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CRÔNICA | “A vida se perde aqui”

terça-feira 18 de agosto de 2015 | 11:42

Semana passada o preço da passagem aumentou, de novo. Penso nisso, olho pro meu dia a dia e tantas outras pessoas. Como não ficar com raiva? Uma das questões que mais afeta, angustia, irrita, faz querer arrancar um por um cada fio de cabelo da maioria das pessoas que todos os dias sai de casa para trabalhar ou estudar – ou seja, a maioria das pessoas – é o pensamento diário “lá vamos nós, ao ponto de ônibus novamente”. Pode-se substituir “ponto de ônibus” por “estação de metrô”, a sensação é a mesma.

Característica marcante do trabalho precário, onde se encontra grande parte da juventude trabalhadora, dxs negrxs, das mulheres e os LGBT, é que a precariedade começa muito antes de bater o ponto, até mesmo para quem está começando a primeira jornada de trabalho. Há ainda os que já estão na segunda jornada.

A minha viagem antes de bater o ponto e assim de fato começar a precária jornada do dia leva cerca de duas horas, divididas em três ônibus, todos lotados. A jornada que na minha carteira de trabalho consta 6 horas, na verdade duram 10.

Duas horas. Quatro né, porque a gente precisa voltar pra casa depois. “A vida acontece aqui”, diz a campanha na traseira do busão. Na imagem, um jovem estudando. Achei uma grande palhaçada isso aí! Tão tirando com a minha cara. A vida se perde aqui, isso sim! Vão me dizer pra aproveitar essas horas e torná-las produtivas? Pro diabo os conselhos de vocês. Eu quero estudar sim, quero ler, quero tempo e condições pra isso. Mas tá difícil caber um livro no espaço que você e mais um, dois ou três disputam em pé. Isso além das pausas forçadas, pra pegar o próximo ônibus.

Foto da campanha do SETRA

Na estação, onde eu e mais muitas pessoas pegamos o último ônibus, rola uma fila para entrar nele. Às vezes a gente tem mesmo é que esperar pelo próximo. Mas é claro que o meu sistema de ponto não vai levar isso em consideração. Um dia o motorista, já sem conseguir enxergar muito e sem acreditar que ali ainda cabia mais alguém, arrancou enquanto uma mulher subia. Puxaram ela para dentro, mas sua bolsa ficou presa na porta. “Peraí motô, a moça ta presa! Pára motô, abre a porta!”, é o que se ouvia aos berros.

O ônibus para no ponto, todos descem correndo. Tem hora pra entrar e nenhum chefe ta interessado em saber se o ônibus quebrou, teve acidente, seu bairro alagou (ou ficou sem água!), ou qualquer razão que seja que justifique o atraso.

As horas, que em alguns dias voam e em outros custam a passar, sempre alcançam o horário de sair. Mas nem de longe isso é o fim do dia, nem pra quem mora perto, nem pra quem mora longe, ou pra quem mora em qualquer canto da cidade e qualquer cidade da região metropolitana. Menos ainda para quem ainda vai encarar a segunda jornada do segundo emprego, na madrugada. O ponto de ônibus fica na calçada quase inexistente, e as centenas de pessoas ficam no meio da rua (quando não chove, pois com chuva o ponto vira um riacho correndo abaixo). O ônibus chega e vai se jogando em cima daqueles trabalhadores, que igualmente se jogam para dentro dele. Os amigos se seguram pelas mãos, para que ninguém fique para trás. Aqui no ônibus também ninguém fica pra trás. Bem às vezes fica, mas é porque é a decisão mais sensata, mas que implica em mais longa espera e possivelmente perder o outro ônibus na estação. E quando o motorista abre a porta, todos aqueles “300” assumem o “rei Leônidas” que existe dentro deles e reproduzem uma cena de batalha espartana. Sério mesmo. Outro dia, um desses Leônidas deu um soco em outro para conseguir subir. Tem vezes que o motorista até desliga o motor, pois a sensação é que jamais irá parar de subir gente. Sabe aquela ideia de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço? Às vezes penso que o transporte público mais parece um centro de experimentação móvel de desafio das leis da física clássica.

