×

LITERATURA | A Infância de Gorki e a morte de crianças no Brasil

"Infância" primeiro volume da autobiografia do escritor russo Máximo Gorki conta a história do pequeno Aleksiei sobrevivendo num cotidiano miserável na Rússia czarista das últimas décadas do século XIX.

Fábio NunesVale do Paraíba

sexta-feira 29 de julho de 2016 | Edição do dia

Infância (1913-1914) primeiro volume da autobiografia do escritor russo Máximo Gorki conta a história do pequeno Aleksiei sobrevivendo num cotidiano miserável na Rússia czarista das últimas décadas do século XIX. (O nome de Gorki - pseudônimo que significa "amargo" - era Aleksiei Maksímovitch Piechkóv).

Ao pé da janela, num pequeno aposento escuro, o pai do garoto, vestido de branco, estendido ao comprido, jaz no chão. (O pai de Gorki, que trabalhava como tintureiro, morreu de cólera em 1873) A mãe ajoelhada junto do cadáver chora profundamente e dá a luz à uma criança que logo irá falecer.

Primeira página pesada desta Infância na Rússia do atraso e da Igreja. O pobre garoto vê a vida pobre e miserável desaparecer embalada por preces e orações a um Deus que pode ser bondoso ou cruel. Existe poesia nos campos e jardins da cidade russa mas a casa familiar está cheia de uma névoa sufocante. O rancor envenena os adultos e até as crianças o compartilham.

As brincadeiras adquirem uma beleza perigosa. O avô de Aleksiei acredita que os castigos corporais servem para educar. "Amarrem-no!", disse o avô que vergastou o pequeno até perder os sentidos. Tornarei a apanhar com as varas, perguntou ansiosamente? Tornarás certamente a apanhar e muitas vezes.

Ler estas páginas tão comoventes nos faz lembrar/pensar nos ataques contra a infância e a adolescência no país, como a tentativa de reduzir a maioridade penal, os casos de estupros coletivos de meninas e as mortes de garotos pobres e negros pela polícia. Nos faz lembrar/pensar na infância abandonada à própria sorte sobrevivendo a dura realidade das sociedades capitalistas.

Infância muitas vezes sem a poesia potente do escritor russo. Em São Paulo, no Rio de Janeiro ou na Bahia o barraco é o castelo pendurado pelo pescoço e a lágrima escorre pela via. Tem criança no trabalho precário. Tem criança prostituída e escravizada no país do Carnaval. O pai bêbado goza no corpo violado. O olho infantil registra a mãe na fila do SUS se contorcendo de dor, o olho perfurado viu coisas ruins que a mente não esquece.

Não é fácil ver a ingênua liberdade estrangulada. Passear no centro da cidade e ver a infância louca de fome e de pedra desespera. É triste olhar para trás e lembrar de tanta injustiça. É triste olhar para o lado e ouvir o choro silenciado que vai explodir com arma na mão ou apodrecer numa cela de cadeia.

Gorki olha para o passado difícil no primeiro volume de sua autobiografia e não cede ao pessimismo e à morbidez romântica tão em voga em sua época.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias