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CULTURA | A ressignificação mercantil do ser vaqueiro e da vaquejada

O dia 29 de agosto, foi instituído pela Lei 11 797/2008, como o Dia Nacional do Vaqueiro. Acerca das ressignificações dadas tanto à prática vaqueira quanto à sua mercantilização na festa da vaquejada trata o texto adiante.

José Ferreira JúniorSerra Talhada – Pernambuco

terça-feira 6 de setembro de 2016 | Edição do dia

O vaqueiro, fundamentação histórica

A prática da pecuária extensiva no Brasil Colônia, liberada pela Coroa portuguesa, em 1701, permitiu, além da interiorização das boiadas (porque o criatório de gado vacum somente poderia se dar a partir de um raio de oitenta quilômetros do litoral, uma vez que se verificava a incompatibilidade da convivência do gado bovino com a monocultura canavieira) o surgimento de um novo ator social: o vaqueiro.

Diante do absenteísmo patronal, a figura do vaqueiro se revelava importante. Dele partia as ordens para os fábricas, trabalhadores de importância inferior na hierarquia que se construiu na pecuária nordestina sertaneja, uma fração de uma camada social, pode-se dizer, um aspirante a ser vaqueiro.

Outro fator que perpassava de importância a figura do vaqueiro era a sua aspiração a ser fazendeiro. Ou seja, o desejo de ascensão social que, aparecia no seu imaginário como possível. A possibilidade de mobilidade social vertical ascendente se daria em decorrência da forma de pagamento recebido, a quatriação (a cada quatro animais nascidos, uma era do vaqueiro), o vaqueiro poderia, em determinado período de tempo, ser possuidor de seu próprio rebanho.

A possibilidade de ocupar terras devolutas somada à realidade de obtenção de seu próprio rebanho, tornava o sonho do vaqueiro em se tornar fazendeiro algo plausível. Ademais, caso contasse com a “sorte” (nascimento de maior número de fêmeas), o rebanho a se constituir seria ainda mais promissor, uma vez que sua multiplicação se daria em espaço de tempo menor.

As chamadas “apartações” eram o momento em que se definia o que era do patrão e o que era do vaqueiro. Em tese, era o momento do experimento do início da construção do desejo em ascender socialmente. Em tese, porque também havia a possibilidade de, antecipadamente, ficar acordado entre fazendeiro e vaqueiro a obrigatoriedade da venda, ao primeiro, daquilo que o segundo conseguisse ajuntar. Isso, por sua vez, obstaculizava ao vaqueiro seu projeto de ascensão social e, por conseguinte, prendia-o à fazenda, uma vez que, mesmo que houvesse a possibilidade da posse da terra (somente o usufruto, pois a propriedade era exclusividade da Coroa, até a Lei de Terras, de 1850, quando se principiou a comercialização da terra no Brasil e, com isso, a cristalização do latifundismo), faltar-lhe-ia o rebanho.

Essa forma de pagamento, material baseada em uma prática cultural, veio a sucumbir com a introdução da cotonicultura no Sertão, a partir do século XIX. O patrão (fazendeiro) passa a morar na fazenda. O vaqueiro passa a ser assalariado. Com a propriedade privada da terra e com o assalariamento do vaqueiro, torna-se impossível, a este, a manutenção da ilusão de ascensão social.

Agora, a jornada de trabalho continua nos mesmos moldes de quando existia a utopia de se tornar fazendeiro (de sol a sol), com a diferença de que o único ganho angariado seria o parco salário. Inicia-se a implantação da mais valia. Patrão, sempre mais rico, acumulando; vaqueiro, sempre mais pobre sendo oprimido e explorado.

Quando não se encontrava fixado às terras da fazenda, o agora vaqueiro / trabalhador (no sentido de recebimento de salário por uma jornada de trabalho) prestava serviços a outrem, como tocar boiadas de um lugar a outro e ou, sob encomenda, capturar, a partir de pagamento acertado, animais desgarrados dos rebanhos dos fazendeiros.