E quando se é mulher... bom, aí, soma isso tudo ao assédio, ao medo de ser estuprada no ponto do último ônibus, já vazio e escuro numa rua deserta, ou até mesmo na rua da própria casa, nos últimos minutos dessa jornada. Soma isso tudo à angústia de deixar os filhos sozinhos em casa, e vê-los por poucas horas no dia. Soma isso tudo ao ter que acordar horas mais cedo, pois antes de tudo isso, há uma jornada extra de limpar a casa, fazer almoço, etc.

O que eu quero dizer é que parte fundamental que faz do trabalho precário um trabalho precário é o transporte precário. É uma das precariedades mais sentidas, sobre o que mais se fala, todos os dias. Não há um único dia em que os colegas não chegam reclamando do busão, e que pagar tarifas tão altas para frequentar aquele inferno móvel é completamente desumano.

E aí eles vem e aumenta a passagem! Mais uma vez! É a segunda vez em 6 meses que a passagem sobe aqui em Belo Horizonte. Agora ta 3,40, uma das tarifas mais caras do país. Mas foi uma galera pra rua, bastante gente, dizem até que foi a maior manifestação depois daquele famoso junho de 2013. E a PM dessa vez não deixou barato não, desceu o cacete, bomba, bala de borracha. Tocou um terror sem tamanho! Mas pegou bem mal, viu. Dois dias depois, outra manifestação! Triplicou, quadruplicou, sei lá, mas tinha até família na rua! É que o governador Pimentel disse que a repressão de dois dias antes tinha seguido o protocolo. Bom, se é esse o protocolo, então é também contra ele que temos que ir pra rua!

A juventude! Ah, a juventude... tem sede do novo! Tem sangue fervente correndo na veia. Aprendeu naquele junho lá que se a gente vai lá e questiona, e bota os caras na parede, a passagem pode baixar. E não é só isso que a juventude pode fazer não, a gente pode é muito mais! Depois daquele junho e daquela eleição super apertada ano passado, o governo só ta enfiando os pés pelas mãos no quesito confiança da população. Cada vez mais, por exemplo, o Pimentel, atual governador de MG que é do PT, mostra que não é diferente do que foi o Anastasia, do PSDB. E nenhum dos dois é diferente do prefeito Lacerda, do PSB. Ta mostrado, comprovado e carimbado com o selo repressão de qualidade.

Eu boto fé nessa juventude aí! “Que não foge da raia a troco de nada”. Que não quer que a vida aconteça dentro do busão, quer que a vida pare de ser perdida dentro do busão! Quer que a vida aconteça do lado de fora, na educação, na saúde, na cultura, no lazer. E não da pra gente confiar nesses políticos que estão no poder e nem na justiça que ta do lado deles. A gente baixou a passagem em 2013 quando foi pra rua, mas eles subiram depois. A justiça fala que é ilegal o aumento mas, uma semana depois, numa bela manhã, você entra no ônibus e lá se vão 30 centavos a mais!

E na real, o que eu realmente quero dizer é que há empresas e empresários lucrando com nossas vidas por horas em latas de sardinha. E tem o governo, que tira da nossa educação, da nossa saúde, da nossa aposentadoria, mas haja investimento em bomba pra impedir que isso tudo seja questionado, pra garantir os lucros daqueles empresários.

E cada dia tenho mais certeza de que da nossa vida, da nossa locomoção, do nosso transporte, quem entende somos nós, os usuários, os motoristas, os trocadores. A gente tem que acabar com essa jornada desumana, fazer o transporte deixar de servir para gerar lucros ao empresário. Quem tem que decidir e controlar o transporte público tem que ser os próprios trabalhadores e usuários. Porque cada vez que vejo meus colegas de trabalho assumindo o “rei Leônidas” e os 300 querendo entrar em um único ônibus, uma angustia toma conta de mim. Mas também me fortalece, porque tenho certeza de que essa crueldade que acontece no transporte público precisa acabar, e a gente pode e deve ter papel nisso! Nós, os jovens, a gente tem que estar junto aos trabalhadores e usuários do transporte, pegar toda essa raiva e a canalizar para a batalha espartana correta: temos que fazer cair por terra esse aumento da passagem! Chega de lucro pro empresário e busão caro e lotado pra população. O transporte público tem que ser de qualidade, tem que atender a toda população, e tem que ser controlado pelos próprios trabalhadores e usuários.

Iaci é estudante da UFMG e operadora de telemarketing


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