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SEMANÁRIO

A nova cortina de ferro e a virada geopolítica

Juan Chingo

A nova cortina de ferro e a virada geopolítica

Juan Chingo

A enxurrada de sanções e medidas punitivas do Ocidente contra a Rússia está criando uma nova Cortina de Ferro. Confrontada com a aventura militar russa, a Alemanha deu uma grande virada geopolítica que é aproveitada por Washington para desgastar o Urso russo com o objetivo de isolar e se concentrar mais no Dragão chinês.

Uma nova cortina de ferro

Mais de um mês após o início da invasão russa à Ucrânia, a dinâmica estratégica dessa guerra está provocando uma profunda ruptura entre a Europa e a Rússia. Se faltava uma amostra, a última semana ampliou ainda mais a distância entre o Ocidente e a Rússia no nível mais próximo com a retórica estadunidense: o dos "direitos humanos". A ênfase da mídia no massacre de Bucha, atribuído às forças de ocupação russas, provocou um antes e um depois na reação da Europa.

A pressão dos EUA já está dando seus primeiros frutos. As principais chancelarias da Europa Ocidental confirmaram sua disposição de se rearmar massivamente, ou pelo menos alcançar os 2% do PIB que devem ser destinados ao orçamento de defesa, historicamente solicitado pela OTAN, ao mesmo tempo em que aceitam um isolamento da Rússia, também imaginando a aceleração de uma diversificação energética que já é em parte vista como inevitável (esta semana em Bruxelas iniciou o debate sobre um embargo de petróleo e gás; as repúblicas bálticas deixaram ou estão prestes a deixar de importar hidrocarbonetos da Rússia; o ministro da economia alemão disse que a Alemanha estava trabalhando duro para “criar as condições prévias e os passos para um embargo” embora – como já explicamos em relação ao gás – isso seja muito problemático neste país pelo menos a curto prazo). Para não falar do mais que previsível tom belicoso adotado pelos países do leste europeu, dispostos até a aceitarem milhões de refugiados em nome de um forte enfraquecimento do poder russo.

As declarações do chanceler russo, Sergei Lavrov, no início de março, assegurando que as sanções “são uma espécie de imposto sobre a soberania” da Rússia, lançada apenas pela “enorme pressão” dos Estados Unidos, mas que” ... essa onda de histeria vai passar, nossos parceiros ocidentais vão superá-la” [1], soam cada dia mais distantes, por trás dos apelos para aprovar mais sanções e para que sejam mais duras, numa crescente em que as últimas sempre superam as anteriores em volume e dureza. Esta enxurrada de sanções e medidas punitivas ocidentais contra a Rússia estão criando uma nova Cortina de Ferro.

Os resultados táticos no campo militar e, sobretudo, a duração do conflito entre um cessar-fogo e outro podem frear ou torcer essa trajetória, mas é difícil que a mudem. Sempre e quando a guerra estiver circunscrita ao teatro ucraniano, as sanções serão difíceis de serem derrubadas não apenas durante a guerra, mas também diante do estabelecimento de uma russofobia sistemática, um clima muito semelhante ao instalado contra os muçulmanos após o 11 de setembro e cujas consequências ainda estão sendo sentidas e até exacerbadas em vários países. A realidade é que cada vez mais a única certeza é a inexorabilidade da ruptura entre o Ocidente e a Rússia, a menos que haja uma mudança na liderança russa e se imponha um novo governo Yeltsin. Mesmo que parte das sanções tenha sido levantada com um acordo de paz na Ucrânia, é difícil prever um retorno à situação anterior a 24 de fevereiro nas relações entre ambos. Isso não significa que, com o passar dos anos, as potências ocidentais não poderão modular o grau de separação, mas nunca recuperarão o status quo ante.