Vaquejada ontem e hoje

A transformação do vaqueiro em trabalhador assalariado veio acompanhada de outra ação: a ressignificação dada à festa da vaquejada.

A ação festiva chamada vaquejada consistia na demonstração de habilidade e coragem do vaqueiro que, sozinho, em dupla ou em grupo, empreendia ações de captura a animais na caatinga. Como proteção, o terno de couro, composto por gibão, perneiras, peitoral, chapéu e botas / sandálias. Como montaria, o cavalo.

Essa prática, nos dias atuais, quase em desuso, chama-se “pega de boi no mato”. Trata-se de evento previamente planejado, geralmente por uma família, onde são separados alguns animais, numerados e, depois de soltos, passado algum tempo, liberados são os vaqueiros, previamente inscritos, para empreender a pega desses animais. A premiação varia. Vai desde troféus e medalhas, passando por premiação em dinheiro e, por último, o próprio animal capturado.

A atividade foi privatizada e mercantilizada. Embora em muito se assemelhe à originalidade da ação, a promoção dessa festa atende ao desejo de obtenção de lucro de quem a promove, uma vez que, a premiação prometida é muito inferior ao dinheiro arrecadado com inscrições dos vaqueiros participantes e venda de bebidas e alimentos.

Afora essa intencionalidade de “resgate” da vaquejada em seus primórdios, há também, na contemporaneidade, outra festa nomenclaturada vaquejada ou, como costumam chamar alguns, Corrida de Mourão, onde se percebe, claramente, além da ressignificação da festividade, a ressignificação do ser vaqueiro.

Festejo elitizado, pois participar dele demanda significativa posse de capital (inscrição; transporte de animais; animais de alto custo; veículos caríssimos e etc.), a vaquejada se revela como espaço de um novo tipo de vaqueiro que, em relação ao anterior, à exceção da habilidade e da coragem, em nada se assemelha.

Trata-se de festejo midiático, verificado em circuitos. Em lugar da caatinga, uma pista de cento e sessenta metros de extensão, onde há uma faixa de quinze metros de largura. Ali, o vaqueiro, que tem ao seu lado um parceiro (o batedor de esteira), deverá derrubar o boi que, desde o mourão (local de onde partem boi e cavalos), é posto entre as duas montarias. A pontuação será marcada com o boi em pé, depois da queda, na faixa.

O vaqueiro atual, quase sempre é jovem, musculoso (porque pratica musculação e não porque resulte das lides diárias no campo) e possuidor de formação universitária. Sua vestimenta, quase sempre, é camisa polo e calça jeans, botas de cano curto e cinto, geralmente pertencentes a alguma marca famosa. Sobre a cabeça, quase não mais se vê o chapéu de couro, mas um boné, também de alguma marca. Ostentar é palavra de ordem!

Nos Parques ou Arenas de Vaquejada, o público é pontilhado de mulheres maquiadas, vestidas da chamada “moda vaqueira”, um estilo aproximado do country, visto nos rodeios norte-americanos. Participantes que sabem ali encontrar uma maneira de aparecer, uma vez que midiaticamente falando, a vaquejada é extremamente divulgada.

Uma análise da ressignificação dada à vaquejada e ao ser vaqueiro talvez possa se encaixar naquilo que Eric Hobsbawm e Terence Ranger chamaram de uma nova tradição inventada, que se verifica quando se percebe que a tradição em evidência não mais satisfaz aos interesses dos que a vivenciam.

Todavia, a constatação da grandeza que acompanha o espetáculo da vaquejada atual, talvez remeta à conclusão de que não se trata de uma construção substituta da vaquejada de antes. Embora porte consigo o mesmo nome, a atual festa de vaquejada pode ser considerada um nicho econômico significativo que atende à satisfação, dentre outras coisas, da indústria (roupas, calçados, cintos, botas, chapéus), que nesse festejar, encontra mercado consumidor recorrente.

