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CHINA CORONAVÍRUS | A esfinge da economia chinesa no turbilhão do coronavírus

Há rachaduras significativas na propaganda do Partido Comunista Chinês sobre o estágio da reativação econômica.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 1º de abril de 2020 | Edição do dia

Xi Jinping, secretário-geral do Partido Comunista Chinês, está em turnê pelos principais parques industriais do país para verificar e incentivar o reinício do trabalho. Em uma recente visita retratada pela imprensa oficial Xinhua à província oriental de Zhejiang, na área portuária de Chuanshan, Xi levou a propaganda da máquina do PCCh de êxito estatal no combate ao coronavírus, e a importância de que a China volte a trilhar o caminho da prosperidade. Estava acompanhado pelo vice primeiro ministro Liu He, máximo conselheiro econômico. Zhejiang é uma das províncias mais importantes para o comércio exterior chinês. O Porto de Ningbo-Zhoushan, na área portuária de Chuanshan, está ligado a um parque de produção e exportação de veículos, de multinacionais alemãs Volkswagen e BMW às chinesas Geely e Chery. Este complexo industrial exportador é uma das artérias vitais da economia chinesa, e um indicador do estado de seu reverdescimento diante da contenção da pandemia.

Na mesma província de Zhejiang, Xi Jinping visitou a cidade-modelo de Huangzhou, uma das joias da administração urbana chinesa, em que a tecnologia do 5G e a integração da Big Data promovem a forma nova de organização urbana planificada pela burocracia de Pequim.

As visitas oficiais vão se tornando um “novo normal” para a burocracia do Partido Comunista Chinês, que por trás das saudações quer inspecionar pessoalmente o estado da indústria. Sun Chunlan, alta funcionária do Politburo, visitou a cidade de Xianning, na província de Hubei, epicentro inicial da crise do coronavírus. No vilarejo próximo de Huangjingtang, instou a população local a preparar a aragem do solo, como usualmente nesta época do ano, sem deixar de insinuar urgência. Aos governantes locais, advertiu que “a preocupação central é reiniciar as atividades produtivas”, e os problemas entre as autoridades locais deveriam ser resolvidos “sem demora”. A produção rural chinesa é um eixo de equilíbrio para o país, mantendo as precárias famílias camponesas e alimentando as grandes cidades, além de abastecê-las de força de trabalho.

Essa sobreatuação de Pequim ilumina o oposto que o governo gostaria de retratar internacionalmente: há rachaduras significativas na propaganda do Partido Comunista Chinês sobre o estágio da reativação econômica.

A preocupação do governo chinês em extrair bons resultados econômicos e apoiar os empresários tem fundamentos claros, situados na dramática queda da produção industrial e dos investimentos nos primeiros meses do ano, com a paralisia imposta pela Covid-19. Segundo o National Bureau of Statistics, a indústria chinesa contraiu -13.5% no período de janeiro e fevereiro, junto a uma retração de -24% nos investimentos de capital. O desemprego urbano atingiu nível recorde, de 6.2%. O PIB chinês provavelmente será negativo no primeiro trimestre de 2020, pela primeira vez desde 1976.

Segundo Xinhua, o Banco Central (Popular Bank of China), que vinha guardando suas ferramentas monetárias, anunciou injeção de 20 bilhões de yuan nos mercados, e uma redução da taxa de juros para facilitar empréstimos às empresas. Ao contrário de países como os Estados Unidos ou a Alemanha, com taxas de juros em zero ou abaixo dessa marca, a China ainda preserva espaço para diminuir suas taxas de referência. Ademais, nas províncias de Zhejiang, Guangdong e Sichuan, assim como nas cidades de Xangai e Tianjin, o governo central liberou as empresas das multas relativas ao não cumprimento de suas obrigações contratuais, injetando 27 bilhões de yuan para fazer frente ao problema. Tudo para evitar que empresas fechem e o desemprego urbano aumente. Um sinal amarelo.

Em terra de retração, quem reinicia uma fábrica é rei. Assim, novos dados do NBS, por pequenos que sejam, anunciam horizontes menos sombrios à burocracia. Como informa o Financial Times, o índice Purchasing Managers’ Index (PMI), que revela o estado de confiança dos capitalistas e investidores na economia de um determinado país, marcou 52 pontos no fechamento de março (numa escala de 0 a 100, o que está abaixo de 50 revela contração, e acima de 50 indica expansão da economia).

