Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

A Ucrânia no tabuleiro mundial

Santiago Montag

A Ucrânia no tabuleiro mundial

Santiago Montag

A Ucrânia tem sido historicamente um palco de importância estratégica no confronto entre a Rússia, os Estados Unidos e a OTAN. Atualmente a imprensa internacional diz que os tambores da guerra estão soando no Leste Europeu devido à mobilização de tropas russas para as fronteiras ucranianas. Naturalmente, isso levanta várias questões. Haverá uma invasão russa da Ucrânia? Como surgiu esse conflito? É uma guerra civil ou há confronto direto entre as potências? Que papéis cada um dos atores desempenha? Aqui tentaremos analisar o caso desde o início, abordando as várias dimensões de um conflito muito mais complexo do que aparenta, bem como as visões estratégicas de cada uma das potências concorrentes.

Dois personagens shakespearianos em um famoso diálogo criam uma analogia entre a realidade do mundo e a ficção. Duque Federico diz que este grande palco universal oferece espetáculos mais tristes do que a peça em que atuamos, e Jacques responde com seu famoso monólogo dizendo que "o mundo é um palco" e ali compara as etapas da vida com as de uma peça de teatro. Poucos dias antes do final do ano [1], as tensões aumentam na Ucrânia, onde os principais atores do mundo vêm para desempenhar papéis diferentes. No ato, as aparências e habilidades de cada ator são importantes para que os espectadores entrem nesse mundo ilusório, estabelecendo uma certa empatia com eles. Dependendo de quem nos convida a ver a peça, uns parecem ser os “bandidos” e outros os “mocinhos”. Mas o drama é muito mais complexo à medida que mesclamos as raízes históricas ucranianas e os problemas atuais da disputa geopolítica em escala global.

Na Ucrânia, vários cenários se sobrepõem, diferentes obras em um. Nos bastidores, os diretores e produtores preparam a encenação em permanente tensão sobre quem dirige cada ato. Das tensões internas nos Estados Unidos com diferentes objetivos geopolíticos; as intenções de uma União Europeia mais autônoma, mas vinculada à OTAN; e uma Rússia buscando ser grande novamente. Enquanto os Estados Unidos despertam o espectro do autoritarismo russo para justificar a mudança para o leste; A Rússia aponta para o monstro das armas nucleares e da infraestrutura militar da OTAN nas proximidades de seu país; e a União Europeia busca um diálogo com a Rússia para acalmar as águas devido à sua forte dependência energética. Por sua vez, os ucranianos estão passando por uma tragédia social que dividiu o país em duas grandes regiões, enquanto novas tensões internas foram geradas desde os protestos de Maidan em 2013 e 2014.

O desenvolvimento da crise aberta na Ucrânia, desde a queda do presidente Viktor Yanukovych devido ao movimento Euromaidan até a guerra desencadeada em Donbass (no leste do país), tem múltiplas causas e explicações em diferentes escalas. Como explica Rubén Ruiz Ramas, a guerra no Donbass é uma guerra híbrida, ou seja, uma guerra assimétrica sem delineamentos rígidos de frente, com estratégias e operações ofensivas e defensivas contínuas em diferentes arenas: política, econômica, militar, informacional e cibernética [2]. Uma guerra onde os principais atores são locais, mas onde também participam os internacionais, tanto no terreno como delineando estratégias de fora. Tentaremos comentar este conflito cuja resolução ainda está longe.

O pano de fundo histórico e estrutural do atual drama ucraniano

Veteranos marcham na Praça Maidan contra a "capitulação" em Donbas exigindo a recuperação dos territórios em 2019. Fonte: DW.

A eclosão no final de 2013 da revolta conhecida como Euromaidan [3], abriu uma crise multicausal que consolidou uma velha rachadura na sociedade ucraniana na qual é necessário focar. As raízes imediatas podem ser encontradas no nacionalismo ucraniano nascido após a queda da URSS, esquematicamente dividido em duas porções espaciais da população.

Por um lado, o leste e o sul do país, onde se localiza um setor da oligarquia herdeira do aparato produtivo soviético e da população de língua russa (cerca de 30% dos ucranianos), que percebe suas raízes históricas e identidade cultural, transcendendo fronteiras, ligadas a Moscou [4].

