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A aposta da imunidade de rebanho

Gabriel Girão

A aposta da imunidade de rebanho

Gabriel Girão

Arte: Juan Chirioca

Imunidade de rebanho é um termo usado na infectologia que ficou particularmente famoso após Boris Johnson anunciar que pretendia usar tal estratégia contra o coronavírus. Ainda que nas palavras tenha recuado, tentamos descrever nesse artigo até que ponto a imunidade de rebanho ainda está nos “cálculos” dos diversos governos.

A imunidade de rebanho é o fenômeno que, quanto maior a proporção de pessoas imunes a determinado vírus numa população, menor vai ser a circulação do patógeno, até que a imunidade atinja um nível tão alto que a circulação praticamente cessa. Após alguns governos anunciarem que usariam esse método pra combater a quarentena, foram amplamente rechaçados e resolveram recuar e adotar medidas de isolamento social. Nesse momento, se desenvolveu um grande debate onde se apresentava a estratégia de isolamento social oposta como a da imunidade rebanho.

No entanto, com o anúncio do relaxamento das medidas de restrição de vários países europeus como Itália, Alemanha, Espanha, Polônia e Áustria, e dos EUA nessa semana, além do vazamento de um documento mostrando que mesmo após a “mudança de estratégia” de Boris Johnson, o governo teria feito projeções sobre as consequência de uma “imunidade de rebanho direcionada”, fez com que o debate voltasse à tona. Jornais como The Guardian e NY Times publicaram artigos sobre o tema, e o próprio MIT voltou a se posicionar. Também aumentaram os holofotes sobre à Suécia, que adotou essa estratégia como oficial. Aqui, queremos fazer a seguinte pergunta: até que ponto a estratégia de isolamento social realmente se opõe a estratégia de “imunidade de rebanho”? Até que ponto os governos não estão apostando na imunidade de rebanho?

Estratégias de controle e combate da pandemia

Em linhas gerais, além de simplesmente não fazer nada, existem 2 estratégias para controlar a pandemia: a de supressão e a de mitigação.

A de supressão visa basicamente remover totalmente o vírus de circulação. Se basearia em conseguir rastrear todos os contaminados desde a origem, impedir que casos estrangeiros reintroduzam a doença no país/região, mega operações de higienização etc. Essa estratégia foi adotada apenas por pouquíssimos países, como China, Coreia do Sul, Vietnã, Singapura e Nova Zelândia (ainda que de forma autoritária e burocrática).

A estratégia de mitigação seria a famosa “achatar a curva”. Basicamente busca adotar medidas de isolamento social e restrição de aglomerações para diminuir a transmissão da doença. Essa estratégia - que remonta aos tempos medievais - apresenta vários problemas. Não apenas assume que uma parcela da população vai se contaminar e falecer, como muitas vezes não dá conta de impedir o colapso do sistema de saúde, como vimos na Itália, Espanha, EUA e Equador e em breve em vários países. Sem contar que vários especialistas apontam para a dificuldade de se manter quarentenas tão prolongadas, além dos efeitos econômicos e sociais.

Além disso, qual é a saída de fundo dessa estratégia? Manter a população confinada meses até acharmos um tratamento eficiente ou uma vacina? A outra opção seria apostar na construção imunidade de rebanho na população, não tão abruptamente como propunha Boris Johnson, mas diluindo-a no tempo.

Visto que a maioria dos planos de relaxamento das medidas de isolamento social não vem acompanhado de nenhum plano de testes massivos, apenas da manutenção de restrição a grandes aglomerações, fica evidente como a aposta dos governos é na imunidade de rebanho. A própria União Europeia assume em um documento que o número de novos casos aumentarão e o governador de Nova York, o democrata Cuomo, anunciou que estenderá as medidas de isolamento social até que seja possível “gerenciar os novos contágios”. O próprio FMI assume em seu site que a pandemia será controlada com medicações, vacinas e imunidade de rebanho. Ainda que aparentemente desde o início essa era a estratégia dos governos, eles tentaram esconder usando estratégias de confusionismo que descreveremos logo abaixo.

