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EXPURGO NO GOVERNO CHINÊS | Algo cheira podre na Cidade Proibida de Pequim

A queda do intocável ex-chefe de segurança da China, sentenciado a prisão perpétua, é o triunfo mais importante da campanha de Xi Jinping contra a corrupção, atual presidente chinês, mas abre uma Caixa de Pandora na cúpula governante.

Juan ChingoParis | @JuanChingoFT

quarta-feira 17 de junho de 2015 | 00:00

Em 11 de junho o Primeiro Tribunal Popular Intermediário de Tianjin comunicava que Zhou Yongkang, ex-membro do todo-poderoso Comitê Permanente do Birô Político do Partido Comunista [PCCh] e ex-chefe do aparato de segurança interna do regime, foi condenado a prisão perpétua por receber subornos, abuso de poder e divulgação de segredos de Estado, num julgamento fechado e arcaico.

As imagens de televisão com o julgamento mostram a repetição como farsa dos julgamentos e arrependimentos típicos do stalinismo impostos no passado nos países mal chamados comunistas.

Vejamos a cena: “O presidente do tribunal, próximo, lê atentamente a sentença de prisão perpétua ao acusado Zhou Yongkang, a privação para toda a vida dos direitos políticos e o confisco de todos os seus bens. ‘Entende, acusado Zhou Yongkang, a sentença?’, bradou o juiz. ‘Sim’, responde o acusado, olhando para o chão. ‘Acusado Zhou Yongkang, você tem algo a dizer à corte?’ ‘Aceito o veredicto e não apelarei. Reconheço a existência dos meus crimes e que violei repetidamente as regras do partido”, declarou com voz tranquila. Vários crimes do qual era acusado poderiam resultar em pena de morte, mas comenta-se que Zhou, de 72 anos, recebeu clemência depois de confessar, mostrar arrependimento e ordenar aos parentes que entregassem a maior parte do dinheiro amealhado nos esquemas de corrupção.

Zhou Yongkang é o político de mais elevado grau a enfrentar os tribunais por traição em 1981, acusados pela esposa de Mao Tsé-Tung e outros membros do “Bando dos Quatro” que perseguiram os opositores políticos durante a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.

Uma vitória momentânea…

Lançando uma contundente campanha contra a corrupção, mas também contra a dissidência pró-ocidental, Xi Jinping vem conseguindo aumentar sua autoridade interna e ganhar relativa simpatia popular, o que pretende instrumentalizar para fortalecer o regime e o partido, que é uma peça fundamental.

A derrubada do chefe de segurança é acompanhada por várias expulsões de outros líderes que antes eram considerados intocáveis na China, entre eles alguns dos generais de mais alta patente do Exército de Liberação do Povo. Com milhares de funcionários do partido sendo investigados ou encarcerados nos últimos dois anos, não se pode duvidar da potência da mão dura de Xi.

Para alguns especialistas, representa, por sua vez, um passo importante na campanha nesses dois anos de Xi para desmantelar a facção política liderada pelo ex-líder do Partido Comunista Jiang Zemin. Ainda que oficialmente apenas ficou no cargo desde 1989 até 2002, Jiang e sua camarilha (incluindo Zhou) mantiveram o poder político e econômico sobre o partido e a nação por mais de uma década depois de Jiang se retirar da liderança. Defenestrar Zhou e sua vasta rede de aliados que dominava a província do sul-ocidental Sichuan, onde era o chefe do partido no setor estatal de petróleo, especialmente permite a Xi encaminhar uma grande reestruturação na estratégia da indústria petrolífera, nomeando novos presidentes nas empresas estatais de petróleo, no contexto das mudanças do mercado mundial e das reformas da indústria.

…mas com enormes riscos estratégicos

No entanto, no longo prazo, sua estratégia pode incrementar a instabilidade. A origem do regime chinês atual remonta ao que significou para a burocracia os anos caóticos da Revolução Cultural. Este movimento, iniciado como um confronto de tendências na alta cúpula e nos distintos setores da burocracia – no qual a fração liderada por Mao apelou às massas para pressionar o aparato estatal e o partido –, foi se transformando num conflito extremamente forte que implicou na mobilização de setores sociais fundamentais, os estudantes, os camponeses – em menor medida – e, essencialmente, no seu auge, os trabalhadores. Do ponto de vista da burocracia stalinista, este foi um fato muito traumático que colocou em risco o monolitismo do Estado e do PCCh, questionando seu domínio.

Logo após a morte do “Grande Timoneiro” [Mao] e o breve intervalo de confusão que se abriu, a ascensão de Deng Xiaoping, o verdadeiro pai das reformas, a burocracia conseguiu o novo consenso de que a única forma de sair deste período turbulento e garantir seu domínio era a manutenção do crescimento como base da estabilidade política. Este consenso pós-Revolução Cultural, que se mantém com altos e baixos até hoje, é o que permitiu o lançamento e posterior incremento das reformas pró-capitalistas.

