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ARTE | A memória da arte de ’virar a mesa’:

segunda-feira 2 de maio de 2016 | Edição do dia

Escrevia o artista libertário Hélio Oiticica no seu artigo A Trama da Terra que Treme (O sentido de Vanguarda no grupo baiano),publicado nas páginas do jornal Correio da Manhã, em setembro de 1968: (...) “há no ar, respira-se a repressão cultural neste país”(...). Retirada do seu contexto histórico original, esta frase de Hélio encaixa-se muito bem neste primeiro semestre de 2016. No referido artigo, o teórico da “ antiarte brasileira “ exaltava as qualidades antropofágicas e o estado de invenção permanente dos artistas rebeldes que não davam mole para o imperialismo, o esnobismo burguês e a truculência cultural da esquerda nacionalista. Embora as questões artísticas de hoje não sejam as mesmas dos anos 60 (a juventude apresenta novas subjetividades, novas linguagens e um arsenal de referências que encontram variadas raízes em movimentos como o hip hop e o punk) o problema cultural agrava-se e permanece sem resposta diante de um cenário político hostil às forças progressistas.
A esquerda nacionalista do final dos anos 60 servia pelo menos para brigar. Antes do Ato Institucional Número 05 em 13 de dezembro de 1968, nota-se a existência de intensos debates culturais: o pau comia entre nacionalistas e tropicalistas que procuravam definir o que deveria ser a arte brasileira capaz de responder aos impasses do país diante da ditadura militar. Não se trata de nostalgia em relação aos esquerdistas que no âmbito estético confundiam alhos com bugalhos. Diferentemente dos nossos dias, o debate artístico promovido pela esquerda gerava polêmicas, posições contraditórias que fecundavam a cultura . Certamente que hoje existem debates, grupos e pessoas interessadas/interessantes dispostas a averiguar a maneira como a arte pode reagir ao atual conservadorismo político. Por outro lado, há de se confessar dentro da militância cultural (inclusive em tom de autocrítica, necessária a todos nós) que os resultados de nossas práticas ainda possuem pouco alcance. É no mínimo aterrorizante notar que perante uma direita raivosa, que não compra nem tomate na feira porque é vermelho, a esquerda não consiga encampar ou ao menos promover projetos estéticos capazes de responder ao presente cenário político.
Ainda que nos dias que correm o estado de direito seja (pelo menos aparentemente) garantido, novos porões são criados por forças golpistas e conservadoras empenhadas em castrar a memória dos movimentos políticos e culturais de contestação. É neste mesmo processo de varredura que observa-se também tentativas para sufocar as potencialidades criativas do povo brasileiro. Seja em 1968 ou em 2016, o que continua posta na história do Brasil é a velha mesa da classe dominante: na cabeceira continua sentado um patriarca empalhado enquanto que o restante da mesa é preenchido por convidados formados por aquela meia de dúzia de ricaços, especialistas, políticos, jornalistas e artistas comprados.
Num país com mais de 10 milhões de desempregados, deixar as rédeas da cultura soltas é politicamente perigoso para aqueles que são detentores dos meios de produção. Os efeitos anestésicos do feitiço que emana da mercadoria, são abalados em épocas de crise econômica. Com o sonho pequeno burguês do consumismo indo pelo ares na classe trabalhadora, a representação artística tende a se afastar da miséria espiritual da cultura de massa e aproximar-se cada vez mais da realidade, dos problemas concretos. É a hora certa para debater, agitar e cozinhar em fogo alto novas perspectivas estéticas capazes de fazer o pessoal da grande mesa suar frio. É exatamente aí que o estudo e a análise das correntes artísticas brasileiras de contestação, tornam-se fundamentais. Aquilo que em 1968 Hélio Oiticica definia como uma arte de “ virar a mesa “, envolve criações e vivências ainda desconhecidas para muita gente da esquerda.
Uma das razões históricas para que direitistas obtenham projeção no nosso cotidiano, encontra-se na ausência de um resgate sistemático de experiências que desafiam o conservadorismo na cultura. Os elos históricos são constantemente destruídos por reações retrógradas. Isto nas mais variadas “ linhagens “ artísticas. Para um militante revolucionário da cultura, é uma questão de quem pega a mão de quem deixou um legado: Graciliano Ramos estendeu a mão para o Cinema Novo que está com a mão estendida pra quem? Mário Pedrosa estendeu a mão para Hélio Oiticica que estendeu a mão pra quem? Se não estivermos atentos a isto, corremos o risco de sempre tentar, em matéria de arte, começar da estaca zero. Lembrando que é preciso realizar dentro de um novo contexto histórico a releitura(quem não sabe reler está fadado ao xérox, ao dogmatismo e à surdez intelectual). Existem muitos exemplos de obras radicais que ficaram adormecidas no tempo para, posteriormente, serem relidas por artistas inovadores em circunstâncias históricas específicas. É só olhar para o teatro brasileiro: a peça O Rei da Vela , escrita por Oswald de Andrade em 1933, foi resgatada do baú pelo grupo Oficina que realizou uma montagem revolucionária em 1967. Foi um encontro marcante: Oswald estendeu sua mão e foi devorado por uma nova geração de antropófagos.
Há uma série de referências artísticas e políticas que a burguesia brasileira deseja atirar nos novos porões. Trabalhadores e estudantes podem impedir este novo processo de barbárie cultivando obras de arte e teorias estéticas capazes de contribuir com o debate cultural da esquerda hoje.


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