O confusionismo como estratégia de comunicação

Desde o início da pandemia, as informações dadas pelos governos têm se caracterizado pela falta de clareza e transparência, com dados e projeções desconexas e contraditórias, além de giros bruscos na política sem grandes explicações. Esse modus operandi foi adotado por governos de um amplo espectro político, desde o “progressista” governo espanhol do PSOE e Podemos, até o da extrema direita de Trump e Boris Johnson.

O caso dos EUA é bem ilustrativo. Após Trump minimizar a importância da doença, mudou bruscamente e disse que poderiam morrer entre 100 e 250 mil americanos. Agora, quando a doença está na casa dos 30 mil mortos, diz que o pior já passou. Tudo isso sem grandes explicações. Similar é a forma que o Brasil lida com a situação. O ex-ministro Mandetta anunciou milhões de testes. No entanto, até agora ninguém sabe cadê esses testes, inclusive o próprio Ministério da Saúde diz que não sabe quantos testes fez.

Também é curioso como a grande mídia pouco fala sobre as pesquisas de tratamentos com coronavírus e sempre que entra nesse tema, seleciona bem as informações. Uma das discussões mais recentes tem sido sobre a cloroquina e seus derivados. Enquanto vemos Trump e Bolsonaro propagandeando a droga como uma cura mágica, inclusive através de fake news (sendo responsáveis assim pelo uso indiscriminado e pela auto-medicação, que já deixou mortos pelo mundo), do outro lado vemos muitas “autoridades de saúde” dizerem que não há efeitos comprovados pela droga. A intenção não é aprofundar no debate sobre o tema, no entanto, é incrível como simplesmente esse debate corre por fora do fato que, na prática, a cloroquina tem sido amplamente usada nos hospitais do mundo todo, coisa que é pouco sabida por muitos. Desde hospitais públicos até “clínicas de luxo”, como admitido pelo infectologista David Uip, que assumiu usar a droga em sua clínica. O próprio governo chinês inclusive recomenda o tratamento da Coivd-19 com a droga. No entanto, os dados sobre a eficácia desses tratamentos nos hospitais parece um segredo de Estado.

Isso sem contar os diversos outros tratamentos que tem sido usado pelos hospitais mundo a fora, além das diversas pesquisas sobre tratamentos e vacinas que estão ocorrendo. No entanto, essas informações são pouquíssimas divulgadas, e nem mesmo há uma compilação disponível de todos esses dados. Esses fatos demonstram como não podemos confiar na burguesia para cuidar das pesquisas do coronavírus. É tarefa da esquerda e de setores que sinceramente querem combater a pandemia - diferente das empresas farmacêuticas, que querem lucrar com ela exigir que as empresas farmacêuticas e os centros de pesquisa sejam colocados sob controle de comitês de trabalhadores e especialistas, para que assim as pesquisas sejam centralizadas e se possa fazer a ampla divulgação desses dados à população, nesse assunto de importância global.

Esses zigue zagues dos governos na verdade estão relacionados com a intrínseca dinâmica dessa crise, onde ao mesmo tempo estão que os governos por um lado sendo pressionados pela sede dos lucros dos capitalistas, por outro, temendo que o agravamento da crise sanitária desate revoltas populares.

Portanto, não podemos ser ingênuos de achar que essa confusão promovida pelos governos e pela grande mídia é “sem querer”. Longe disso, essa estratégia é bem pensada e tem como intenção se aproveitar do medo e do pânico da população com a pandemia para semear confusão. Dessa forma, como a população numa situação de pandemia se sente totalmente impotente a reagir de forma isolada, concedem um “salvo conduto” a seus governantes para tomar qualquer ação, inclusive a reabertura que está sendo proposta por vários países, sem muitas informações sobre.

Uma roleta russa com a população

Uma pergunta normal de se pensar é: qual parcela da população já está imune ao coronavírus? A resposta é: não sabemos!!! Pelo conhecimento do autor, o único lugar onde se tem dados publicados sobre a imunidade da população é na cidade de Heisenberg, na Alemanha, tida como “cidade zero” do vírus na Alemanha. Ainda que os resultados apontem que 15% da população já seja imune, 3 vezes mais do que o esperado, o estudo foi questionado, além de que é muito difícil extrapolar esses dados para outros lugares. A OMS lançou um estudo global para tentar medir o número de pessoas imunes, e vários países tão tendo iniciativas semelhantes em seus territórios. No entanto esses dados não estão disponíveis ainda, pelo menos ao grande público.

Ainda que possa se presumir que lugares como EUA, Itália e Espanha, onde há um número alto de registros de casos, possam já ter uma parcela significativa da população imunizada, ainda é muito difícil precisar isso. Além disso, também não há consenso sobre a transmissibilidade do vírus, como evidenciado num recente estudo americano que mostra que ela pode ser o dobro. Isso significa que uma parcela maior da população teria de ser imune pra se alcançar a imunidade de rebanho.

Além dos governos simplesmente assumirem que a doença vai continuar circulando e consequentemente que muita gente vá morrer, não necessariamente a aposta dos governos que conseguiriam “gerenciar” os contágios vai se mostrar correta. Mesmo que, caso comecem a detectar mais contágios reestabeleçam medidas de isolamento, isso não evitará o colapso dos sistemas, pois os sintomas só se manifestam muitos dias depois do contágio. Com o agravante que os sistemas já estão abarrotados devido a primeira onda de contaminação. Esse “erro” custará a vida de milhares de pessoas, principalmente dos grupos mais oprimidos pelo capitalismo, como os negros e latinos que, nos EUA, são os principais atingidos pela doença. Mesmo que a aposta “dê certo” e os sistemas de saúde não colapsem, a atual crise era totalmente evitável.

Uma tragédia totalmente evitável

O fato de em pleno século XXI, com todo o avanço na ciência e na medicina, a resposta dos principais governos capitalistas ser adotar métodos oriundos da idade média, como quarentenas indiscriminadas e imunidade de rebanho, é um sinal da total decadência desse sistema.

Antes de tudo, é necessário frisar que, apesar do surgimento de vírus ser um “fenômeno natural”, a forma que a pandemia tomou é totalmente ligada ao desenvolvimento do capitalismo. Como explica Rob Wallace, o modelo de desenvolvimento agrário atual é bem propício para o desenvolvimento de doenças. Outro autor, Kim Moody, mostra como o capitalismo do “just-in-time” propagou a Covid-19.

Longe de ser uma previsão apenas de intelectuais marxistas, vários cientistas já alertavam sobre a possibilidade de uma pandemia, principalmente de alguma doença respiratória. A SARS e a MERS, doenças causadas por outros coronavírus, foram candidatas a tal e apesar de não terem se concretizado como pandemia, serviram de alerta.

Qual foi a resposta da burguesia frente a isso? Preparar o mundo para uma pandemia? Não! Ao invés disso, cortaram investimentos de pesquisas com essas mesmas doenças! Em 2016, um grupo americano desenvolvia uma vacina contra a SARS, que estava quase chegando na fase de testes em humanos. No entanto, tiveram que interromper sua pesquisa por falta de verba. E, como a própria mídia burguesa BBC lamenta, outras pesquisas com SARS e MERS também foram interrompidas depois que o surto foi controlado. Ter um conhecimento mais avançado sobre tratamentos e vacinas contra esses “primos” do atual coronavírus, poderia nos ter colocado muitos passos à frente combater a Covid-19.

Também há outro elemento a se frisar: era evidente, pelo menos desde janeiro, a possibilidade da Covid-19 se tornar uma pandemia era bem alta. Segundo o Washington Post, as próprias agências americanas já avisavam a Trump sobre esse risco. Um dos temas mais discutidos nos meios do mercado financeiro em fevereiro era os possíveis impactos do coronavírus na economia. No entanto, essas discussões não resultaram em nenhuma ação concreta dos governos ou dos empresários, exceto os do ramo farmacêutico, que já em janeiro começaram as pesquisas por tratamentos e vacinas, prevendo o lucro que tal descoberta poderia gerar.