Há investimentos na recuperação da indústria, e monopólios como a Volkswagen, que possuem fábricas gigantes em Zhejiang, deram os primeiros passos na linha de produção. De acordo com o Ministro do Comércio, 67% das mais importantes empresas de importação e exportação da China estão operando a uma capacidade de 70%. O Porto de Xangai, o mais importante do mundo, iniciou uma recuperação na operação de cargas nacionais e estrangeiras.

Considero que a recuperação parcial da atividade dos portos e da navegação comercial, na segunda metade de março, mostra duas tendências simultâneas. A primeira é que o governo chinês viu recompensados, em alguma medida, seus esforços para dar reignição à indústria na costa leste.

Entretanto, esse róseo cenário é desluzido pela lentidão na retomada, ainda longe dos resultados já ruins da retração industrial chinesa em 2019, ano em que a China havia crescido às taxas mais baixas em 30 anos. O debilitado ritmo de retomada da economia é retroalimentado pelo maior problema da China: a dependência da demanda externa, que se contraiu substancialmente em função do alastramento da pandemia do coronavírus para os principais países do Ocidente. Se as empresas de comércio estrangeiro mostram ritmo cardíaco, é igualmente verdadeiro que quase 35% das empresas comerciais chinesas não estão operando, ou o fazem de forma muito débil, e as que operam estão ainda com grande capacidade ociosa.

Apanhada pela pandemia num momento de extrema fragilidade, a economia global defronta a humanidade com a perspectiva certa de uma nova recessão, mais abrupta que a de 2008. Nouriel Roubini sugere que não se pode descartar uma Grande Depressão em 2020, mesmo que os governos atuem de maneira coordenada para aplicar políticas monetárias (redução da taxa de juros) e fiscais (entrega direta de dinheiro à população). Michael Roberts, em artigo recente, desmente a noção expressa pelo Secretário do Tesouro norte-americano, Steven Mnuchin, de que a recessão que se avizinha será de curta duração, como a queda na Bolsa de Nova York em 1987. Em 2020, a sinfonia toca em outros acordes. As cadeias globais de valor estão afetadas, num momento em que os retornos sobre o capital são baixos e os benefícios globais são estáticos pós-coronavírus, em que o comércio e o investimento globais vem caindo, e não aumentando. As projeções de bancos como Morgan Stanley e Goldman Sachs revelam a possibilidade de queda de 30% do PIB dos Estados Unidos no segundo trimestre. Adam Tooze acresce que a "relativa coordenação" entre os Estados nacionais é praticamente inexistente, no marco das disputas entre Estados Unidos, China e Alemanha.

Nesse cenário, Zhao Qinghe, economista-chefe do National Bureau of Statistics, é categórico. “A pandemia se está acelerando e alastrando pelo mundo, impactando severamente o comércio e crescimento globais. Também há pressão sobre o atual controle do coronavírus na China, e isso indica que o retorno do crescimento e a estabilização das cadeias de produção e fornecimento enfrenta novos desafios”. A própria burocracia não esconde o receio de uma nova recaída sanitária.

O mesmo NBS confessa que a expansão registrada no índice PMI “não significa que a operação econômica da China voltou ao normal”. Trata-se de uma melhora frente à queda recorde de 17% nas exportações em bases anuais. Movimentos dos governos locais para reabrir cinemas, teatros e outras atrações turísticas foram revertidos, ao ponto do governo central proibir praticamente todas as entradas de estrangeiros ou nativos vindos dos Estados Unidos e da União Europeia, a fim de coibir a importação de uma “segunda onda” do coronavírus.

Ademais, há o problema social do desemprego. A migração interna por motivos de trabalho, especialmente a migração pendular de acordo com os fluxos sazonais de emprego, é um elemento enraizado na vida operária chinesa. São mais de 288 milhões de trabalhadores migrantes, mais de um terço do total economicamente ativo de 775 milhões de trabalhadores. Esses migrantes vão para o interior do país, às vezes viajando 1000 km ou mais, nos feriados e nas festas de fim de ano, para depois retornar às regiões industrialmente concentradas. Esses contingentes gigantescos de trabalhadores foram impedidos de retornar às regiões do sudeste da China, onde trabalhavam, em muitos casos perdendo o emprego e tendo de relocalizar-se para sobreviver.