Esta nova realidade geopolítica realinha todos os atores da Europa. Dos países do leste Europeu, especialmente os dois redutos pró-americanos no leste liderados pela Polônia e secundariamente pela Romênia, que aspiram ao posto de vanguarda atlântica e contam com o guarda-chuva militar de Washington. Seus ímpetos anti-russos são exacerbados pela Inglaterra, localizada mais do que nunca em sua decadência da qual o Brexit é uma expressão, como serva de Washington. Outros países com ambições de autonomia e grandeza, como é o caso da França, mas que de fato se subordinam ao plano norte-americano. E outros que, depois de dar uma virada histórica como no caso da Alemanha com o rearmamento, se perguntam para onde vão direcionar seu novo peso geopolítico, decisão que determinará o futuro da Europa nos próximos anos, senão décadas. Opções estratégicas difíceis no quadro de que em termos de paz econômica e social são os diferentes países europeus que depois da Rússia serão os perdedores desta guerra, elemento central que pode desencadear o desenvolvimento de processos revolucionários que mudem a dinâmica reacionária e belicista que está se impondo no Velho Continente. O que está claro é que uma era está terminando, que o relativamente pacífico pós-Guerra Fria na Europa chega ao fim (se esquecermos os antecedentes das Guerras Balcânicas, especialmente a intervenção imperialista no Kosovo em 1999) e a instabilidade da economia, da geopolítica e da luta de classes está voltando para ficar no coração da Europa.

Rumo à presença de botas alemãs na Europa Oriental?

A agressão da Rússia contra a Ucrânia está destruindo a aparência de neutralidade no concerto das nações europeias. Tal como a Suécia, e mais que ela, a Finlândia prepara-se para formalizar o seu pedido de adesão à OTAN. Uma sondagem recente indica que 62% gostariam de aderir à OTAN. Enquanto isso, as forças armadas finlandesas e suecas estão quase unificadas. Juntamente com a Noruega e a Dinamarca, membros da OTAN, cumprirão uma dupla função para Washington: conter a Rússia na frente Ártico/Báltico e desencorajar os impulsos chineses em direção à Rota da Seda nórdica.

Mas o mais importante está em outro lugar. O rearmamento da Alemanha é uma grande mudança geopolítica. A quarta maior economia do planeta, depois dos Estados Unidos, China e Japão, também se tornará a terceira potência militar depois dos Estados Unidos e da China e a primeira entre os europeus. A lista de despesas inclui um aumento considerável de munições, mais de uma dúzia de caças-bombardeiros e helicópteros para transporte de tropas, etc. A Alemanha quer até se equipar com um escudo de mísseis balísticos do tipo Arrow, a joia das armas de Israel, que em sua versão mais moderna teria até o objetivo de interceptar mísseis hipersônicos. E assim em todos os campos de armamento. O cardápio alemão atualmente não inclui a bomba atômica, que, no entanto, começa a ser discutida em Berlim. A autolimitação das missões de paz é coisa do passado.

É verdade que leva algum tempo para passar isso do papel para a prática, principalmente banindo o marcado antimilitarismo que ainda permeia a sociedade alemã em todos os níveis, mas do ponto de vista do governo o caminho está marcado.

Embora permaneça o mais atrasado em anos de geoeconomia, especialmente sob a chancelaria de Merkel, o processo de elaboração de uma estratégia de segurança nacional começou em larga escala. Abolida do vocabulário público há setenta anos, a geopolítica e seus derivados ressurgem no raciocínio de analistas e oficiais alemães. Os obstáculos são imensos. Por um lado, administrar a relação com a França, ultrassensível ao grau de armamento do outro lado do Reno, ofendida pela opção de Scholz de comprar caças F-35 estadunidenses e, acima de tudo, invejosa de perder sua primazia militar no continente. Em segundo lugar, deve não alarmar indevidamente os Estados Unidos e suas suspeitas históricas e recentes contra a Alemanha, integrando a Bundeswehr ao longo da avançada frente oriental, onde os atlantistas estão concentrando seus recursos conjuntos para evitar uma invasão russa. Mas o obstáculo mais importante é a trágica memória da invasão alemã na Rússia durante a Segunda Guerra Mundial. Passar da Ostpolitik, a constante do último meio século da política externa alemã, para o destacamento militar contra Moscou não é nada simples. Mas se algum sentido tem o rearmamento massivo alemão, é que Berlim assuma um papel de potência dirigente, com o apoio dos Estados Unidos, no setor continental mais quente. Isso significa que em um futuro não muito distante, o atrito entre Moscou e Berlim será inevitável e provavelmente duradouro. Alguns analistas já evocam essa especial responsabilidade alemã. Ulrich Speck, um conhecido analista do German Marshall Fund em Berlim, afirma: "A guerra aberta contra a Ucrânia deixou claro onde está o centro de gravidade da política externa e de segurança alemã para os próximos anos: na Europa Central e Oriental." O foco está na Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia, mas também na Geórgia e na Armênia. A agressão de Putin "obriga-nos a ter uma presença muito mais forte na região". E acrescenta enfaticamente: "... esperamos que a Alemanha traduza finalmente sua força econômica em força militar, para criar um contrapeso anti-russo". Acima de tudo, "a Alemanha deve aprender a se reconectar com o poder, especialmente o poder militar". A conclusão é clara: "Se um Estado europeu importante como a Alemanha desistir de definir seus interesses e agir em termos de política de poder, atores agressivos como a Rússia preencherão o vazio" [2].

