa e dos participantes. Futebol, política, questões da sociedade e até havia o "Lahaie, l’amour et vous" [emissão de rádio cujos temas abordados eram a sexualidade e as relações amorosas], tudo isso me agradava. Há liberdade total, fala-se sem filtro. Então, quando eles me propuseram de intervir regularmente como debatedor, eu aceitei.

ASI - Como você foi visto?

Anasse Kazib - Ouvinte, eu costumava fazer chamadas telefônicas para a transmissão ao vivo da Bourdin na BFM / RMC e, quando você faz uma boa intervenção, a produção guarda seu número de telefone para propor a você de intervir sobre outros assuntos. Em maio de 2018, a programadora e co-produtora do programa, Anaïs Sinsz, me disse: "Você estaria interessado em comparecer ao GGs para falar sobre sua carreira, o trabalho de ferroviário durante o quadro da semana Salvemos o serviço público?" Eu aceitei, mas me peguei defendendo a greve dos trabalhadores ferroviários. Após o programa, Anaïs me disse: "é fantástico, você pode falar sobre outras questões da atualidade?". Então, ela me fez passar por um teste com Charles Consigny, eu nunca tinha feito isso. Em seguida, recebi muitos elogios, até dos anfitriões Truchot, Marshall, que me diziam que eu tinha muita naturalidade e facilidade. Eu personifiquei o trabalhador, pai de família, jovem vindo da periferia, muçulmano, envolvido na vida associativa e sindical. Os outros, em geral, surgem do mesmo molde.

ASI - Precisamente, você não tem medo de estar preso a esse papel, uma espécie de vínculo, em um programa que controla as polêmicas em torno do Islã e da periferia?

Anasse Kazib - Nem um pouco. Com ou sem mim, é um programa muito popular. Eles não precisam de um vínculo para existir. Não conheço nenhum programa com um público equivalente, onde as pessoas falem sobre a ditadura do proletariado, da luta de classes, da fraude fiscal. Mas também de ecologia. Quando Pascal Canfin (ex-deputado europeu dos Verts agora LREM) foi ao programa, eu disse a ele que ele era um charlatão da ecologia. Cutuquei o anfitrião do France 2, Patrick Sébastien, que criticara o Balance ton porc [#metoo] em seu livro. No final, só intervi muito raramente em relação ao véu ou ao Islã, intervi muito mais sobre os coletes amarelos, por exemplo.

ASI - Você foi recentemente convidado pelos GGs para falar sobre o Islã depois de declarar, durante uma marcha contra a islamofobia em 10 de novembro, que "a SNCF havia demitido agentes que haviam recusado a dar um aperto de mão a mulheres ". (Um agente foi demitido por vários motivos, não apenas este, como observa o Check News).

Anasse Kazib - Sim, é verdade, o programa me convidou para falar sobre o assunto, e eu aceitei porque tornou possível esclarecer minhas observações que haviam sido mal utilizadas e recortadas. A extrema direita aproveitou a oportunidade para se juntar contra mim. Primeiro o Valeurs Actuelles e depois o Incorreto escreveram um artigo intitulado "Rumo à salafização do sindicalismo francês".

"Se eu comesse na mão da burguesia, talvez eu tivesse a Legião de Honra".

ASI - Essas acusações de "terrorismo verbal" seguidas pelos artigos do Valeurs Actuelles e do Incorrect indicam uma tensão em suas interações com seus interlocutores, como você explica isso?

Anasse Kazib - Percebo que com meus colegas sindicalizados a maneira de discutir é diferente. Diante de mim há muito nervosismo, sou constantemente solicitado a parar de gritar, criticam o tom da minha voz e sempre duvidam do que digo, por causa de minhas origens sociais e minha afiliação religiosa. Procuram o radicalismo. Nunca chamarão Martinez (secretário-geral da CGT) de fundamentalista católico. Eu sou "salafista" para o Incorrect. Mas, basicamente, o que essas pessoas odeiam acima de tudo é a extrema esquerda; a religião é apenas um nariz falso para distrair as pessoas. Se eu comesse nas mãos da burguesia, poderia ter a Legião de Honra. A esquerda paralisa a burguesia. O que os assusta é que explico a Patrick, meu irmão mais novo, no final da campanha, que estamos na mesma galera, colocamos a irmandade e a classe trabalhadora de volta nos holofotes, é isso que incomoda.

ASI - Nessas condições, você sente que suas palavras são escutadas nesses debates na televisão?

Anasse Kazib - Claro. Quando você diz às pessoas que não é Kader que fechou a Whirlpool, não foi Samira quem entregou a Legião de Honra à BlackRock, mesmo os mais estúpidos compreendem. Veja como os Coletes Amarelos fragilizaram as posições da extrema-direita. Hoje, o Rassemblement National [partido de Marine Le Pen] se localiza defendendo nossa greve para conduzir sua batalha política. Além disso, eu disse que não vou mais a nenhum programa se houver uma personalidade de extrema-direita, porque não quero passar por uma espécie de aliado deles. Não há inimigo pior, anti-trabalhador e anti-ecológico do que o Rassemblement National.

ASI - Como você pode afirmar com certeza que é escutado?

Anasse Kazib - Os grevistas venceram a batalha pela opinião pública em relação à greve. Veja a pesquisa mais recente do Odoxa (para Le Figaro e Franceinfo). Mais de 60% das pessoas apóiam a greve. Goste ou não, as pessoas assistem a TV. Você vai a bistrôs, kebabs, CNews e BFM passam em loop, as pessoas assistem. Se eles pertencem a Drahi ou a Arnault, não podemos ignorar isso. Ou deixamos falar de enormidades ou entramos na arena. Tudo é feito para que o cidadão não tenha tempo de se ocupar da política. Seria o melhor dos presentes dados às elites abandonar o espaço midiático e deixá-las discutindo entre si.

ASI - Isso significa que você vai em todos os programas?

Anasse Kazib - Não, eu fui uma vez ao Pascal Praud no CNews em 2018 e disse que seria a última vez. Eu não gosto desse personagem condescendente. Se suas palavras o desagradam, ele se torna paternalista. A produção corta os microfones e mudam o ângulo da câmera. Há passagens em que falei e o microfone não estava ligado, pensei que estava falando, mas na realidade não estava intervindo. Além disso, eles convidam apenas ativistas ultra-políticos como Elisabeth Levy.

ASI - Qual é a sua opinião sobre a mídia em geral?

Anasse Kazib - Percebo que há muitos programas em que você não pode dizer tudo. No Grandes Gueules, tenho total liberdade. Nunca há um interrogatório antes ou depois da transmissão. Nesse sentido, o programa é bastante singular, são expressas posições divergentes, mesmo as da periferia e de trabalhadores. Os canais de serviço público como a France Inter nunca me convidam ou a pessoas como eu. No entanto, tem o programa C dans l’air no France 5, que eu aprecio particularmente. Não o que foi apresentado por Yves Calvi, que coloco no mesmo nível que Pascal Praud, mas o apresentado por Caroline Roux e Axel de Tarlé. Os apresentadores incentivam os convidados a fornecer análises documentadas, de tal forma que até mesmo para um editorialista como Bruno Jeudy é completamente diferente quando ele intervém no set da BFMTV, onde ele é mais tímido, do que no France 5.


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