Segundo Bert Hofman, diretor do Instituto da Ásia Oriental em Cingapura, admite que 80% dos 100 milhões de trabalhadores migrantes que foram para o interior do país durante as festividades de fim de ano já puderam retornar às províncias onde trabalham; mas “mesmo para eles, não está claro que terão seu emprego de volta”.

Num quadro conjunto, a reativação da economia chinesa pode ser a “aldeia de Potemkin” de Xi Jinping, uma construção fictícia, física ou figurativa, destinada a ocultar uma situação indesejável. Diferentemente das falsas aldeias do ministro de Catarina II, os políticos chineses têm dificuldades de acreditar nas próprias ilusões. Nada é certo, e tudo é muito frágil. A bandeira da reativação da economia vem sendo um ponto contencioso entre Xi Jinping e Donald Trump, que pressionado pela propaganda chinesa havia ignorado a expansão do coronavírus nos Estados Unidos e urgido o retorno mais rápido possível aos locais de trabalho. Em meio à “guerra comercial”, que tem como essência a disputa pela primazia tecnológica industrial, e a corrida pela vacina contra o coronavírus, nenhum dos dois mandatários deseja ver-se atrasado diante do adversário.

A desconfiança do governo atinge a população trabalhadora chinesa

As dúvidas subsistem também no terreno sanitário. Não é possível confirmar com exatidão o grau de controle da pandemia no interior da China, nem mesmo se o número de mortes apresentado pelo governo chinês é verídico. José Teixeira Fernandes afirma que há motivos substantivos para ter muitas dúvidas sobre os números oficiais chineses da Covid-19. “É bem conhecida, ou deveria ser, a forma como a China controla a informação através de um sofisticado sistema de vigilância na rede e fora dela, e reprime duramente os críticos nos assuntos mais sensíveis politicamente”. A província de Hubei tem sensivelmente a mesma população de Itália numa área de 185 mil km² — a Itália tem cerca de 300.00 km² — tendo consequentemente uma densidade demográfica muito maior que a Itália. Tendo em vista o grau de contágio do coronavírus, é difícil acreditar nos dados divulgados pela burocracia de Pequim.

Fruto dessa desconfiança, as críticas contra a desinformação e o autoritarismo do Partido Comunista Chinês são frequentes. A mencionada Sun Chunlan recebeu severas críticas ao inspecionar o trabalho de um comitê de bairro de Wuhan, que administra as necessidades da população em quarentena. Enquanto visitava o distrito de Qinshan, moradores gritaram “é tudo falso, não passa de uma farsa!”, assim como “nós protestamos!”, segundo reportou o jornal britânico The Guardian, divulgando a gravação retirada das redes sociais chinesas.

A nota oficial do governo, obrigado a responder pelos acontecimentos apesar de apagar os registros do vídeo, admitia que é necessário “encarar os problemas de maneira realista, a fim de conquistar o apoio das massas”.

Ao contrário do que esperava o governo com seus anúncios exitosos de contenção da doença, as ruas chinesas seguem silenciosas e descontentes. Outro incidente em Wuhan se deu em função da pressão do prefeito para que a população “aplaudisse a atuação de Xi Jinping no controle do vírus”, o que teve como resposta um repúdio massivo nas redes sociais, obrigando o governo central a recuar desse troféu simbólico. Exemplos como esse não projetam um caminho suave para a burocracia chinesa, e em primeiro lugar para Xi Jinping.

Isso prejudica a campanha da burocracia chinesa, que trata de apagar a primeira fase do país na crise, que arranhou a imagem de invencibilidade de Xi Jinping, para mostrar-se o líder nos esforços de coordenação internacional no combate ao coronavírus.