A nova parceria anti-Rússia dos EUA e da Alemanha com a mira de Washington em Pequim

A aventura militar de Putin mudou as coordenadas geopolíticas entre Washington e Berlim, ambos percebendo que precisam um do outro e o primeiro reconhecendo a importância de uma Alemanha forte e determinada, que se situe ao lado das nações ocidentais como potência geopolítica.

A estratégia de dupla contenção da China e da Rússia pelo medo de que Berlim tivesse uma política autônoma para o Leste impediu por anos tal convergência, contradição que permaneceu -com momentos de maior aproximação e maior atrito como a guerra do Iraque em 2003- desde a unificação da Alemanha em 1990. Impedido de aplicar uma política chamada de Nixon ao contrário usando a Rússia contra a China devido ao medo alemão, Washington agora busca neutralizar o parceiro mais fraco do eixo eurasiático completando a dissociação entre Rússia e Europa já iniciada em 2014. Esta opção tinha sido difícil até ontem, como demonstrou o caso Nordstream (o gasoduto direto entre a Rússia e a Alemanha), fortemente defendido pela chanceler Merkel, mas repentinamente imposta pela agressão russa à Ucrânia.

Em termos de equilíbrio planetário, os Estados Unidos procuram esgotar a Rússia até convertê-la em um parceiro diminuído da China. Para isso, Washington precisa taticamente de um verdadeiro parceiro na Europa, pois não pode mais garantir ao Velho Continente a mesma segurança que no passado. Isso não significa que Washington sairá do terreno europeu, muito pelo contrário, como mostra que a ideia de construir bases permanentes nos países do Leste Europeu que são membros da Aliança Atlântica está avançando – onde antes da anexação russa de Crimeia em 2014 não havia tropas de combate da OTAN – mas precisa de parceiros com peso econômico, geopolítico e militar que só o imperialismo alemão pode oferecer. Dessa forma, poderia conter Moscou e controlar as ambições turcas no sul da Europa e no Mediterrâneo, enquanto os Estados Unidos se concentram no Indo-Pacífico junto com seus aliados regionais. Ambos os lados cooperariam economicamente para estabelecer cadeias de suprimentos fortes e seguras, independentes dos rivais sistêmicos da chamada ordem liberal. Uma politização ou geopolitização da “globalização” capitalista que pode mudar agora se em profundidade as características dessa conquista capitalista das últimas décadas. O fato de que os principais diplomatas do Japão, Coréia do Sul, Austrália e Nova Zelândia participaram da reunião dos ministros dos Relações Exteriores da OTAN pela primeira vez nesta semana é uma evidência do plano de longo prazo de Washington. A união dos aliados do Atlântico com os do Indo-Pacífico pode ser muito útil, se – ao que parece – o objetivo é enfrentar a Rússia e a China ao mesmo tempo.

Se tudo isso é realizável, se os custos são imensos e os perigos e riscos não são menores, é outra questão e nem um pouco menor, entre elas que uma Rússia encurralada faça uso de armas nucleares táticas, estendendo o conflito e dividindo novamente os parceiros ocidentais. Em outro sentido, podemos duvidar que a nova parceria entre os EUA e a Alemanha contra a Rússia resistirá ao teste do tempo, devido à desconfiança histórica do primeiro em relação a uma potência europeia que é rival dos Estados Unidos desde sua unificação no final do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial. A história do sistema imperialista mundial ao longo do século XX prevê o contrário. Isso sem levar em conta a imprevisibilidade política do próprio Estados Unidos – um dos fatores mais desconcertantes da inédita situação internacional – não apenas nas eleições de meio mandato que se aproximam, mas também em 2024, quando uma nova presidência de Trump pode ser uma possibilidade. Também não podemos deixar de ver que a unidade redescoberta do Ocidente não significa que este estenda sua presença a todo o mundo periférico e semicolonial, onde a influência da China é maior do que na Europa, países que reúnem a maioria da população mundial cujos governos não querem ficar do lado dos russos ou dos estadunidenses. Em particular, a rejeição da Índia – que para Washington é um pivô essencial da contenção anti-China – e da África do Sul às resoluções dos EUA condenando Moscou na Assembleia Geral da ONU, é uma pílula difícil de engolir para o grande poder do norte. E, por último, mas não menos importante, a provável crise econômica e o espectro da luta de classes que percorre todo o mundo, especialmente os países semicoloniais, devido ao aumento dos preços das matérias-primas, alimentos e produtos energéticos, após as falhas que a economia mundial já mostrava durante a pandemia e sua recuperação. Na Europa, a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, pediu aos cidadãos que encontrem "resistência em tempos de incerteza" e alertou que a guerra na Ucrânia não é apenas uma tragédia humana, mas "também um grande choque econômico, devido à nossa proximidade com a Rússia e à nossa dependência do seu gás e petróleo”. Isso é sentido particularmente forte na Alemanha. Na potência capitalista outrora estável, os preços ao consumidor subiram 7,3% até março de 2021, a maior taxa de inflação registrada em mais de 40 anos, comparável apenas aos picos da década de 1970. Mas a primeira coisa para deter as profundas forças belicistas que foram postas em movimento, é ter clareza sobre o plano estratégico do inimigo e os planos para a guerra atual que estão sendo desenvolvidos mais em Washington do que em Moscou.

Usando uma metáfora, poderíamos dizer que ver a “árvore” da guerra na Ucrânia separada da “floresta” global é o que está por trás da adaptação à OTAN de grande parte das organizações de esquerda. Talvez o caso mais emblemático dessa posição seja o de Gilbert Achcar, com quem já polemizamos. Em uma carta recente a Alex Callinicos, ele afirma:

Mas acontece que a resistência ucraniana quebrou o mito do todo-poderoso exército russo, e talvez vá mais longe e derrote completamente os objetivos imperialistas da Rússia (sempre dentro dos limites estabelecidos pelo enorme desequilíbrio de forças). E acho que isso fortalece nosso argumento antiguerra frente a crescente tendência de inflar a importância da ’ameaça russa’ como justificativa para o aumento dos gastos militares e a expansão da OTAN.

Depois do que acabamos de escrever, um pensamento como tal é, no melhor dos casos, pura ingenuidade (algo que duvidamos de um intelectual importante como Achcar) ou, no pior, uma mera adaptação à OTAN. Mas no mundo de hoje, onde a guerra e as crises estão retornando violentamente, fazer economias da revolução proletária para evitar o Armagedom bélico e até mesmo nuclear não é nem um pouco uma alternativa realista. O lema de Rosa Luxemburgo Socialismo ou Barbárie, nunca foi tão atual.

Este artigo, publicado originalmente em espanhol, foi traduzido ao português por Angelo Delazeri.


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FOOTNOTES

[1“Lavrov expects solution to Ukraine issue to be found, West to get over hysteria", Agencia Tass 3/3/2022.

[2"Warum Deutschland dringend eine neue Oststrategie braucht", Ulrich Speck, Der Spiegel, 13/3/2022.
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Juan Chingo

Paris | @JuanChingoFT
Integrante do Comitê de Redação do Révolution Permanente (França) e da Revista Estratégia Internacional. Autor de múltiplos artigos e ensaios sobre questões de economia internacional, geopolítica e lutas sociais a partir da teoria marxista. É coautor, junto com Emmanuel Barot do ensaio "A classe operária na França: mitos e realidades. Por uma cartografia objetiva e subjetiva das forças proletárias contemporâneas (2014) e autor do livro "Coletes amarelos: A revolta" (Communard e.s, 2019).
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