De outro, um setor da sociedade e da elite política que buscava se aproximar da UE tentando construir uma identidade ucraniana pura semelhante à do restante dos países eslavos do Leste Europeu (ou seja, livre de russos), e mais como uma maneira de fugir da Rússia do que compartilhando o sistema liberal europeu de ideias. Desde o século 12, a região da Ucrânia está sob o domínio de Moscou, mas a história mais recente tem mais peso na consciência atual. Naquela época, a população da região passava por vários processos históricos que deram origem a um profundo sentimento anti-russo por parte da população ocidental: a opressão do czarismo, a guerra civil de 1917 a 1921 (onde se enfrentaram a Guarda Branca, o Exército Vermelho e os nacionalistas ucranianos), a coletivização forçada do stalinismo, as fomes de 1932 e 1933 e a Segunda Guerra Mundial.

Mapa etnolinguístico da Ucrânia. Fonte: Washington Post

Essa situação arrastou o país para uma crise histórica de construção do Estado e da identidade nacional, fazendo com que a elite política ucraniana não seguisse um único vetor geopolítico. Desta forma, após a independência em 1991 procuravam ter boas relações com ambos os lados e ao mesmo tempo uma equidistância, mas, como tendência geral, o objetivo era importar o modelo democrático liberal ocidental.

Para um setor da burguesia ucraniana, a aproximação com a UE foi fundamental para se afastar da Rússia, uma vez que ainda mantinha importantes laços econômicos devido à sua indústria integrada e uma crescente dependência energética além dos laços culturais, religiosos e étnicos no sul e no leste. Na Ucrânia, como todos os países do espaço pós-soviético, durante a década de 1990 ocorreram processos de acumulação por desapropriação através de enormes privatizações juntamente com a concentração de empresas com capital ucraniano e a entrada de transnacionais. O impacto da queda significativa em todos os indicadores sociais e econômicos, além do declínio demográfico sem precedentes, foi comparado ao de uma guerra em larga escala. Leon Zhukovskii chamou isso de involução periférica, ou seja, a destruição e substituição premeditadas de um sistema de relações sociais com maior desenvolvimento histórico (tanto em sua materialidade quanto em seus fundamentos ético-políticos) do que o capitalismo periférico que o sucedeu [5]. Isso significou um forte disciplinamento do imperialismo - que entrava em uma fase de unipolarismo - em direção aos países do antigo bloco socialista para subordiná-los à "nova ordem mundial", mas também de forma material e simbólica a todos os trabalhadores do mundo expandindo as formas de produção e reprodução capitalistas.

Assim, territorialmente, observa-se um oeste ucraniano onde as principais empresas monopolizaram as terras mais férteis do planeta; e um Oriente que mantinha uma região industrial integrada ligada à bacia do Donbass, de onde são extraídos importantes recursos minerais para fábricas ex-soviéticas. Essa partição territorial étnica e cultural também se expressa eleitoralmente: a oligarquia pró-russa e a oligarquia pró-europeia têm disputado o poder, mantendo suas bases circunscritas àquelas duas grandes regiões do país, respectivamente, que deixaram o país em uma delicada luta de influências.

Da Revolução Laranja à Praça Maidan

Nas eleições de 2004, o então candidato Viktor Yushchenko foi o primeiro a se inclinar abertamente a favor de um curso pró-ocidental e pró-europeu. Enquanto Viktor Yanukovych, pertencente à oligarquia pró-russa, estava relutante em qualquer reaproximação com a aliança atlântica. Naquele ano, as acusações cruzadas de fraude eleitoral levaram à chamada Revolução Laranja (a cor do partido Nossa Ucrânia, pró-ocidental) que colocou Yúshchenko no poder entre 2005 e 2010. Nesse período, dedicou-se a reivindicar sem mediações a entrada na UE e na OTAN, enquanto o Ocidente [6] forneceu ajuda econômica e apoio político sem considerar o aumento da fissura interna causada pelo novo alinhamento internacional que ao mesmo tempo resultou em reformas internas do sistema político. Yushchenko via as regiões leste e sul como um empecilho da era soviética, o que fez com que a população dessas regiões se sentisse discriminada pelo governo de Kiev. A política de confronto com a Rússia que levou às guerras do gás (2006-2009) juntamente com uma forma de governo a favor de uma oligarquia ucraniana permitiu que Yanukovych vencesse em 2010. Na época o novo presidente – um tradicional aliado da Rússia – assumiu com a ideia de voltar ao caminho de melhores relações com a UE associadas ao desenvolvimento econômico, bem-estar social e consolidação da democracia. Como explica Javier Morales [7], por volta de 2013 a ideia de uma abertura comercial aos produtos da UE gerou medo no governo devido ao provável impacto negativo que teria na indústria ucraniana, que por sua vez estava associado às exigências de ajustes do FMI como parte das condições de crédito que o país precisava para evitar a ruína total. Além disso, a UE exigiu reformas constitucionais que minassem o poder do executivo em favor de outros poderes. A contrapartida seria que a Ucrânia não conseguiria entrar na união aduaneira promovida pela Rússia com Bielorrússia e Cazaquistão, a União Econômica da Eurásia (UEE), o que gerou maior pressão de Putin sobre Yanukovych para abandonar o acordo com a União Europeia. Para o líder russo, a UEE é uma coluna importante para projetar naquele espaço a influência e a integração econômica da Grande Rússia.