Apenas em março, quando a “ameaça” do coronavírus já tinha se tornado realidade em muitos países, que os governos resolveram tomar uma ação. Mas qual foi a ação? Colocar todos os recursos e tecnologias possíveis, como testes massivos para rastrear os contaminados e promover uma quarentena racional e planificada, além de reconverter a produção para produzir leitos, respiradores e outros insumos para o combate pandemia (como por exemplo reconverteram a produção nas 2 guerras mundiais)? Não! Apenas decretaram uma quarentena indiscriminada e esperaram a imunidade de rebanho atuar de forma que conseguissem “gerenciar” a catástrofe. Inclusive, para amplas parcelas da população a possibilidade da quarentena é irreal, pois são obrigadas a trabalhar sob risco de serem demitidas ou, no caso dos informais, de não terem o que comer. Mesmo na Itália, devido a pressão dos patrões, muitos setores não essenciais foram obrigados a continuar trabalhando, onde apenas na greve geral do dia 25 de março essas fábricas foram finalmente fechadas. Para não mencionar a situação dos trabalhadores essenciais, que estão trabalhando sem as menores condições de segurança, até mesmo nos hospitais.

Inclusive, cabe aqui dizer que o nível dessa catástrofe que vemos não seria tão alto se não fossem os anos de neoliberalismo que precarizaram os sistemas de saúde, além da situação de miséria que o capitalismo lega amplas camadas da população, as privando-as de alimentações e moradia de qualidade.

Mesmo com tudo isso, os governos planejam uma reabertura baseados em uma aposta que, como dizemos, é bem perigosa. Tudo isso para garantir os lucros dos capitalistas.

Para que mundo iremos pós pandemia?

Essa é a pergunta que todos se fazem. A crise do coronavírus evidenciou as tendências que vinham do período anterior, de recessão na economia e de uma maior tensão entre as potências. Vemos claramente como isso se agrava na crise: enquanto FMI e outras instituições preveem a maior crise econômica desde 1929 e clamam por uma cooperação internacional, vemos as tensões entre China e EUA se acirrarem e as potências praticarem pirataria estatal de insumos médicos. Também é evidente como a União Europeia tende a aprofundar a crise que vem passando..

Ainda que seja incerto o tamanho e a dinâmica da crise que virá, está claro que a burguesia e o imperialismo tentará despejar a conta na classe trabalhadora e dos países mais pobres. Vemos isso nos EUA, onde quase 22 milhões de pessoas já pediram o seguro desemprego desde o início da crise do coronavírus e também nos movimentos do FMI, responsável por políticas que causam fome e miséria no mundo todo, de fazer empréstimos massivos. Também é um crime que os EUA se aproveitem da situação para aumentar suas sanções sobre Cuba e Venezuela. Enquanto isso, os pacotes aprovados para salvar a economia tem como principais destinatários os bancos e as grandes empresas.

No entanto, a crise não passará batida pela subjetividade da classe trabalhadora. Como disse brilhantemente a intelectual Virgína Fontes num debate promovido aqui neste site, a classe dominante irá se enfrentar com massas trabalhadoras que perceberam quanto o capital despreza suas vidas. E eu agregaria o seguinte: uma classe trabalhadora cada vez mais consciente do seu papel na produção. O fato de que as medidas de restrição impedem a classe trabalhadora de trabalhar, deixou a desnudo o papel da classe trabalhadora na produção, que Marx tanto falou, transformando as teorias sobre fim do trabalho ou da classe trabalhadora em fábulas. Exemplos moleculares do impacto disso são sentidos na greve geral da Itália no dia 25 e no alto número de greves nos EUA. Também vimos exemplo da classe trabalhadora exigindo que se reconvertesse a produção em países como os EUA e na França, além de exemplos concretos disso na Argentina.

Frente aos embates da luta de classes que se aproximam, é tarefa central da esquerda revolucionária se preparar para que eles possam ser levados ao triunfo da classe trabalhadora sobre a burguesia, cortando o mal do capitalismo pela raiz. A máxima de Rosa Luxemburgo “Socialismo ou barbárie” se reatualiza, mas também que regaste outra frase dessa imensa revolucionária: “A revolução alçará-se amanhã com a sua vitória e o terror pintará-se nos vossos rostos ao ouvir-lhe anunciar com todas as suas trombetas: ERA, SOU E SEREI!”


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