A batalha pela liderança é a batalha pelo legado de Xi

Essa frente de batalha para a China é crucial. Xi Jinping entende que fornecer bens mundiais que estão em estágio de escassez – em função da catástrofe sanitária preparada pelos capitalistas – pode incrementar a força de uma potência em ascensão. O “grande timoneiro” da transformação da China numa competidora por espaços de acumulação de capital com os Estados Unidos, envolvido num conflito comercial-tecnológico direto com Washington, passou os últimos anos a partir de 2012 pressionando o aparato de política externa chinês a pensar em propostas de “governança global”. A tarefa era hercúlea, porque era acompanhada simultaneamente pela conversão das bases econômicas da China, deixando de ser quase exclusivamente dependente da exportação de produtos com baixo valor agregado, para apoiar-se no mercado interno e na produção de alta tecnologia. A crise do coronavírus colocou à China a oportunidade que esperava. Deixando a guerra comercial-tecnológica com os Estados Unidos ao segundo plano, punha a China na possibilidade de mostrar-se mais apta a dirigir a linha “globalista” dos esforços de contenção da pandemia, diante do nacionalismo negacionista de Trump.

No início de março, a situação se mostrava favorável à China. Quando nenhum estado europeu respondeu aos urgentes pedidos da Itália por equipamento médico e insumos hospitalares, a China se comprometeu com o envio de 1000 ventiladores, 2 milhões de máscaras, 100 mil respiradores, 20 mil roupas de proteção, 50 mil kits de teste. A China também enviou equipes médicas e 250 mil ao Irã e à Sérvia, cujo presidente chamou a solidariedade europeia de “conto de fadas” e proclamou que “o único país que pode nos ajudar é a China”. O mesmo feito pela Polônia e a Hungria, países que fazem parte do Seventeen+One, os 17 estados da Europa Central e Oriental que se coligam com os projetos de desenvolvimento chinês. A cada um dos 54 países da África foi prometido 20 mil kits de teste e 100 mil máscaras. Num telefonema ao próprio Donald Trump, que até então fazia campanha incessante sobre o “vírus chinês”, Xi Jinping se prontificou a ajudar os Estados Unidos em tudo o que for necessário para conter a pandemia, recebendo um tweet de elogio de Trump.

Essa preeminência no auxílio internacional advinha das capacidades produtivas materiais que a China possui. Já era a maior produtora do mundo em máscaras cirúrgicas; em tempos de readequação da produção a ritmos de guerra, a China decuplicou essa capacidade, segundo o Foreign Affairs. A China, além de produzir metade dos respiradores N95 no mundo, produz a vasta maioria dos ativos farmacêuticos necessário para a criação de antibióticos, necessários para o combate das infecções secundárias que debilitam o organismo contra o coronavírus. Por sua vez, os Estados Unidos não está sendo capaz sequer de fazer frente a sua demanda interna, e ainda vê o crescimento exponencial da pandemia em seu território, que segundo Trump viverá semanas sombrias em abril, quando na China a Covid-19 parece ter sido temporariamente controlada.

Tudo isso compõe um quadro favorável à burocracia chinesa, mas a coloca ainda longe do lugar privilegiado que busca para si mesmo e seu prestígio internacional. Os próprios insumos médico-hospitalares que a China envia ao estrangeiro estão sob constante crítica por sua baixa qualidade. Países como Holanda, Turquia e Estado espanhol acusaram problemas em produtos defeituosos, como máscaras N95 e os testes diagnósticos, enviados pela China. Vinculado a isso estão as denúncias de que a China utiliza os aplicativos de identificação e rastreamento do coronavírus em cada pessoa para extrair informações confidenciais e armazená-las no banco de dados da polícia, que segue perseguindo críticos nas redes sociais, e no interior do próprio PCCh: caso Ren Zhiqiang, um membro do Partido Comunista Chinês desaparecido desde que decidiu criticar a administração da pandemia por Xi.

As investidas autoritárias da China, a má qualidade dos equipamentos exportados e as incertezas econômicas fazem o gigante asiático se distanciar de seu objetivo de dar passos no caminho de alterar a geopolítica global. Em última instância, os sinais trocados da economia chinesa abrem o tabuleiro para um jogo maior: qual potência chegará melhor preparada para aquela que promete ser a recessão econômica mais profunda desde o crack de 1929? A luta de classes na China ainda não deu seu veredito na nova crise que se avizinha. A burocracia faz propaganda do silêncio social que consegue com sua política. "Não há nada mais silencioso do que um canhão carregado", dizia o poeta alemão Heinrich Heine.




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