Situação em Donbas em 19 de maio de 2020. A Ucrânia controla os oblasts ocidental e norte de Donetsk e Luhansk, e os rebeldes controlam a área cor de areia, incluindo um longo trecho da fronteira com a Rússia. Embora a frente seja estática, ainda há confrontos. Este mapa foi publicado pelo Ministério da Defesa da Ucrânia. Fonte: A Ordem Mundial e Ministério

Dos protestos de Maidan à guerra em Donbass

No final de 2013, milhares de ucranianos se reuniram na Praça da Independência, ou Maidan, para confrontar a decisão do então presidente ucraniano Viktor Yanukovych do Partido das Regiões de aceitar os termos de Vladimir Putin para ajuda financeira em meio à grande crise econômica. As condições de receber gás natural russo a um preço reduzido e uma linha de crédito de 15 bilhões de dólares para evitar a falência do governo de Kiev foram em troca de Yanukovych pôr fim à sua aproximação à União Europeia, com a qual eles estavam fechando o Acordo Europeu-Ucraniano de Associação, um pacto de livre comércio.

Fonte: https://eslavia.com.ar/

Os protestos em Kiev foram liderados por diferentes grupos sociais, de ONGs a políticos nacionalistas e pró-europeus, além de um grande componente de partidos de extrema direita. As mobilizações de milhares de ucranianos combinaram o cansaço popular devido à crise econômica – herdada do desastre social pós-queda da URSS ao qual se acoplou a crise de 2008 – com diversas demandas sociais, mas também o setor pró-europeu utilizou-se das bandeiras neoliberais da democracia e valores ocidentais se polarizando com o espectro do autoritarismo e a corrupção da oligarquia pró-russa. Da mesma forma, a grande maioria recebeu o bombardeio ideológico do soft power norte-americano. Isso é reconhecido por Victoria Nuland, subsecretária do Escritório de Assuntos Europeus e Eurasianos em Washington, afirmou que:

Desde a independência da Ucrânia em 1991, os Estados Unidos têm apoiado os ucranianos na construção de capacidades e instituições democráticas, promovendo a participação cívica e a boa governação, que são pré-condições para a Ucrânia alcançar as suas aspirações europeias. Investimos mais de US$ 5 bilhões para ajudar a Ucrânia nessas e em outras metas que garantirão uma Ucrânia segura, próspera e democrática. [8].

A participação de Nuland, como de outros funcionários de países ocidentais nos protestos mostrando uma posição ativa contra o governo de Yanukovych, foi interpretado como uma passagem do poder brando ao poder duro ao intervir diretamente no conflito.