Ademais, a promoção de vaquejadas, ações restritas a um grupo seleto de pessoas, também é possível de ser interpretada como algo planejado para ser consumido e, para isso, midiatizado ao extremo, como afirma a teoria da indústria cultural, preconizada pelos frankfurtianos, Max Horkheimer e Theodor Adorno. Essa terminologia aponta para a intencionalidade dos teóricos frankfurtianos citados em estabelecer diferenciação entre os termos cultura de massas e cultura popular ou produzida espontaneamente pelas massas. Uma cultura sob a égide do capital, industrialmente produzida para o consumo em massa.

O judiciário, em sua clara relação de classe, tem também outras causas que se relacionam com a importância econômica e o lucro. Tão significativa é a importância econômica da atual vaquejada que se encontra suspenso, no supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento sobre a constitucionalidade de uma lei que regulamentou a vaquejada no Estado do Ceará. A polêmica dividiu a Corte, cujo placar atual está empatado em quatro votos a quatro. Um pedido de vista do ministro Dias Toffoli adiou a análise do caso, que desde o ano de 2015 está em julgamento.

A ação, que busca estabelecer a proibição, foi proposta pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que sustenta em seu texto que a vaquejada, inicialmente ligada à produção agrícola, passou a ser explorada no Ceará como esporte e que laudos técnicos comprovariam danos aos animais. Se considerar a norma cearense inconstitucional, o STF criará uma jurisprudência que poderá proibir a prática em todo o País.

Os juízes contrários à proibição da festa usam um argumento duplo; o primeiro, que a vaquejada é uma manifestação cultural e, por isso, tem proteção expressa pela Constituição; o segundo, que corrobora com o que aqui afirmamos (ter a vaquejada se transformado em um nicho econômico), é a importância econômica da festa que, nas palavras do juiz, Gilmar Mendes, “Temos uma lei que considera os vaqueiros profissionais. Estamos falando de 200 mil empregos”. Discurso chantagista, em nome dos trabalhadores, para garantir o lucro dos capitalistas.

O ministro Dias Toffoli não tem prazo para devolver o caso ao plenário. Ademais, além dele, ainda faltam votar a ministra Carmen Lúcia e o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do STF. Sinaliza-se morosidade. Também é do entendimento de alguns juízes que, mesmo que se defina a proibição, a decisão pode ser inútil, já que a prática se trata de uma tradição no pais, mesmo hoje completamente mercantilizada, como foi apresentado.

Controvérsias à parte, percebe-se claramente que não há, por parte do STF, mesmo sendo os argumentos do Procurador da República plausíveis (maus tratos diversos aplicados aos animais, como choque elétricos, açoites e introdução, via anal, de mostarda e ou pimenta, para mantê-los irrequietos, além de lesões, algumas irreparáveis e que levam ao sacrifício do animal), visível intencionalidade de proibir a continuidade da vaquejada. Trata-se de mexer nos interesses de muita gente. Gente que lucra demasiado!

Independentemente do discurso do Procurador, em defesa dos animais, a cúpula deste judiciário faz parte também de uma casta, que vive com os mesmos privilégios dos políticos e que tem interesses também ligados ao governo, à oposição e ao capital.

Todavia, a proposta desta discussão é dar visibilidade a um trabalhador que, no transcurso da história, diante da transição de formas pré-capitalista para a capitalista de produção, foi quase que silenciado no discurso historiográfico. Ou seja, regido pela hegemonia de relações assalariadas, subexistem valores culturais que potencialmente poderiam, em outro campo de forças, contraporem-se à lógica do capital.

À guisa de conclusão

Na sociedade capitalista contemporânea, vaqueiro e vaquejada somente mantém as nomenclaturas de ontem. Uma prática inventada há séculos, hoje é reinventada e como reminiscências somente existem o boi e o cavalo. O vaqueiro? A caatinga? Não mais existem. Cederam lugar à pista e ao burguês endinheirado. Trata-se de mais uma prática cultural da qual se apropria o capitalismo.


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