Para a máxima direção, isso se refletiu no estabelecimento de uma direção comunista colegiada e consensuada. O atual reforçamento unipessoal de Xi Jinping rompe esta regra, mesmo quando ele implementa uma campanha para não aparecer à frente. Exemplo extremo neste momento, o julgamento de Zhou ocorreu a portas fechadas, depois do escândalo público que havia sido a queda de Bo Xilai, o antigo mandante na cidade de Chongqing que também caiu em desgraça, cujo julgamento em 2013 permitiu conhecer detalhes vexaminosos respeito do estilo de vida dos mais poderosos do regime.

Não menos importante, o presidente chinês quebrou outro tabu: não atacar um ex-membro da “Comissão Permanente”, a liderança efetiva do partido e do país. Com a condenação de Zhou Yongkang, ninguém da elite estará imune. Nem sequer o número um atual. Não é casual que a imprensa comece a falar que Xi tem se mostrado temeroso de assassinato. Assim, no início de março, num sinal de que temia por sua segurança, Xi substituiu rapidamente os altos funcionários do Escritório de Segurança Central do Partido Comunista e do Escritório Municipal de Segurança Pública de Pequim, responsáveis pela proteção de Xi e de outros líderes.

As peripécias e a luta literalmente de morte entre as diferentes frações do PCCh, relatadas no romance O homem de Pequim, do mestre do romance policial, o sueco Henning Mankell, estariam se tornando realidade?

Dito de outra maneira, nada disso acontece sem consequências para a sustentação do modo de transição de poder no interior do regime chinês. E, estrategicamente, o que acontece na cúpula é crucial: se romper ou fragmentar o reacionário consenso da elite, as grandes contradições do processo restauracionista podem emergir abertamente, seguindo a regra geral da história da China contemporânea, na qual os levantes sociais das massas se alastram pelas lutas dos de cima, porque os líderes rivais apelam – abertamente ou por baixo – ao apoio da população.

Apenas a ponta do iceberg

O fato de Xi se arriscar tanto na tentativa de, à maneira “maoísta”, relegitimar o Partido Comunista é uma expressão dos fortes sinais de decomposição que corroem e que retiram parte considerável de sua legitimidade perante as massas, colocando em questão o domínio da burocracia restauracionista.

Caso é que, apesar de implacável, a campanha de Xi contra a corrupção apenas tocou a superfície. A maioria das fortunas privadas acumuladas mediante atividades duvidosas permanece intacta. Nenhum dos “príncipes vermelhos” caiu.

Estes setores “ligados pelo sangue ou o matrimônio” aos altos dirigentes do partido e do Estado têm se aproveitado do sigilo bancário para criar empresas offshore ou aplicar os recursos adquiridos nos esquemas. É enorme o nível de fortunas deste setor burocrático transformado em burguês São correligionários do atual presidente Xi Jinping, do antecessor Hu Jintao, dos ex-primeiros-ministros Wen Jiabao ou Li Peng, mas também de ao menos quinze das maiores fortunas do país, de membros da Assembleia Nacional, generais e outros.

No âmbito das massas, a queda de um personagem tão poderoso como Zhou gera grandes expectativas num setor, enquanto em outro reina a indiferença devido ao descrédito do PCCh. Liu, um professor de escola pública na região de Xinjiang, expressando um sentimento geral, disse: “Nós, as pessoas comuns, queremos que o país continue pegando os ‘tigres’ e as ‘moscas’ para que todos os funcionários deixem de acreditar que podem abusar do poder impunemente”. Estas expectativas se chocam com a realidade de que provavelmente a condenação de Zhou Yongkang representa, possivelmente, o fim da fase mais crítica da campanha anticorrupção, pois a moderação se impõe para acalmar a vida política e os temores dos funcionários mais preocupados em salvar a própria pele do que em aplicar as urgentes reformas do modelo chinês numa transição ainda duvidosa.

A tentativa de Xi de impor mudanças por cima, sob o controle de um partido depurado, disciplinado e reforçado numa economia e numa sociedade complexas que transita por tempos difíceis – apesar da imagem triunfalista –, poderia gerar forças incontroláveis tanto no nível das massas como das elites, com reações que vão muito além dos desejos de Xi. Que a burocracia estude nestes momentos o período que levou à queda de Gorbachov para evitar esse perigo, ou o famoso livro “L’ancien régime et la Révolution”, de Alexis de Tocqueville, um estudo da sociedade francesa às vésperas da Revolução de 1789, demonstra, acima das aparências, onde estão as suas verdadeiras preocupações, e que por trás da indubitável potência da China se ocultam fragilidades.

Tradução: Val Lisboa




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