A repressão brutal de Yanukovych às manifestações enfureceu ainda mais a população de Kiev e a UE, que começaram a pressionar o presidente. O aumento da radicalização dos protestos estava ligado ao fato de o movimento Euromaidan ter uma composição social e política heterogênea e descentralizada sem uma liderança política clara. Mas com o desenrolar dos acontecimentos, os setores nacionalistas de extrema direita ocuparam uma posição estratégica ao organizar as brigadas de autodefesa. Após as negociações para estabilizar o país, buscando dar-lhe uma solução negociada, o parlamento votou a demissão de Yanukovych em fevereiro de 2014 em uma sessão cercada por grupos de autodefesa que não permitiram a entrada dos deputados do partido no poder, apesar de que o presidente deposto já tivesse cedido à maioria das demandas. Yanukovych fugiu para Moscou e imediatamente um governo de transição foi estabelecido na Ucrânia, que convocou eleições em maio daquele ano, onde o líder nacionalista pró-europeu, Petro Poroshenko, venceria mais tarde. O governo provisório foi rapidamente reconhecido pelo Ocidente sem medir as consequências, enquanto as regiões orientais o rejeitaram com uma série de manifestações menores, chamadas de "Anti-Maidan" em apoio a Yanukovych. Poucos dias após sua partida, grupos armados pró-Rússia tomaram o parlamento da Crimeia em Simferopol, e os governos de Donetsk e Lugansk também - Putin reconheceu mais tarde que estes eram forças russas infiltradas. A Rússia imediatamente realizou uma manobra para não perder a península estratégica. Foi convocado um referendo para primeiro tornar a Crimeia uma república independente e depois anexar o território que contém os principais estaleiros da era soviética e onde fica a base naval russa de Sebastopol, a principal no Mar Negro. Em março daquele ano, com 90% de aprovação, a Crimeia aderiu à Federação Russa como República Autônoma, mas apenas os governos da Nicarágua, Afeganistão, Síria e Venezuela reconheceram a adesão da península à Rússia [9]. As regiões de Luhansk e Donetsk são dois oblasts ou províncias separatistas que estão tentando se integrar à Rússia. São estratégicos porque representam 20% do PIB ucraniano e sua população é majoritariamente russa, mas não foram submetidos a referendo, pois são territórios que não têm a mesma ligação com a Rússia que a Crimeia. A anexação impôs à Rússia fortes sanções econômicas que custam cerca de 4 bilhões de dólares em ajuda financeira à Crimeia anualmente, mais 2 bilhões de dólares perdidos devido ao transporte de gás pelo território ucraniano, além das dificuldades de acesso ao financiamento internacional por bancos russos no exterior e a queda do investimento estrangeiro direto; segundo o FMI, o impacto quantificado é uma queda de 2% no crescimento anual [10].

Pravy Sketor na Praça Maidan 1 de abril de 2014. Fonte: https://www.kyivpost.com/

A forte presença de partidos nacionalistas e moderados, bem como de extrema direita (inquestionados pelo Ocidente), longe de qualquer ideia de democracia liberal, elevou ainda mais o nível de violência por meio da participação armada e da ocupação de prédios públicos. Entre eles estava o Pravy Sektor ("Setor Direito"), partido que leva o nome dos nacionalistas que lutaram contra a URSS ao lado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, cujas ideias paradoxalmente se concentram na rejeição do liberalismo ocidental e na entrada no poder UE. Este partido chegou a cerca de 10.000 membros, a maioria deles na vanguarda das mobilizações, depois muitos deles formaram grupos paramilitares que mais tarde se juntaram ao Batalhão Azov, uma unidade ultranacionalista do Exército ucraniano. A participação de organizações fascistas armadas de extrema direita e grupos paraestatais pró-Rússia trouxe tensões ao ponto da eclosão da guerra civil no Donbass, cujos atores foram fortemente apoiados por potências estrangeiras e onde seu papel assumiu importância decisiva no conflito, bloqueando qualquer alternativa fora de um conflito de soma zero percebido. A guerra custou cerca de 13.000 vidas e quase dois milhões de pessoas deslocadas entre 2014 e 2020.

Desde então, só houve combates isolados nas fronteiras da Crimeia e nas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Isso manteve o conflito em um freezer que nos últimos anos criou um status quo que permitiu que o conflito fosse usado tanto para interesses externos quanto internos. Mas eles criaram uma fissura tão profunda que levou, por exemplo, à dissolução da Igreja Ortodoxa local, onde Kiev se tornou independente do Patriarcado de Moscou em 2019, apesar de terem sido aliados desde 1686 [11]. Também ocorreu um isolamento das populações de Donetsk e Lugansk da pandemia de Covid-19. Em todos os momentos, a Rússia esteve envolvida no conflito com apoio econômico e de inteligência, também com armas não declaradas e tropas secretas, assim como o Ocidente apoiou o então presidente Petro Poroshenko com armas e ajuda econômica.

Em 2019, Volodymyr Zelensky chegou ao poder, cujas expectativas eram que ele acabaria com a corrupção, alcançaria a paz no Donbass e melhoraria a situação dos ucranianos. Seu governo, que goza de forte apoio popular apesar das expectativas insatisfeitas, inicialmente teve uma política de muito mais diálogo que seu antecessor. De qualquer forma, o fracasso das negociações do Grupo de Contato Trilateral para Donbass (Ucrânia, Rússia e Organização para Segurança e Cooperação na Europa) e uma forte pressão popular interna mobilizada para “evitar a rendição da Ucrânia diante da agressão Rússia", levou a um aumento dos combates nas fronteiras durante 2021. Zelensky posteriormente promoveu a Plataforma da Crimeia para recuperar a península, gerando maior pressão sobre a Rússia, que em resposta aumentou sua atividade militar nas fronteiras.

A importância geoestratégica da Ucrânia

A atual tragédia na Ucrânia pode ser rastreada até a Cúpula de Malta em 1989, onde George H. W. Bush prometeu a Gorbachev que a OTAN não se expandiria para o leste diante da queda iminente da URSS. Após o colapso do chamado bloco socialista, o Ocidente procurou aproximar Kiev das estruturas e instituições ocidentais baseadas no que ficou conhecido como unipolarismo. O influente diplomata e historiador americano George Kennan e setores liberais de Moscou alertaram na época que o comportamento ucraniano anti-russo geraria uma reação hostil em Moscou e acabaria sendo contraproducente para a estabilidade regional. Mas eles se fizeram de surdos ao incorporar cada vez mais países à aliança atlântica e à União Européia.

Após a independência formal em 1991, a partir da desintegração da URSS (processo que levou a novos “estados independentes”), o país nasceu como um “estado tampão” para evitar o que Halford Mackinder advertiu, no âmbito do Grande Jogo [12], como uma possível aliança entre a Alemanha e o Império Russo às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Uma vez que a URSS caiu, os pensadores (neo)realistas norte-americanos atualizaram essa visão para conter a Rússia pós-soviética, que ainda mantinha uma importante capacidade militar e produtiva, para distanciá-la da aliança ocidental e impedir que ela ressurgisse como uma superpotência. Para Mackinder, a Europa Oriental era a chave para o coração continental da Eurásia, ou área central, um espaço de vastos recursos cujo potencial proporcionaria a capacidade de dominação mundial a quem a governasse. Por esta razão, era necessário impedir a saída para os mares do Império Russo, e depois da União Soviética, cercando a Ásia com bases militares (isto é, com estados coloniais relacionados) [13].

Poderíamos dizer que a Ucrânia ficou presa naquela região que Mackinder chamou de “margem continental”, ou seja, a área de atrito com o “coração continental da ilha mundial” que é necessário controlar para bloquear a expansão do Império Russo. Da mesma forma, podemos circunscrever os atuais conflitos na Geórgia, Ossétia do Sul, Nagorno-Karabakh, entre outros, nas fronteiras russas. Para o intelectual da geopolítica do início do século XX, quem dominasse o coração continental dominaria a ilha mundial, e quem dominasse esta dominaria o mundo. Mais tarde, Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de Jimmy Carter e mais tarde pensador geoestratégico de Barack Obama, em seu livro O grande tabuleiro mundial (1998), explica que a Ucrânia é de grande importância estratégica para os Estados Unidos em seu confronto com a Rússia. Para ele, se a Ucrânia fosse dominada pelos Estados Unidos, o gigante russo poderia ser domado, enquanto se a Rússia controlar a Ucrânia, ela tem chance de se tornar uma grande potência mundial novamente. A importância da Ucrânia pôde ser vista na situação aberta pela Revolução Russa de revolução e contrarrevolução, quando Leon Trótski liderou a frente do Exército Vermelho durante o desenvolvimento da guerra na Ucrânia entre 1918 e 1920 contra a Guarda Branca (apoiada por todos os exércitos imperialistas do mundo). Lá, Trótski levantou a importância estratégica daquela região para a defesa da revolução proletária contra a reação branca aliada a todos os exércitos imperialistas [14]. Já com a URSS sob a deformação burocrática do stalinismo, Trótski levantou a importância de uma Ucrânia soviética independente e revolucionária às vésperas da Segunda Guerra Mundial diante do iminente avanço das tropas nazistas que encontrariam apoio popular na Ucrânia após o desastre causado pelo regime de Stalin [15].

Por outro lado, uma vez que o Muro de Berlim caiu e a Rússia se integrou às instituições neoliberais, os Estados Unidos observaram o que Mackinder havia alertado um século antes: uma possível integração entre Alemanha e Rússia. Esse medo foi a base da grande estratégia americana na guerra dos Bálcãs para aprofundar uma fissura que distanciaria qualquer reaproximação entre a Rússia e a Europa. Isso gerou vários resultados a nível estratégico. O pensamento geopolítico russo pós-soviético deixou de olhar para o Ocidente como a chave para a integração mundial, para o eurasianismo. Este último é um conjunto de ideias de raízes conservadoras, eslavófilas e cristãs ortodoxas, que se baseiam em um projeto capitalista que busca a integração em escala continental com uma base multicultural, multiétnica e multirreligiosa, em oposição ao atlantismo ocidental. Para Alexander Dugin, intelectual eurasianista e conselheiro de Vladimir Putin, o objetivo russo é construir um mundo multipolar, onde a Rússia seja um polo de poder entre vários outros polos mundiais [16]. Isso significa a construção de uma ordem baseada em uma oligarquia de Estados com capacidade de atrair e subordinar outros mais fracos, onde se gera um equilíbrio de poderes em nível mundial entre as superpotências.

Nesse sentido, países como Ucrânia, Bielorrússia, Armênia ou Cazaquistão são vitais para o projeto da Grande Rússia de Putin como bloco de poder por seus laços históricos, culturais e étnicos, o que justificaria qualquer intervenção militar ou diplomática direta. Isso também justifica a aproximação com a China, com a qual solidificou sua aliança informal por meio de diversas instituições como a Organização de Cooperação de Xangai, sua integração à Nova Rota da Seda, instituições financeiras para lidar com sanções, entre outras, além de atuar como um bloco no Conselho de Segurança da ONU. Uma relação forçada levando em conta a rivalidade histórica entre os dois países. Atualmente há uma grande desconfiança em relação à pressão demográfica que a China exerce sobre a Rússia pelo uso de mão de obra nas regiões siberianas. O eurasianismo é uma abordagem que também justifica o intervencionismo militar e diplomático em várias regiões, como Cáucaso, Ásia Central, Oriente Médio ou África, permitindo que a Rússia seja considerada um ator de peso na mesa de negociações. Desta forma, podemos ver sua atuação na guerra civil na Síria e na Líbia, bem como a participação do Grupo Wagner na África, também sua aproximação tanto com Israel quanto com o Irã, e da mesma forma seu papel nos processos atuais no Afeganistão.

Essas oportunidades que se abriram para a Rússia podem ser compreendidas pelo declínio dos Estados Unidos e pela capacidade das instituições ocidentais de escrever as regras do jogo, por um lado, e pela pressão de outros players globais, como China, Índia ou Brasil que também perseguiram interesses nacionais particulares.

Da mesma forma, o espaço da Europa Central é incorporado ao pensamento russo como parte de sua grande estratégia. É por isso que a dependência da Europa do gás russo é fundamental – através do gigante monopolista Gazprom – que subiu para 40%, e particularmente da Alemanha, que é o coração produtivo e tecnológico da União. Assim, o gás atua como o principal fator de pressão para a Rússia, que precisa resolver a situação econômica devido às sanções. Os principais gasodutos e oleodutos para os países europeus passam pela Ucrânia, mas a chave da disputa está no Nordstream II, que liga a costa russa ao porto alemão de Greifswald através do Báltico e ainda aguarda a aprovação dos reguladores alemães, que dependerá do desenrolar das negociações na Ucrânia. O gasoduto que contorna o território ucraniano significará uma perda para aquele país de 1.000 milhões de dólares em royalties pelos direitos de transporte. Além disso, a Ucrânia é um dos portões terrestres para a Europa da Nova Rota da Seda para a China, que avançou nos acordos comerciais com vários países do Leste Europeu por meio do Grupo 16+1. Por outro lado, a Rússia procura ocupar espaços que gerem um efeito de estrangulamento energético na Europa, como vemos na disputa pelo Mediterrâneo Oriental com a Turquia, nos confrontos na guerra na Líbia, bem como na participação da Gazprom na Sonatrach, o navio-tanque argelino gigante. Isso de forma alguma significa que a Rússia concorre em igualdade de condições com os Estados Unidos ou a União Europeia, mas sim que é um gigante com pés de barro que tem a capacidade de lutar para ocupar espaços em diferentes partes do globo por seus próprios interesses para obter melhores condições ao sentar-se à mesa pequena. Isso mostra que no estágio atual estão se desenvolvendo disputas de enorme complexidade a partir da interdependência econômica entre os países, onde a crise do tabuleiro de xadrez ucraniano ameaça constantemente a débil (des)ordem mundial.

Uma paz quente na Ucrânia?

A notícia de que os tambores da guerra estão soando na Ucrânia está circulando na imprensa internacional. Na última quinta-feira, 23 de dezembro, o Ministério da Defesa russo informou que realizará exercícios militares simulando a apreensão de uma área com mais de mil paraquedistas e centenas de veículos. Isso tensiona a disputa da Rússia com a Ucrânia e a OTAN, que a mando dos EUA mantém infraestrutura militar perto da fronteira russa, violando o Protocolo de Minsk - o acordo que congelou o conflito armado que começou em 2014, onde foi estipulado centralmente que havia nenhuma instalação militar da aliança atlântica na Ucrânia –. A recente cúpula entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e seu homólogo russo, Vladimir Putin, para discutir centralmente a questão ucraniana foi uma mera formalidade, da qual não resultou nenhum compromisso concreto [17].

Soldado pró-Rússia observa prédios destruídos na República Popular de Donetsk. Fonte: www.remocontro.it

Dias depois, o Kremlin entregou uma série de demandas separadas aos Estados Unidos e à OTAN, exigindo que eles cumprissem o Protocolo de Minsk, bem como garantias de segurança com sua retirada dos países do espaço pós-soviético para diminuir o conflito. Biden está em uma encruzilhada nesse sentido, já que a polarização política interna nos EUA pode levar seu governo a uma nova crise se ele ceder ao “autocrata russo”. Além disso, as tensões partidárias nos Estados Unidos durante a pandemia global de covid-19 minaram a posição internacional do país como modelo de democracia liberal e erodiram sua autoridade em questões de saúde pública, assim como contradições e fragilidades internas da estrutura americana que vieram à tona em meio a um cenário de polarização social e política.

A situação é delicada, mas os especialistas propõem dois cenários improváveis: a invasão russa da Ucrânia ou a retirada total da Rússia [18]. De sua parte, Putin, para realizar um esforço de guerra, precisaria de apoio popular e recursos econômicos que dificilmente obterá em pouco tempo. Mas, ao mesmo tempo, a entrada da Ucrânia na OTAN é uma linha vermelha que a Rússia não pode tolerar, pois é considerada vital para sua segurança nacional, razão pela qual a defesa do leste da Ucrânia é considerada uma manobra defensiva.

O conflito na Ucrânia tornou-se o principal problema geopolítico dentro das fronteiras europeias num contexto de maior agressividade dos Estados Unidos para a Rússia e a China, mas que se enquadra numa crise do equilíbrio capitalista global que evidencia tendências para confrontos entre grandes potências a vários níveis: militar, econômico, tecnológico, etc [19]. No mesmo sentido, a Ucrânia, como diz Merino, “abriu uma nova fase ou momento da crise, caracterizada pelo fato de que o acirramento das tensões entre os blocos de poder mundial é travado nos principais territórios e confrontos estratégicos —a disputa por influência em território social – são diretos entre os poderes” [20].

Mas essa mesma situação internacional também abriu a possibilidade de confrontos entre classes sociais, resultando em fortes revoltas do Chile, Colômbia, Estados Unidos, França, Líbano ou Mianmar. Os ucranianos estão presos em um drama que não pode ser canalizado pelos partidos nacionalistas, pela intervenção imperialista dos Estados Unidos ou da União Europeia, nem pela Rússia ou China com seus aliados locais. Embora os efeitos da queda da União Soviética continuem atingindo os trabalhadores e setores populares ucranianos, não podemos descartar que haja uma busca alternativa para os projetos oferecidos pelos atores em questão.

Texto publicado originalmente em: https://www.laizquierdadiario.com/Ucrania-en-el-tablero-mundial


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1O texto foi escrito no final de Dezembro, NdT

[2Ruiz Ramas, Rubén (coord.), Ucrânia. Da Revolução Maidan à Guerra Donbass, Comunicação Social, Salamanca, 2016.

[3Nome dado ao movimento de protesto da Praça Maidan devido à sua afinidade com a União Europeia

[4Embora o território da Ucrânia tenha abrigado vários grupos étnicos e culturas, desde o estabelecimento do Rus de Kiev no século IX pelos povos eslavos, eles têm se deslocado em combate contra os tártaros e os mongóis para o leste, onde Moscou ascendeu como a capital do czarismo russo no século 12.

[5Zhukovskii, L. (2016), "A involução periférica da Rússia e a geopolítica do capitalismo global", in Merino, Gabriel E. e Rang, Carlos, Nova Guerra Fria ou Guerra Mundial Fragmentada?, Posadas: EDUNAM (Editorial de la National Universidade de Misiones).

[6Conceito utilizado em termos geopolíticos, referindo-se fundamentalmente às potências dominantes dos países pertencentes ao núcleo histórico da OTAN, com centralidade nos Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia. Ver Merino, G. E. (2016) “Tensões globais, multipolaridade relativa e blocos de poder em uma nova fase da crise da ordem mundial. Perspectivas na América Latina”, em Geopolítica(s): Revista de Estudos sobre Espaço e Poder, vol. 2, não. 7, Universidade Complutense de Madrid, p. 201-225.

[7Ruiz Ramas, Rubén (coord.), Ucrânia. Da Revolução Maidan à Guerra Donbass, Comunicação Social, Salamanca, 2016.

[9A anexação da Crimeia foi percebida pelos russos como um território natural, já que grande parte da população é de língua russa e esteve nas mãos do czarismo por 300 anos até que Nikita Khruschev a entregou à República Soviética da Ucrânia. Os argumentos de Putin para a intervenção foram particularmente o direito da Crimeia de se tornar independente e seu pedido de anexação, bem como o perigo potencial que a população russa enfrentava diante da mudança de regime em Kiev.

[10Anders Åslund e Maria Snegovaya. (2021). “The impact of Western sanctions on Russia and how they can be made even more effective”. Atlantic Council. https://www.atlanticcouncil.org/in-depth-research-reports/report/the-impact-of-western-sanctions-on-russia/

[12Expressão utilizada para denominar o confronto entre o Império Britânico e o Império Russo na disputa pela Ásia Central e o Cáucaso durante o século XIX. Nesses anos foi registrada a Guerra da Criméia entre 1853 e 1856, desenvolvida na península, cujo resultado foi uma derrota humilhante do czarismo e um freio em sua expansão.

[13Zamora R., A. (2016), Política e geopolítica para rebeldes, irreverentes e céticos. FOCO, Madri.

[14Trotsky, L. (1920). "Em defesa da Ucrânia soviética". Veja em https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1920/mayo/11_v.htm

[15Trotsky, L. (1938). "A questão ucraniana". Veja em https://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro6/T10V229.htm

[16Dugin, A. G. (2015). Teoria do mundo multipolar. Moscou: Projeto Acadêmico.

[18Orr, Mathew. Four Scenarios for Rising Russia-Ukraine Tensions. Revista Stratfor. https://worldview.stratfor.com/article/four-scenarios-rising-russia-ukraine-tensions

[19Mercatante, Esteban, “El imperialismo hoy: ¿hacia un “caos sistémico?”, Ideas de Izquierda. https://www.laizquierdadiario.com/El-imperialismo-hoy-hacia-un-caos-sistemico

[20Merino, G. E. (2016) “Tensões globais, multipolaridade relativa e blocos de poder em uma nova fase da crise da ordem mundial. Perspectivas na América Latina”, em Geopolítica(s): Revista de Estudos sobre Espaço e Poder, vol. 2, não. 7, Universidade Complutense de Madrid, p. 201-225.
CATEGORÍAS

[Guerra na Ucrânia]   /   [Geopolítica]   /   [Joe Biden]   /   [Governo Biden]   /   [Vladimir Putin]   /   [Imperialismo]   /   [Ucrânia]   /   [Teoria]   /   [Internacional]

Santiago Montag

Comentários